26 dezembro 2006

NIEP - Núcleo interdisciplinar de estudos de Poética

Núcleo interdisciplinar de estudos de Poética – NIEP –
Prof. Manuel Antônio de Castro

Grupo de pesquisa: Pluralidade das linguagens poéticas
Linhas de Pesquisa: Poéticas das linguagens
Poesia e pensamento

Núcleo interdisciplinar de estudos poéticos: duplo objetivo

A Área de Poética faz parte do Programa de Pós-graduação do Departamento de Ciência da Literatura, da Faculdade de Letras, da UFRJ.
Sua origem remonta às reflexões filosóficas platônicas e sobretudo aristotélicas, em torno da experiência de pensamento realizada pelas diferentes realizações artísticas. Mas desde a experiência de pensamento dos mitos já havia implícita uma tal reflexão. O fato determinante de tais reflexões filosóficas é que elas nascem das obras poéticas já existentes, originado-se aí a prática inter-disciplinar mais antiga que se conhece. E o traço determinante dessa reflexão interdisciplinar consiste no fato de que não é um pensamento filosófico que pensa sobre as obras já existentes, mas é um pensamento que pensa com as obras, isto é, na Poética acontece um diálogo criativo tanto para a experiência de pensamento filosófico como para a experiência de pensamento mito-poético-artístico. Por isso a Poética é originária e necessariamente inter-disciplinar.
No início do terceiro milênio, depois de dois mil e quinhentos anos, a inter-disciplinaridade se tornou hoje a grande questão para a Universidade, tendo em vista o redesenho de seu lugar numa realidade em profunda transformação, frente a um modelo de universidade já esgotado.
Diante dessa realidade, a criação do Núcleo interdisciplinar de estudos poéticos cumpre um duplo papel.
1º. Numa universidade estruturada em disciplinas isoladas, mas exigindo concretamente uma interdisciplinaridade efetiva, o projeto do núcleo e a sua efetiva implementação constitui-se numa nova práxis dentro da universidade. A convivência e cooperação de diferentes disciplinas em atividades de ensino, pesquisa e extensão já trazem em si um horizonte de experimentação em que pode ser repensada a atual universidade.
2º. A implementação do núcleo pode tornar-se um micro-modelo de reorganização e concepção de uma nova universidade. Nele poderemos ter como que um espelho concreto de como poderia ser uma universidade concebida como uma grande rede, em que os diferentes nós seriam os núcleos.
Tendo em vista isso, o núcleo tem uma dupla finalidade: fecundar e ampliar as atividades da Área de Poética na concepção maior de núcleo e, experimentalmente, tornar-se o protótipo de organização de uma nova universidade em núcleos interdisciplinares.
Dentro dessa dupla tarefa, apresentamos dois textos:
1º. O projeto da formação do Núcleo interdisciplinar de estudos poéticos;
2º. Um ensaio reflexivo sobre uma Nova Universidade, pensada em sua macro-estrutura como uma rede, em que os nós seriam a micro-estrutura e as linhas seriam as disciplinas. Nesta concepção dinâmica os nós seriam os núcleos, como base concreta real da interdisciplinaridade.
Esta imagem-modelo da universidade reflete a seu modo a própria dinâmica da realidade hoje, estruturada como uma grande rede, como uma teia da vida. Porém, uma não seria a representação da outra, mas a conjugação de uma dinâmica única, enquanto diálogo, que permitisse uma união frutífera e ao mesmo tempo uma profunda integração de universidade e sociedade, aí incluindo a própria Terra como nossa habitação.
Para atingir este duplo objetivo, redigi o projeto sobre o Núcleo interdisciplinar de estudos poéticos – NIEP e o ensaio: Universidade e núcleos: reflexões.

Núcleo interdisciplinar de estudos poéticos - NIEP

1 – Situação

O Programa de Pós-Graduação de Ciência da Literatura tem três Áreas bem específicas, que atendem a uma pluralidade muito grande de teorias e visões das produções artístico-culturais: Teoria Literária, Literatura Comparada e Poética. É sua diferença e riqueza.

2 – Área de Poética

A Área de Poética, pela própria natureza indicada no nome, constitui-se e abre-se a uma necessária interdisciplinaridade. Fique logo claro que Poética, reflexão sobre as obras de arte quase três vezes milenar, não indica de maneira alguma algo normativo, mas uma indagação e questionamento dos diferentes fazeres artísticos enquanto poiesis e linguagem, como essência e sentido do agir. Neste sentido, ela se abre e atua dentro e a partir das diferentes linguagens artísticas. E esse passa a ser o seu núcleo e elo comum.
Não seguindo os paradigmas nem filosóficos nem científicos, volta-se para o próprio fazer poético, implícito às próprias obras e questões da arte, porque essencial a todo agir humano. Por isso, trabalha sempre com questões e nos interstícios dos conceitos.
Aberta a todas as linguagens artísticas, é primordial e fundamentalmente interdisciplinar. Volta-se para as obras enquanto elas realizam o sentido e verdade da realidade manifestados como: Linguagem, Poiesis, Tempo, Memória, Mito e História. Indo além de uma posição epistemológica e representacional, move-se na abertura poético-ontológica de manifestação da verdade da realidade como mundo no vigor histórico de suas realizações artísticas.
Parte, em vista disso, do círculo poético-ontológico, onde a interpretação se processa num diálogo com a obra de arte. Por isso mesmo articula-se criticamente em torno das diferentes hermenêuticas dialógicas: poética, mítica, filosófica, teológica, jurídica e ontológica. A hermenêutica da poiesis se tece, então, como uma ontopoética. Com isso, abre muitas possibilidades de diálogos interpretativos inaugurais. Fugindo a qualquer reducionismo analítico, explicativo e formal, contribui para a renovação do estudo, ensino e pesquisa das diferentes artes, ao configurá-las dentro do horizonte do sentido da linguagem e da poiesis, enquanto sentido do agir. Na medida em que se centraliza na verdade da obra enquanto linguagem e poiesis, funda-se num acontecer ético que tem como horizonte tanto um aprendizado como uma aprendizagem, ou seja, tanto um conhecimento como uma sabedoria.

3 – A interdisciplinaridade e a Universidade

Sem dúvida nenhuma a universidade do futuro será a universidade da interdisciplinaridade, tendo em vista a rápida expansão, em proporção geométrica, dos conhecimentos, as transformações radicais e revolucionárias dos meios de transmissão e de acumulação. O modelo da pesquisa de conhecimentos por disciplina, baseado num método de objetos bem definidos e precisos, dá lugar aos trans-limites das disciplinas, uma vez que a complexidade da realidade exige espaços de interconexões e de pesquisa de interstícios de que as disciplinas isoladamente não conseguem mais dar conta. O paradigma de conhecimento da realidade por segmentação produziu já seus frutos, mas a especialização aprofundada mostrou a insuficiência de tal paradigma e aponta já efetivamente para um paradigma interdisciplinar.
Isso já é largamente praticado nas chamadas ciências em geral. Por influência do paradigma do século XIX, dominante nos estudos das artes, a interdisciplinaridade ainda não encontrou um lugar destacado nos estudos poético-artísticos. Em parte, isso também se deve à especificidade das obras de arte. Em relação a elas, a interdisciplinaridade toma dimensões completamente novas.

4 – Núcleo interdisciplinar de Poética

Partindo dessa constatação e realidade inegável, a Área de Poética já vem implementando, na prática, uma efetiva interdisciplinaridade. Mas agora quer de alguma maneira, através de uma institucionalização acadêmica, ampliar essa atuação, com as seguintes tarefas:
1ª. Promover uma reflexão teórico-prática contínua sobre a interdisciplinaridade em suas dimensões poéticas, tendo em vista uma nova visão da universidade e de seu diálogo com a nova sociedade em gestação;
2ª. Ampliar na universidade sua atuação interdisciplinar, através de cursos, troca de experiências, publicações, encontros etc. Isto será facilitado e viabilizado pelo fato de que já se formaram doutores e mestres na Área de Poética, que hoje estão atuando em outras universidades do Brasil. Nesse sentido, pretende-se formar uma rede de atuação;
3ª. Promover uma renovação do ensino e aprendizado, tanto metódico como teórico, tendo em vista a compreensão profunda da natureza especial das obras de arte, abandonando o paradigma cientificista e representacional do século XIX, que hoje nem a própria ciência mais avançada segue;
4ª. Propor nas suas linhas de pesquisa possibilidades de projetos, dentro dessa nova reflexão, que unam a renovação teórica com um profundo e amplo estudo das obras de arte, com ênfase na produção de pensamento poético em cultura de língua portuguesa. De maneira alguma isso significa um nacionalismo passadista, mas tem o objetivo de, pelo diálogo com todas as obras de artísticas de pensamento, dar um lugar a nossa produção de pensamento poético.
Para realizar efetiva e institucionalmente esses objetivos é que estamos propondo o NÚCLEO INTERDISCIPLINAR DE ESTUDOS POÉTICOS (NIEP).

5 – Realizações interdisciplinares de Poética

A Área de Poética tem aberto possibilidades novas de formação e de pesquisa para alunos provenientes de música, filosofia, teatro, dança, arquitetura, além da hermenêutica poético-ontológica de diferentes literaturas, ensinadas nas Faculdades de Letras. Já formou Doutores em literatura Hebraica, Brasileira etc.

Em 1997, o Prof. Antônio Jardim se doutorou em Poética, com a tese: Música: vigência do pensar poético, publicada em 2006 pela editora 7LETRAS. Inicialmente professor da Escola de Música, leciona hoje no Programa de Pós-graduação de Ciência da Literatura, na Área de Poética.
Em 1999 defendeu a tese: Intervenções na relação entre poesia e filosofia: uma fronteira desguarnecida, o professor Alberto Pucheu, na Área de Poética, estabelecendo uma interdisciplinaridade entre Poética e Filosofia. Hoje leciona no Programa de Pós-Graduação de Ciência da Literatura na Área de Poética e Teoria Literária.
Em 2001, a profa. Mari-Pepa Vicente Perrota fez a pesquisa de Pós-Doutorado com o Titular de Poética, intitulada: Poética, Direito e Hermenêutica. É Doutorada em Educação.
Em 2003, Ana Maria Gonçalves Lysandro de Albernaz defendeu a Dissertação intitulada Mito e poesia. É mais um campo interdisciplinar abrangido pela Poética.
Em 2004 foi defendida a Tese: Música: poética do sentido – uma onto-logo-fania do real, pelo professor Werner Aguiar, atualmente lecionando na Universidade Federal de Goiás.
Em 2004, o prof. Márcio dos Santos Gomes defendeu em Jena a tese: Die ontologische Zirkularität - Hölderlins Vorsokratik-Rezeption und ihr Einfluss auf seine
Poetologie, defendida em 19/04/2004. Ele também é oriundo da Área de Poética, pois fez nesta Área seu Mestrado sobre Hölderlin, em 1998. É outra tese interdisciplinar de Poética e Filosofia.
Em março de 2004, dois professores de Música defenderam suas Dissertações na Área de Poética: Celso Ramalho e Eduardo Augusto Giglio Gatto. Atualmente fazem o curso de Doutorado em Poética. Eduardo Augusto Giglio Gatto é professor do CEFET e o Celso Ramalho é professor da Universidade Federal do Espírito Santo.
Em fevereiro de 2005, a profa. Andréa Copeliovicht, que fez o Mestrado em S.Paulo, em teatro, defendeu a sua tese de Doutorado, realizado na Área de Poética, com o título: O ator guerreiro frente ao abismo. Hoje é professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Em 2006 foi defendida a tese A paidéia poética na Cidade sitiada de Clarice Lispector por Maria Beatriz Albernaz. Ela atua na área de educação.
No momento fazem o Mestrado em Poética os professores de Música: Artur de Freitas Gouvêa e André Ribeiro Poyart. E fazem agora o doutorado os professores de música Peri Ribeiro e Sônia Andrade.
A partir de 2006 a interdisciplinaridade foi ampliada, uma vez que a professora Maria Ignês de Souza Calfa, do Curso de Bacharelado em Dança da UFRJ, iniciou o seu doutorado em Poética. No encerramento do semestre letivo de 2004-2, já apresentou, no Espaço João do Rio da Faculdade de Letras, um espetáculo de dança constituído de duas criações: 1ª. Baseada no conto de Guimarães Rosa: A terceira margem do rio; 2ª. Baseada na obra de Clarice Lispector: Água viva.
Destaque-se que foram já numerosos os alunos das Faculdades de Letras que se tornaram mestre e doutores em Poética. Diversos lecionam hoje na própria Faculdade de Letras da UFRJ.

6 – Renovação e inovação

O que tem possibilitado esta interdisciplinaridade efetiva se dá em dois sentidos. Pelo primeiro promove-se um questionamento do ensino tradicional em suas dicotomizações, trazendo para cena e para debate concepções e conceitos tradicionais. Deste questionamento surgem novas possibilidades de configuração e concepção do ensino de tais disciplinas, desencadeando uma verdadeira revolução e inovação na visão, ensino, prática e pesquisa de tais disciplinas. Pelo segundo, traz para o centro do debate duas questões centrais: a linguagem e a poiesis. Distinguindo linguagem de meras técnicas conceituais e operacionais, funda a linguagem na poiesis, perfazendo um todo essencial indiscernível. Para isso toma-se a poiesis em seu sentido grego original: ação, essência do sentido do agir ontopoético, do fazer artístico. Nesta perspectiva, a linguagem se distingue-se da técnica e se realça o aspecto criativo e inaugural de todo fazer artístico, sem, no entanto, abrir mão do domínio técnico. Mas este é lido, como linguagem técnica, no horizonte criativo de toda poiesis. Nesse sentido, cada técnica, correspondente a cada disciplina, se torna uma língua de fala, expressão e execução artística. Contudo, a poiesis, enquanto linguagem, será a mãe de todas as línguas. Esta linguagem como mãe é o lugar e espaço do inter de toda disciplina. Se nas ciências em geral o inter da palavra interdisciplinaridade indica muito mais o entre-laçamento de disciplinas, nos estudos artísticos o inter quer chamar a atenção para a identidade em tensão com as diferenças, ou seja, tomando a interdisciplinaridade como uma rede, nas realizações artísticas, o acento não será só nas linhas e nós da rede, mas também no vazio dos buracos. Aí o vazio é o silêncio criador da fala da linguagem, ou seja, a identidade concreta de todas as artes.
Nesse novo horizonte de atuação, a Área de Poética tem promovido essa renovação que congrega todas as linguagens poéticas, como concretização da poiesis. Se a técnica como língua centraliza-se no significado, a linguagem da poiesis realiza mais o sentido. Falar-se de significado de música, dança etc. é difícil, senão impossível. Ninguém, no entanto, poderá negar o seu sentido. Por isso mesmo, é necessário ultrapassar o campo epistemológico, fundador das disciplinas e se abrir para o campo poético-ontológico, fundador do inter de toda disciplina.
A tensão entre técnica e poiesis, língua e linguagem, significado e sentido funda ontopoeticamente a interdisciplinaridade poética em sua concreticidade questionante.
A Área de Poética vem já realizando concreta e realmente a inter-disciplinaridade tão necessária para responder e corresponder aos novos tempos e demandas.

7 – O núcleo interdisciplinar de estudos poéticos

Diante dessa prática já bastante amadurecida e em pleno crescimento configura-se agora a possibilidade de institucionalizar o Núcleo interdisciplinar de estudos poéticos. Aberto a novas idéias, práticas e pesquisas, quer ser um horizonte inaugural de uma efetiva renovação dos saberes tradicionais e da reformulação e inovação do papel da Universidade, na dinâmica histórica que exige uma contínua reconfiguração dos saberes.

8. Professores participantes

MANUEL ANTÔNIO DE CASTRO - Poética – UFRJ
EMMANUEL CARNEIRO LEÃO – Poética - Prof. Emérito UFRJ
ANTÔNIO JARDIM – Música – UFRJ
MARTHA ALKIMIN – Teoria Literária - UFRJ
RONALDES DE MELO E SOUZA – Literatura – UFRJ
MARIA LÚCIA PINHEIRO GUIMARÃES – Teoria Literária - UFRJ
MARIA INÊS DE SOUZA CALFA – Dança - UFRJ
GILVAN FOGEL – Filosofia - UFRJ
LUITGARDE OLIVEIRA CAVALCANTI BARROS – Sociologia - UFRJ

Faculdade de Letras, 26 de agosto de 2006
Prof. Manuel Antônio de Castro – Titular de Poética - UFRJ

Universidade e núcleos: reflexões sobre a nova universidade

Universidade e Núcleos: Reflexões sobre a nova universidade
Prof. Manuel Antônio de Castro – Titular de Poética
Faculdade de Letras – UFRJ
www.travessiapoetica.com
http://travessiapoetica.blogspot.com

Universidade e Núcleos: Reflexões


1 - Apresentação

As presentes reflexões procuram responder e corresponder à dinâmica integradora do saber e do conhecimento numa sociedade do conhecimento em rede e de uma cultura globalizada em que hoje vivemos. Voltam-se também para uma visão crítica e assinalam alguns pontos a serem considerados se se quiser pensar uma universidade que corresponda a sua vocação original e aponte caminhos novos pela revitalização do impulso que a criou. Mais do que um modelo acabado têm por finalidade estas reflexões trazerem uma contribuição de questionamento que se una a outras para assumirmos a responsabilidade consciente de pensar uma universidade por vir, em consonância não só com nossos tempos, mas também tendo em vista a realidade e o mundo que queremos construir.

2 – A universidade

A uni-versidade surgiu quando se quis constituir um saber que abarcasse e, ao mesmo tempo, dissesse respeito ao todo da realidade, apreendendo na unidade a di-versidade de fenômenos e conhecimentos. Então o grande ponto de partida foi a pergunta pela physis, ou como entendemos hoje, a natureza, da qual se buscava o princípio de constituição, o que os gregos nomearam como arqué. A busca da arqué foi-se desdobrando em muitas princípios, questões e conceitos. E desde então é longa e complexa a maravilhosa história dessa procura. Porém, algo estranho aconteceu: perdeu-se a idéia de unidade, o conhecimento tendeu a se separar cada vez mais da natureza viva, multiplicou-se e multiplica-se em novas disciplinas, e pelo predomínio do conhecimento técnico levou a profundas transformações dos ecossistemas, de tal maneira que hoje seus efeitos ameaçam a mãe-Terra, pela teoria de Gaia, vida, origem e fonte de todos os seres-vivos. A universidade não se vê apenas diante do problema da proliferação incontrolável de disciplinas e seus conhecimentos, precisando urgentemente de uma nova organização e fins, mas também diante da questão mais profunda de tentar reencontrar o saber que lhe deu origem e é o seu motivo de ser. Para isso é necessário que ela integre saber e conhecimentos.

3 – Os fins da universidade

Tendo em vista uma nova universidade, deve-se nela procurar integrar, na formação do ser humano e na integração deste ao corpo social, o saber e o conhecimento e o possível exercício de ambos na vida social e pessoal, dentro de quatro pressupostos básicos integradores:
1º. A tensão criativa entre a realidade como um todo e o saber e o conhecimento ensinados e produzidos na Universidade;
2º. A formação do ser humano tendo em vista a experienciação de um saber e a prática de um conhecimento profissional e funcional que o integre no corpo social;
3º. A concretização de um saber mais integral, enquanto realização do que cada um é e o exercício pleno da cidadania, para que não haja separação entre o que se conhece e o que se é, nem entre pessoa e ser social;
4º. A realização de um saber e conhecimentos que integrem a Terra e a sociedade, tendo como referências a identidade humana e as diferenças culturais.
A universidade não pode ser uma ilha em meio a uma realidade em contínua transformação. No entanto, deve ser repensada como pólo de produção múltipla dos conhecimentos e do saber e, ao mesmo tempo, como o lugar de integração e reflexão pelas quais eles estejam a serviço do ser humano e da Terra como um todo.

4 - A universidade e o ser humano

Ao longo da sua preparação o ser humano deve procurar desenvolver seis dimensões:
1º. O pensar, como dimensão maior e permanente do criar e de realização pessoal;
2º. O raciocinar nas mais diferentes formas e possibilidades de criticar e conceituar;
3º. A capacidade comunicativa em suas diversas manifestações;
4º. A capacidade de ler, compreender e interpretar, fazendo de um tal ato algo radicalmente criativo e de auto-crescimento;
5º. O dom para a inovação, a invenção e a criação;
6º. A realização harmônica e plena do que cada um é: social, pessoal, profissional e afetivamente.
Estas seis dimensões são os pressupostos orientadores para a organização integrada da universidade em núcleos. O importante não é querer agrupar as disciplinas, mas achar para a rede interdisciplinar o horizonte comum aos nós e fios da rede. A imagem da rede com seus nós, fios e vazios quer acentuar que a constituição dos núcleos deve responder e corresponder efetivamente a demandas reais, tendo algo fundamental em comum. Por isso as disciplinas devem buscar esse algo em comum para depois se reunirem em núcleos. Só em seguida devem ser institucionalizadas, mas estabelecendo a possibilidade dinâmica de novas configurações. As práticas e as necessidades já existentes é que devem ser o horizonte da constituição de tais núcleos.

5 – A universidade e as projeções futuras

Nunca a uni-versidade precisou tanto do saber para dar conta da di-versidade de conhecimentos. Os três níveis em que atua a Universidade: acúmulo, transmissão e produção de conhecimentos passam hoje por uma transformação e expansão sem precedentes na história humana. Daí a necessidade de repensar a uni-versidade dentro dessa di-versidade quanto às suas quatro finalidades antes enumeradas.
Esse processo tradicional passa hoje por um fenômeno novo, exigindo da universidade atitudes e procedimentos novos, onde as divisões tradicionais não atendem mais a esta dinâmica. O saber sempre teve como característica fundamental o traço da permanência, enquanto Memória. Sua concretização se dava nos ritos míticos e nas festas. O saber transformou-se em conhecimento conceitual. Este traço permitia o ensino e a aplicação continuada. Hoje, a dinâmica da produção do conhecimento pelo investimento maciço em novas pesquisas introduz um componente novo: a obsolescência do conhecimento científico e técnico muito rapidamente. E, paradoxalmente, os conhecimentos conceituais vivem hoje de mudança. Por outro lado, é intensa a busca de paradigmas cada vez mais abrangentes e radicais, tentando dar conta daquela princípio e unidade que deu origem à uni-versidade. É nesse esforço que se inscreve a inter-disciplinaridade científica. Além do seu aspecto funcional diz respeito também aos próprios conhecimentos que ela desde sempre procura. Fica, porém, a questão se tais conhecimentos algum dia darão conta do saber em que se fundou a uni-versidade.
A necessária interdisciplinaridade traz conseqüências múltiplas e novas para a universidade: no plano do ensino, da acumulação, da profissionalização e da sua função social. Por isso a extensão tem de ser repensada e integrada totalmente no binômio ensino e pesquisa. Hoje ocorre uma nova verticalização das camadas sociais pelos novos conhecimentos e pelo acesso às novas técnicas, pela mutabilidade das profissões tradicionais, pela fragmentação, ampliação e especialização dos conhecimentos. A rede de conhecimentos tende a se fragmentar em muitos nós. Daí a necessidade radical da inter-disciplinaridade.
Isso muda completamente a tarefa e perfil da formação, pois acarreta custos sociais cada vez maiores para a formação de cada um pelo aumento do tempo de estudo, pela adaptação dos profissionais antigos aos novos conhecimentos e às novas técnicas, exigindo reciclagens contínuas.
Tudo se transforma pela globalização desses conhecimentos e pelos acessos facilitados pela internet. E traz a angústia da formação contínua, da falta de tempo para estudar e acompanhar os conhecimentos novos. E ainda ter tempo para a vida pessoal afetivo-familiar e cultural.

6 – As disciplinas e a universidade

O que hoje é evidente é a obsolescência das tradicionais divisões do conhecer. Qualquer nova divisão hierárquica que queira dar conta da complexidade dos conhecimentos em relação ao real, ao social e ao pessoal nos mais diferentes planos e níveis está fadada ao fracasso. A rede como teia de conhecimentos é a nova realidade. Platão inaugurou a organização do saber em três grandes epistemes: a da physis, a do logos, a do ethos. E com essas três divisões procurou achar, na realidade, um fundamento. E o achou. Pois a episteme do logos, enquanto razão e lógica – pressupostos do conhecimento científico - acabou por determinar as outras duas e se impor nos desdobramentos que ocorreram nas três, criando-se as diferentes e novas disciplinas, que se foram multiplicando pelo auto-desdobramento. A universidade nasce, na Idade Média, como resultado desse auto-desdobramento. A Modernidade nada muda essencialmente nesse modelo de organização das disciplinas. Há, apenas, uma ampliação e redistribuição pelo aprofundamento do modelo lígico-matemático-científico. Esse modelo precisa de uma reinvenção. E é seu maior desafio. A questão da interdisciplinaridade é a questão do método. Quanto a isso não pode haver ilusões. O que é o método?
Para tal é necessário achar alguns pontos de rumo. Porém, não podem mais ser grandes divisões do conhecimento em relação ao real, como por exemplo, ciências da natureza e ciências do espírito. Essa dicotomia já soa estranha e problemática. Também se deve questionar se essas divisões ainda são necessárias. Hoje, o fundo em comum é, sem dúvida, a constituição do conhecimento em rede, onde as denominações são muito precárias, porque o inter-relacionamento e sua necessidade são cada vez maiores. Com isso a instituição da disciplina isolada soa como algo obsoleto. Porém, o paradigma expresso nas metáforas da rede, nós e linhas não dá conta de toda a complexidade dos conhecimentos e saberes em relação à realidade enquanto mundo.

7 - Uma universidade atual e atuante

A universidade como lugar central desses processos precisa urgentemente ser repensada para responder e corresponder a essa dinâmica. Para tanto é importante:

5.1 - ser ágil, reduzindo o poder da burocracia ao indispensável;
5.2 - otimizar os custos cada vez mais crescentes;
5.3 - fazer fluir e circular os conhecimentos sem entraves burocráticos e organizacionais;
5.4 - otimizar os conhecimentos de ponta;
5.5 - otimizar o tempo dos que detêm os conhecimentos e podem multiplicá-los (técnicos, professores, pesquisadores e profissionais especialistas), ampliando o conceito de professor;
5.6 - repensar o espaço universitário, baseando-a em redes comunicativas e nós referenciais pela criação institucional de uma forte infra-estrutura de circulação do conhecimento, com a criação de núcleos/nós em rede informatizada, sem a necessidade de muitos espaços físicos, no que diz respeito à circulação dos conhecimentos;
5.7 - repensar o ensino como transmissão através de novos procedimentos:
- contato com o conhecimento através dos novos meios comunicativos e da disponibilidade da informação em larga escala, e facilmente acessível para os alunos;
- otimizar a potencialidade criativa de professores e alunos pela discussão e diálogo em sala de aula e em rede;
- reduzir as aulas tradicionais expositivas e repetitivas sobre o que já está largamente disponível, pois essa estrutura de ensino reflete tempos em que o acesso á informação era muito precário;
- um forte impulso no exercício da leitura e interpretação dos mais diferentes textos. Na compreensão do que se lê dá-se o termômetro do aprendizado, da capacidade compreensiva-crítica de da autopoiese;
- sair da concepção de formação como assimilação passiva e passar – pela metabolização e apropriação – para o aprendizado auto-poiético;
5.8 - que o contato entre professores e alunos passe por uma reformulação profunda, atendendo a essas novas realidades e, ao mesmo tempo, a cada tipo de ensino e sua dinâmica;
5.9 - que a nova universidade se mova em duas administrações: 1ª. A acadêmica, onde a rede e a disponibilidade do conhecimento dispensa a multiplicação de lugares e professores repetidores, atendendo a um maior número de alunos; 2ª. A administrativa, a que já existe hoje, simplificada pela organização em rede, com procedimentos padrões, circulação de processos, decisões e atendimento em rede;
5.10 - que se repense completamente o currículo dos alunos e o acesso às disciplinas, levando em conta: a duração, a profissionalização, a reciclagem, a atualização, a formação contínua, a criação de novas profissões, o atendimento a demandas sociais específicas, o planejamento de uma interface humana, social e econômica, uma forte formação humana e não apenas funcional-profissional;
5.11 - que nesse sentido, a universidade aja em três planos: inclusão pelo conhecer; diferenciação pelo domínio do conhecer; realização pela integração de conhecer e saber, com vistas à autopoiese tanto na dimensão profissional como na ético-humana.
5.12 - Repensar a relação universidade Polis numa integração transformadora e de desenvolvimento social, mas sem reduzi-la a uma função político-ideológica passageira. Isto pressupõe pensar a dimensão política inerente a todo conhecimento e saber.

8 – Núcleos: a formação em teia

Nota-se na natureza, mãe de todo saber e conhecimento, que cada ser humano se constitui como alguém com raízes, sejam físico-orgânicas, sejam familiares, sejam culturais, sejam de memória, ou seja, ser alguém é sempre se relacionar a partir de um nó na teia da vida, em múltiplas direções e relações, tanto verticais como horizontais. A rede é o corpo social e vital.
Assim sendo, o aprendizado do conhecimento se dá numa dinâmica de realização pessoal e de inserção social. A formação em raiz deve atender livremente às mais variadas demandas numa grande dinâmica de possibilidades de formação. Estes oferecimentos reais de conhecimento é que devem constituir os núcleos, mas as escolhas devem ser para cada um bastante livres. Claro, dentro da dinâmica do núcleo ou congregação de núcleos escolhidos. As raízes devem procurar naturalmente o alimento do conhecimento para o desenvolvimento pessoal e profissional. A tensão entre as cinco dimensões e sua otimização e os conhecimentos acumulados e desenvolvidos é que irá determinar a inclusão profissional e social, de acordo com as demandas dos novos conhecimentos e técnicas, bem como das necessidades sociais. Por isso, o trânsito entre os núcleos deve ser bastante livre, isto é, o currículo deve ser feito dentro de uma organização profissional includente e aberta, e de sua otimização.
Com isso deve-se procurar uma tensão e um equilíbrio entre os novos conhecimentos e técnicas, e as demandas sociais. A inclusão social é que irá dizer, pela demanda do conhecimento, da adequada formação de cada pessoa. Hoje lançam-se as pessoas no mercado com os diplomas, que não mais correspondem ao conhecimento demandado. Por outro lado, deve haver um equilíbrio entre o conhecimento demandado socialmente e a livre pesquisa e inovação, inerentes à universidade. A aplicação sempre resulta de teorias e pesquisas. A universidade deve produzir um conhecimento expansivo e inclusivo, ao mesmo tempo que se deve tornar também o lugar por excelência de um saber que leve cada um a uma aprendizagem. Só assim será uni-versidade, ou seja, um verter em direção ao todo, ao uno. Os núcleos devem conter e integrar os conhecimentos e o saber.
Com os núcleos, o aluno teria sempre possibilidades abertas de fazer novas disciplinas, até ser incluído social e profissionalmente. A nova organização do conhecimento, seu acesso e disponibilidade não trariam tantos custos e otimizariam o desempenho de cada um. A duração dos cursos dependeria dessa dinâmica de formação pessoal e demanda profissional, claro, com exames para avaliar o aproveitamento e mostrar até a necessidade de redirecionamento dos estudos, quando o aluno notar a sua inadequação ao que escolheu, e com metas de estudo e duração adequadas. Nesta nova dinâmica, o vestibular se torna obsoleto. O acesso universal seria regulado pela capacidade de acompanhamento e aprendizado, comprovado em exames rigorosos
A duração mínima ou máxima seria determinada pelo progressivo domínio das cinco dimensões, podendo, o aluno voltar livremente à universidade se constatasse que não consegue passar ou que está desempenhando mal uma ou mais dimensões em relação ao conhecimento que lhe é exigido profissionalmente. Essa constatação é que determinaria a escolha do núcleo ou uma ou mais disciplinas dentro dos núcleos. Os núcleos se constituiriam em rede, de tal maneira que o aluno pudesse ficar dentro do mesmo núcleo ou se inter-relacionar com os que achasse necessários. As atuais disciplinas se organizariam em torno dos diferentes núcleos. E aí seria notada a duplicação ou não. Com isto muitas podem ser suprimidas ou criadas novas.
Há um fato novo hoje muito patente: dependendo da disciplina, muito dos seus conhecimentos se tornam obsoletos diante de novas pesquisas e descobertas. Por que continuar a ensinar o que não é mais necessário? Esse aspecto da cultura precisa ser mais estudado e aprofundado. Esses conhecimentos ficariam na “memória”, para possíveis consultas, mas não seriam mais exigidos dos alunos. Mas isto depende muito dos núcleos de conhecimentos, pois o desempenho se nutre de um duplo processo: alimentação e metabolização do que se estuda. Ninguém tende a pensar e a raciocinar sem leitura e estudo que alimentem.

9 – Os núcleos

Hoje, a realidade cultural de cada povo passa por grandes transformações, em virtude do impacto revolucionário da computação no modo de produção, acumulação e transmissão dos conhecimentos e do exercício das profissões. E até no modo de conceber e experienciar o real e a própria realidade humana. Os meios tradicionais de acumulação e circulação, por conseqüência também da produção, tornam-se rapidamente obsoletos. Disto resulta que o passado perde em muito o seu valor de referência. Novos paradigmas têm de ser criados. Contudo, isto não ocorre em todos os saberes e conhecimentos, como, por exemplo, os das artes. Por isso, os núcleos não podem ser tratados através de uma idéia padrão. Deve haver di-versidade e riqueza na estruturação dos núcleos.
Esta realidade nova torna ainda mais complexa a reformulação dos currículos, indo muito além de uma mera redistribuição da grade curricular. Nesse sentido, qualquer reformulação pode-se tornar rapidamente obsoleta. É necessário prever uma grade dinâmica que esteja aberta às rápidas e grandes transformações por que passam os conhecimentos e as profissões. A par disso, assistimos ao esfacelamento da organização do conhecimento em múltiplas disciplinas estanques. Esse modelo levou ao paradoxo da especialização, tornando patente a sua necessidade e ao mesmo tempo as suas contradições. Aqui coloca-se a necessidade de se repensarem profundamente as relações em quatro níveis: a) as partes e o todo, e o todo em cada parte; b) a realidade-mundo, o conhecimento e o saber; c) a realidade-mundo, o conhecimento e o saber, diante do não-saber. Este é a presença inequívoca dos vazios da rede, dos seus buracos. A rede com seus nós e fios é uma doação do vazio. O “inter/entre aponta para esse vazio. Ele é uma dimensão nova a partir da qual se devem estabelecer diálogos abertos com o não-saber, com o vazio, com o próprio desafio do infinitamente pequeno e do infinitamente grande, com a complexidade da grande unidade que perfazem a natureza e o ser humano; d) pela abertura para uma nova postura entre os procedimentos da análise e da interpretação, onde o físico-orgânico, o biológico, o social, o psíquico, o poético-artístico e a memória sejam horizontes complementares. A sociedade em rede se constitui de sintaxes discursivas de conhecimentos emuldurados por vocabulários específicos. Tudo isso dificulta a comunicação e a convivência social.
Em última instância, todo conhecimento quer dar conta da realidade. A segmentação disciplinar exacerbada resultou, em muitos casos, em intransitividades, não da realidade, mas das disciplinas como teorias de conhecimentos. Os limites formais extremos exigiram a construção de pontes de acesso a campos que, supostamente, seriam de outras disciplinas. O avanço dessas disciplinas pressupõe o avanço con-junto. Só assim se retoma o horizonte de visibilidade, re-inserindo a atividade de aprendizado, prática profissional e produção do conhecimento no horizonte da realidade cultural global, para assegurar cada vez mais as diferenças e ao mesmo tempo a promoção de inclusão do ser humano como identidade no corpo social.
A esse agir con-junto pode-se chamar interdisciplinaridade. Tome-se, porém, cuidado. A justaposição de disciplinas não institui a inter-disciplinaridade, assim como a justaposição desordenada de tijolos num terreno não constrói por si uma casa. Na e pela casa os sistemas de relações e de conhecimentos são redimensionados na medida em que a casa se torna um lugar cujo sentido, como um todo, lhe é dado pela linguagem e não pela soma de discursos ou vocabulários. A linguagem é a identidade das diferentes redes, das relações e até dos vazios das redes, onde o ser humano perfaz sua realização. Ela é, portanto, uma re-ferência para além dos conhecimentos técnicos e culturais diferentes.

10 - Núcleos e inter-disciplinaridade

Na inter-disciplinaridade há dois pólos de referência:
1º) o das disciplinas e seus conhecimentos. São as diferentes redes com seus nós;
2º) o do “inter”, palavra latina que significa “entre” e que referencia o silêncio das falas e os vazios das redes. A realidade-mundo no seu todo é constituída em redes, fios, relações e vazios.
As disciplinas: o pólo das disciplinas poderíamos definir assim: são conhecimentos constituídos dentro de uma determinada teoria e visão do real, apreendidos e desenvolvidos em consonância com um determinado método. O método está estreitamente relacionado à teoria e esta ao método. Uma vez que método significa caminho-entre, poderíamos reunir as disciplinas quando perfazem o mesmo caminho ou caminhos semelhantes ou discursos, não esquecendo que estes caminhos/discursos são sempre caminhos do real, no real e para o real. Partamos da rede de conhecimentos. Centralizemos a nossa atenção nos fios da rede. Estes são: caminhos, conhecimentos e percursos do real, no real e para o real. Já podemos perceber que os fios se entrelaçam e se ligam por nós. Cada nó congrega diferentes fios. Um núcleo pode ser a confluência de nós e fios. O que identifica os nós e os fios? 1º. O discurso; 2º. A sintaxe; 3º. O caminho/teoria. Não são os conhecimentos, em primeiro lugar, que devem determinar ou ser princípio de constituição dos núcleos, mas as três características anteriores. Horizontalmente, a interdisciplinaridade deve necessariamente surgir desses entrelaçamentos, que constituem a rede e cobrem e apreendem dimensões do real social e humano.
A circulação dos conhecimentos e sua apreensão pelos alunos deve ter sempre em vista essa idéia de rede em movimento e constituição como circulação. E há outra idéia básica e fundamental para bem apreender a dinâmica das disciplinas e dos núcleos: essa rede é virtual, ou seja, se constitui no circular dos conhecimentos e discursos. Este circular deve deixar de lado o que ficou obsoleto, ou seja, deve ser sempre uma memória viva. O domínio dos discursos passa a ser fundamental. Significa então as cinco características a serem desenvolvidas em cada aluno/ser humano. Com isso se abandona de vez um princípio organizacional dos conhecimentos hoje ultrapassado: o da linearidade cronológica e causal. Isso é um ranço metafísico, ultrapassado por cada nova descoberta e configuração de conhecimento em rede, onde o “passado” não é determinante. O real virtual está em tensão com o real poético, no mover-se e no circular vivo, contínuo e concreto do saber e conhecimentos na rede, onde o “passado” pode se tornar um obstáculo e perda de tempo para o aluno, porque não implica seu conhecimento um relacionamento com o funcionamento atual da rede e a possível inserção social e atuação nela.
A presença do passado será determinada pelas necessidades presentes e não como um a priori de iniciação nos conhecimentos. Mas, por outro lado, a definição de passado e presente também não pode ser historiográfica e causal. Como memória não existe passado, mas algo já presentificado. Por exemplo, o conhecimento do grego e do latim é de uma atualidade sem par para o diá-logo de pensamento filosófico e literário com as criações gregas e latinas. O mesmo se pode dizer do hebraico para os estudos bíblicos. São memórias vivas e não simples conhecimentos “passados”. Ou seja, cada conhecimento articula discursos e ocupações de espaços na rede da realidade-mundo dentro de uma dinâmica que ultrapassa a historiografia. Hoje, as diversas histórias e as novas narrativas provam isso.
Na realidade, o que é fundamental para o aluno seria um questionamento do tempo e dos discursos em tono dele. As disciplinas têm, pois, uma relação próxima muito tensa, rica e dinâmica. Certamente, nesta configuração muitos conhecimentos das disciplinas têm que ser reconfigurados e até abandonados. É importante perceber que o conhecimento em rede não se dá na dinâmica de seu trafegar e circular no acúmulo de dados, mas muito mais, por parte do aluno, no desenvolvimento das cinco dimensões. Até porque, hoje, os conhecimentos são facilmente acessíveis nas diversas redes e bancos de dados. O que esses bancos de dados não dão é o “inter”. O que é o “inter”?

2º. O “inter” da inter-disciplinaridade (entre) pode ser entendido em dois sentidos.
a) Na rede diz respeito ao “fio” que une os “nós”, constituindo a “rede” ou “teia”. Um tal “inter” remete para “dis-cursos” processuais pelos quais se constitui cada organismo e os organismos entre si, em auto-organizações. O “lugar’ de um tal “inter” é dado pelo paradigma a partir do qual os nós e redes são dis-cursados e compreendidos. É um tipo de interdisciplinaridade paradigmática, que pode funcionar nos modelos científicos, nos conhecimentos conceituais.
B) Mas há outra interdisciplinaridade, na qual o “inter” apresenta um outro sentido. Para melhor entender este “inter” partamos de duas imagens ou metáforas. Uma imagem não é conceito. Ela abre o pensamento para o aberto das possibilidades, sendo, por isso, portadora de uma dinâmica criativa e questionante. Então estamos diante das questões.
Podemos comparar o “inter” a uma ponte. Esta supõe dois campos (disciplinas) que ela liga, mas também e, sobretudo um espaço vazio, a partir do qual se percebe o lugar, o recorte de cada disciplina. Este espaço vazio que nenhuma disciplina recobre também é real. Aliás, é nele e por ele que se percebem as diferentes disciplinas e o sentido da sua direção e afirmação. Na imagem da rede, seriam os buracos e o que permite à ponte tornar-se ponte. Este vazio é o horizonte a partir do qual cada disciplina se institui e estrutura como disciplina. Não é a disciplina que estrutura e institui o vazio do entre nem o buraco da rede. Sem este entre não há disciplina assim como sem buracos não há rede. Logo, toda rede se constitui no e a partir do “inter”, do entre. Que “entre” é este tão importante?
A articulação dos tijolos para a consecução de uma casa preciamente só é possível porque há um vazio que possibilita o aparecimento da casa enquanto casa e não de um simples amontoado de tijolos. A casa é, em si, uma figura ofertada pelo vazio, sem o qual a casa não seria casa. A casa enquanto casa se funda no “inter”. Notemos que os tijolos manifestam a visibilidade da casa, mas eles, em si, não são a casa, nem o vazio. Precisamos dos tijolos para a visibilidade tanto do que se mostra, a casa, como do que não se mostra, o vazio, ou seja, a rede em movimento só é possível ser apreendida e manipulada e discutida e modificada na medida em que nos abrimos para a presença ausente do vazio, dos buracos da rede. A rede de conhecimentos não aumenta por si, é uma doação do vazio, que se retrai para a rede se constituir e aparecer. Os conhecimentos são uma doação do não-saber. Esta dinâmica é muito fácil de perceber se notarmos que cada um já constitutivamente é e não-é, sabe e não-sabe, vê e não-vê, fala e escuta.
Nesta perspectiva, não há uma hierarquia entre um antes e um depois (rede), porque simplesmente não há um antes e um depois. Há a casa constituída por tijolos e sua figura disposta e ofertada pelo vazio, assim como há a rede constituída e seus discursos de conhecimentos dispostos e ofertados pelo vazio. Na realidade, há sempre as disciplinas e discursos e o “inter”, o “entre”. Conhecer, em realidade, é dominar o visível, o orgânico-sistêmico, em direção sempre ao não-visível, ao não-orgânico, ao não-sistema. Destes podemos apenas ter um saber. Dele não pode haver um aprendizado, só uma aprendizagem. Esta é a matéria-prima das obras de arte, pois elas se movem nas questões. Por isso não podem ser reduzidas a conceitos e qualquer discurso ou vocabulário científico lhe é estranho. Para isto existem as pesquisas e não apenas o ensino do já visto e sabido.
As casas variam muito de figura. O vazio das figuras é dinâmico. As pontes podem também, como as disciplinas, serem múltiplas. Elas serão erguidas onde se fizerem necessárias, como conexões nos limites das disciplinas e dos discursos. Mas cobram seu sentido não dos conhecimentos em si, mas do pensar no qual pode eclodir o sentido e a plenificação do ser humano e do corpo social. Ou seja, há os seres humanos, as redes sociais, a rede de conhecimentos e o vazio, no qual e a partir do qual se constituem as casas e seus habitantes: os seres humanos e as sociedades. A essa casa em rede podemos chamar sociedade humana ou corpo social. Nesse sentido, otimizar as dimensões humanas é o fim de toda otimização dos conhecimentos em rede, na medida em que podem fazer eclodir o ser humano em sua singularidade auto-poiética, enquanto ser sábio e ético. Por isso, não pode haver separação entre uns e outros.
Quem pode cumprir esta tensão de identidade como rede das diferenças é a uni-versidade, dando conta e promovendo a di-versidade. Este é o único fundo que deve presidir à distribuição dos conhecimentos em núcleos. A interdisciplinaridade pressupõe pontes. A estas pontes chamamos núcleos ou nós na rede. Cada ser humano como ser de limiar de finito e não-finito, de saber e não-saber encontra a sua essência nessa tensão. Esta tensão deve ser o horizonte de uma uni-versidade plena, onde conhecer, saber e ser se reúnam harmonicamente.
Para constituição dos nós/núcleos não se pode partir dos conhecimentos em si, mas de duas coordenadas: 1ª. A uni-versidade como identidade de di-versidades; 2ª. A tensão entre/conhecimentos saber, tendo como objetos/sujeitos desse processo os seres humanos, seus lugares, seus mundos e a Terra. Temos então como metas:
1ª. A otimização das dimensões humanas;
2ª. A inclusão social;
3ª. A harmônica operacionalização da rede em tensão com as sempre novas possibilidades do “inter”;
4ª. A otimização da rede em seu operar e circular para uma interação dos seres humanos em sociedade e do lugar dos conhecimentos, de uma tal maneira que haja uma circularidade recíproca;
A rede nunca poderá estar a serviço de interesses corporativos, de exclusão social, de destruição das condições ecológicas. A rede deve se mover, crescer e constituir num horizonte ético em que os conhecimentos e saberes se dimensionem pela otimização das potencialidades de todo ser humano, promovendo, sem uniformidade, tanto as diferenças quanto a fraternidade poético-ecológica.

11 - Os três níveis dos núcleos

Por sua vez, cada núcleo teria três níveis em suas disciplinas:
-1º. domínio dos conhecimentos enquanto conceitos básicos e seu questionamento;
-2º. domínio das variações dos conceitos presentes em diferentes pesquisas e teorias e seu questionamento;
-3º. abertura para a pesquisa, que corresponderia hoje aos cursos de pós, com predominância do questionamento e na proposição da inovação das teorias. Neste sentido, os conceitos seriam continuamente referenciados às questões básicas que deram e dão origem aos conceitos e à sua transformação e expansão contínuas. Portanto, o ponto de partida dos núcleos deve se centrar em questões, a que as diferentes disciplinas procuram responder e corresponder. A dinâmica histórica em todas as disciplinas mostrou que as questões básicas continuam sempre, mudando ou se ampliando apenas as teorias e os conceitos.

12 – Os núcleos e os currículos

Uma grade curricular montada em disciplinas é uma, em núcleos é outra. Os núcleos são dinâmicos como hoje o é a rede da sociedade do conhecimento, pois possibilitam diferentes ligações e percursos com diferentes disciplinas. Uma disciplina pode ser substituída por outra ligada ao núcleo. O que determinará essa composição e modificação serão as metas acima expostas da uni-versidade na di-versidade. Estas determinarão a constituição e troca das disciplinas e até a criação de novos núcleos e, ainda mais importante, a necessária “inter”-ligação dos núcleos, atendendo às demandas sociais e às transformações político-históricas. A vantagem é que essas trocas, previstas nos núcleos, são automáticas e rápidas. A burocracia nunca poderá impedir essa dinâmica nem a formação de pequenos grupos de poder institucionais.

13 – Conclusões

Partindo destas reflexões concluímos que:
- 1º. a grade curricular deve ser montada, tendo como referência núcleos;
-2º. são os núcleos e não as disciplinas isoladamente que devem atender ao binômio fundamental formação humano-profissional e inserção social;
-3º. a obrigatoriedade giraria essencialmente em torno dos núcleos e só acidentalmente de disciplinas, sempre de acordo com o binômio fundamental e a especificidade da profissão;
-4º. a programação de disciplinas por semestres ou anualmente atenderá à dinâmica dos núcleos, isto é, os responsáveis pelos núcleos é que elegeriam o elenco de disciplinas a serem oferecidas, podendo variar de semestre para semestre ou de ano para ano. Este oferecimento teria como parâmetro a dinâmica humano-profissional e necessidades sociais. Uma pré-matrícula de preferências dos alunos daria os parâmetros da inclusão ou exclusão do oferecimento das disciplinas;
-5º. aos núcleos poderiam ser sempre acrescidas novas disciplinas e inter-conexões com novos núcleos de acordo com a dinâmica da demanda e da otimização da formação humano-profissional e social;
-6º. uma vez que a formação deve ser humano-profissional, os núcleos deveriam atender também a essas duas facetas. Ao aluno caberia, pelas escolhas, acentuar um ou outro aspecto sem perder o equilíbrio. O exercício profissional deveria estabelecer os conhecimentos necessários, mas não perdendo de vista um equilíbrio com a formação humana. Isso só aparentemente tornaria mais longo e mais custoso a formação profissional, porque uma pessoa satisfeita e inteira em seu ser é sempre um melhor profissional e se insere mais rapidamente na práxis social;
-7º. as profissões baseadas em conhecimentos estanques estão hoje sendo rapidamente ultrapassadas e cada vez mais se exige uma formação interdisciplinar para atender às novas demandas sociais. A abertura dos núcleos atenderia perfeitamente a essa dinâmica;
-8º. todo currículo, de acordo com cada profissão, deveria ter uma obrigatoriedade mínima e uma escolha livre e ampla. A realidade social e suas demandas com as tendências e desejos pessoais é que seriam os parâmetros para o percurso do curso e, evidentemente, a otimização do desempenho profissional;
-9º. o preenchimento das vagas nos concursos sempre deveria constar de três partes nas quais fossem avaliadas numa profunda interligação:
- a) a formação humana;
- b) a competência profissional;
- c) a inclusão social. Que adianta ter um excelente técnico desajustado como ser humano e numa sociedade cada vez mais piramidal?
-10º. A liberdade inerente aos núcleos deveria ter como contrapartida a qualidade, pressuposta num número mínimo significativo de créditos e rígida avaliação. Essa liberdade seria um motivo a mais para a mais rápida conclusão da(s) habilitação(ões). Nesse sentido, o currículo deveria constar de um mínimo e de um máximo em aberto. Com isso, a dinâmica do conhecimento em rede determinaria para cada a sua otimização e inclusão diferenciada. Isso evitaria a descontinuidade entre os cursos da universidade e a dinâmica geométrica do conhecimento em rede. É importante acentuar que o aluno chegado a determinado nível não precisa mais de aulas expositivas, mas de aulas de discussão dialogante e de domínio de vocabulários. Para isso é fundamental atentar para uma nova dinâmica do ensino, em consonância com as novas realidades no que diz respeito à acumulação, transmissão e produção dos conhecimentos;
-11º. a contrapartida docente seria uma necessidade de atualização permanente, em consonância com a própria dinâmica do conhecimento em rede para uma sociedade do conhecimento humano e social;
-12º. A concepção do ensino tradicional baseada na oposição sujeito/objeto, professor/aluno deveria dar lugar a uma concepção poético-circular, mediada pelo diálogo, pois o que cada um conhece e sabe é sempre diferente, mas o que identifica a todos é o não-saber. É deste que falamos quando nos referimos ao vazio da rede. O não-saber é a possibilidade de chegar a ser o que ainda não se é;
-13º. o pano de fundo desta dinâmica passa necessariamente por um estudo e questionamento do real, da pólis e suas políticas e, do ser humano, tendo em vista as seguintes dimensões interligadas: conhecimentos, tempos, linguagens, discursos, memória, identidade, diversidade. Para isso é necessário ter sempre presente a questão que funda essas dimensões em sua variação: que o real é ao mesmo tempo mudança e permanência. E que estas são experienciadas sempre em todos os lugares e tempos como liminaridade de limite e não-limite. Essa ambigüidade fundamental deve ser o pano de fundo em que se inscreve uma nova uni-versidade para dar conta da di-versidade sem cair num sistema estanque nem num relativismo sem consistência;
- 14º. Neste pensamento que pensa a interdisciplinaridade em sua plenitude fazem-se presentes as dimensões poéticas.

Rio de Janeiro, 01 de setembro de 2006

05 setembro 2006

Perguntas sobre a entrevista de Rosa 05-09-06

Perguntas sobre a entrevista: Diálogo com Guimarães Rosa

A poética da poiesis segundo G. Rosa 05-09-06

Manuel Antônio de Castro

A Poética da poiesis como questão

Poiesis é um substantivo que se forma do verbo grego poiein. Este assinala no grego a ação de fazer diversificada, mas sobretudo a questão da essência do agir, daí estar ligada à poiesis, no sentido que hoje consideramos criação. Esta pressupõe um fazer surgir, um figurar algo a partir do nada, ou no pensamento mítico, a partir da Terra, e mais tarde a partir da physis. Mas o que é o nada, a Terra, a physis? São estas questões que remetem para a essência do agir. Poiesis é, pois, todo agir criativo ou essencial.

Do verbo poiein se formou o adjetivo poietikos, é, on. O feminino se substantivou e tornou-se he poitiké, ligada a outro substantivo grego: techné. Este substantivo significa fundamentalmente conhecimento. Qualquer técnica só é técnica enquanto pressupõe um determinado conhecimento. Mas a essência do agir também pressupõe um determinado “conhecimento”. Não um conhecimento técnico, ou melhor, é aquele “conhecimento” técnico que é fundado e impulsionado pela essência do agir. A esse “conhecimento” os gregos chamaram he sophia. Um exemplo simples dá logo para perceber a diferença. Podemos ensinar os conhecimentos matemáticos e outros, mas como ensinar os “conhecimentos” éticos? E estes são ensináveis? Quando algo pode ser aprendido e ensinado? Os gregos tinham um verbo que articulava essas duas ações que são, no fundo, uma só: o verbo mantano. Dele se originou nosso substantivo matemática. São os conhecimentos racionais passíveis de clareza e exatidão pela aplicação de medidas. Esses conhecimentos embora ensináveis não ensinam nem podem ensinar a agir. Por isso, como agir sem os “conhecimentos” éticos? Não são eles os mais importantes da nossa vida? Não é a partir deles que decidimos o que somos e não somos? He sophia é aquele “conhecimento” que se centraliza nos “conhecimentos éticos”, no agir ético, inerente a toda poiesis, pois toda ela é ética. Porém, aí o ético nada tem a ver com moral.

A techné também vai estar ligada à poiesis, mas ela se decide pela essência do agir. É, pois, uma techné num sentido elevado. Ela se denominou techné poietiké. O adjetivo poietiké se substantivou e tornou-se simplesmente Poética. Este emprego se originou de uma redução das reflexões essenciais de Aristóteles no seu tratado sobre o fazer poético a uma leitura metafísica. Contudo, as reflexões aristotélicas pela interpretação metafísica esqueceu quatro aspectos no estudo dessa obra:

a- Quando Aristóteles escreve esse tratado as obras poéticas já existiam e, inclusive, se baseia nelas para fazer as observações. Disto se conclui que são as obras que dão origem à Poética, melhor, a essa Peri poietikes technés. Logo, tomar estas regras como fundadoras e normas e modelos para as obras é um contra-senso, nem Aristóteles no todo de sua filosofia propõe isso;

b- As questões nela presentes estão elaboradas de acordo com os pressupostos filosóficos de Aristóteles. É impossível, portanto, entender suas questões poéticas sem o entendimento amplo de suas questões filosóficas;

c- Só se parte de uma primeira concepção aristotélica do “ente”, a que diz respeito ao orgânico, enquanto instrumento, utensílio, através das quatro causas, codificadas na Idade Média e tornadas padrões conceituais para a interpretação do ente e das obras de arte, sobretudo através das causas material e formal. Aristóteles tem outras interpretações do “ente”. Mas tais conceitos fizeram a fortuna crítica do Ocidente, no aspecto formal e político-ideológico, junto com os conceitos de Platão, sobretudo o da unidade da obra orgânica;

d- Na Poética faltam observações, pois eram anotações para discussão, sobre outras artes presentes na encenação das tragédias, como o canto, a dança, a música. Mas estas artes são essenciais e perfazem um todo com a arte da palavra. Deve haver uma inter-disciplinaridade;

Abandonando toda tradição metafísica platônico-aristotélica, Hölderlin, no final do século XVIII, retoma as obras a partir do vigor da essência do agir, isto é, da poiesis. E o que ele faz? Critica e substitui o conceito de unidade orgânica da obra de arte platônico-aristotélico e propõe a unidade poética do orgânico e do não-orgânico (aórgico). Ele resgata a tensão da physis/poiesis pela qual toda obra de arte radica tanto mais no orgânico quanto mais se move a partir do não-orgânico (aórgico). E que exemplo poderíamos dar do não-orgânico de toda obra de arte? É o caso do silêncio de toda obra musical. Esta surge do silêncio/não-orgânico, eclode a partir deste vigor no desvelamento e no aberto livre da clareira como o som manifestante da physis enquanto ente, para voltar e se recolher no silêncio/não-orgânico abrigante e velado da physis. O Nada-silêncio de toda “physis que ama velar-se” (Heráclito) é o horizonte de onde eclode todo sentido da obra musical (e não e jamais a partir da forma, da matéria e da causa final, como se define a obra metafisicamente). Nessa tensão desvelante/velante era como os gregos experienciavam as obras poéticas. Quando assistiam a Édipo Rei, de Sófocles, pouco ou nada estavam interessados na sucessão de eventos e no seu desenlace (conforme Aristóteles argumenta na Poética), até porque já sabiam muito bem pelo mito o que acontecia a Édipo. O que eclodia então no diálogo poético de obra/encenação/assistentes? Era a experienciação do sentido do limite e do ilimitado da travessia de Édipo como manifestação da verdade, que era a condição de cada um, ou seja, da tensão do orgânico e do não-orgânico, da fala e do silêncio, do ver e não-ver, do saber e do não-ser, enfim, de eros e thanatos. E então o sentido da essência do agir de todo homem se desvelava poeticamente. Temos aí uma Poética da poiesis. Temos aí o ethos enquanto sentido do agir e da sabedoria.

Na leitura do tratado de Aristóteles se fez uma enorme confusão, porque o termo substantivo era techné, o que dizia respeito a todo e qualquer conhecimento, ou como dizemos ainda hoje, aos conhecimentos técnicos nos mais amplos sentidos e aplicações. Há técnica para tudo. E o que indicava propriamente o adjetivo poietiké, um “conhecimento” especial, ficou esquecido. Passou-se a falar em Poética e se entendeu, na verdade, Techné, ou seja, conhecimentos meramente técnicos sem a dimensão da poiesis. Isso ficou bem claro na tradução para o latim. Estes, que não tinham o hábito do pensamento filosófico, ainda acrescentaram maior confusão, ao traduzirem techné por ars, ou seja, arte. Esta tradução põe todo o acento na techné. Daí se entendeu a arte como a techné poetiké, mas onde o principal não estava mais na poiesis como essência do agir, mas nos conhecimentos técnicos de fazer poesia, onde o fazer diz respeito às formas, à unidade orgânica. O aórgico é omitido e silenciado. Este aspecto técnico é o que predominou no entendimento da Poética. Esta inversão e simplificação esqueceu e silenciou a poiesis, a essência do agir, o ethos, he sophia: a sabedoria. Um desvio e esquecimento fatal para a trajetória do entendimento da arte no ocidente metafísico. Porque esses desvios são resultantes da simplificação e das dicotomias metafísicas.

Sabedoria é aquele conhecimento que se dá e se move na essência do agir enquanto todo e qualquer agir ético. Porque ético, de ethos – morada -, diz todo e qualquer agir que se dá no âmbito da morada, isto é, em nossa referência ao Ser enquanto linguagem, na qual e pela qual nosso agir, nosso morar, o abrigarmo-nos, se dá sob a proteção, desvelamento e velamento do Ser. O homem é um ser ético porque está constitutivamente aberto ao Ser, mora na morada do Ser, a Linguagem, isto é, na abertura que ele já desde sempre tem para o Ser e só por isso é homem, isto é, é o ser do entre, do limiar. É a diferença ontológica. Nessa morada, nessa referência é que se dá o agir do ethos, a sophia. Nele e por ele somos e não somos. Isso nada tem a ver com moral ou princípios de comportamento institucionalizados em sistemas prévios a todo agir. Por isso é que se discute a ética da ciência, porque está em jogo o ser humano em seu destino e o controle da humanidade pela manipulação do código genético.

Como a Poética ficou reduzida aos conhecimentos técnicos, exercitados pela crítica, pelas teorias literárias e pelas estéticas, tendo esquecido e silenciado a poiesis, é necessário dizer Poética da poiesis, para significar que não se trata nela de regras, conhecimentos críticos ou teóricos, mas do resgate da essência do agir como poiesis. Além disso, ao resgatarmos e acentuarmos o lugar central da poiesis, queremos ainda dizer algo muito mais fundamental: a essência do agir produz o homem, a poiesis produz o poeta e os poemas. O agir do poeta consiste fundamentalmente em auscultar e obedecer à fala da poiesis, da essência do agir, do poiein. Pela poiesis se decide o sentido do Ser do homem. Isso a ciência não faz, porque se orienta pelo sentido meramente racional e orgânico do homem, onde o conhecimento, porque matemático, pode ser ensinado e aprendido. No aspecto racional e orgânico são enormes os benefícios da ciência e indispensáveis hoje em dia. Mas eles não podem por em perigo a própria Terra e o ser humano pelos diversos controles do real virtual. O perigo maior está em se reduzir o real e o homem à dimensão matemática. Mas pode o homem viver sem o ético do ethos? É necessário tensionar o racional orgânico com o não-orgânico, como práxis, pois dessa tensão se origina o sentido do Ser do homem.

Disto resulta algo fundamental: Na Poética da poiesis não há conhecimentos técnicos prévios, críticos ou teóricos. Há, sim, uma tensão entre techné e poiesis, na qual a techné é tanto mais techné quanto mais deixa eclodir a poiesis, pois esta para eclodir em poemas e em obras tem que instituir “perai”, isto é, limites, pelos quais a obra como obra aparece como o limite do que se vela ao se desvelar como obra, no livre aberto da clareira da physis. Isto fica muito claro no verbo latino fingere: talhar, dar figura a toda matéria (lembrando o famoso verso de Fernando Pessoa: “O poeta é um fingidor”). Fictor é o escultor. Sua raiz, fig- diz o figurar a partir de Terra e da clareira. A Terra eclodindo em figuras é o fingere. Mas a mãe Terra como Terra se desvela e vela no eclodir como tal ou tal figura no aberto da clareira, assim como a mulher-Mãe se desvela e vela como Mãe ao eclodir em cada filho. A obra é o operar desse velar e desvelar: a verdade. A esta tensão de desvelar e velar é o que os gregos chamaram verdade/aletheia. Evitamos o verbo formar, porque este em latim já diz o fazer a partir de uma fôrma, e não a essência do fingere. Ao fingere corresponde o grego poiein. A poiesis, ao eclodir como obra, se dá como verdade. Que verdade? A da poiesis, a da sophia. Não é uma verdade de um conhecimento técnico, mas ético, ou seja, do Ser do homem. Disto decorre uma conclusão muito simples: cada obra realiza e concretiza a poiesis de uma maneira absolutamente original e originária, senão não é obra da poiesis. Tratar, pois, da Poética da poiesis, é, na figuração da obra na clareira da floresta, apreender sempre o vigor da physis/logos/poiesis, enquanto orgânico e não-orgânico, e jamais como forma e matéria, porque na Poética da poiesis se trata sempre da essência do agir, o ético: he sophia. Nela e por ela, os conhecimentos técnicos são tratados e lidos no horizonte da poiesis. Isso tem que ser indagado em cada obra que de fato seja obra de arte, que traga uma figuração e configuração original da experienciação do real, do Ser, da mãe Terra (orgânico/não-orgânico). Pensar essa experienciação é pensar a Poética da poiesis de cada obra artística.

É nesse sentido que podemos falar da Poética da poiesis de Rosa, Poética da poiesis de Clarice Lispector etc., onde qualquer classificação prévia é desnecessária, inútil e, sobretudo, silenciadora da poiesis. É uma tarefa fácil? Não é, porque somos educados para trabalhar com conceitos, com idéias prévias, com matéria e forma, com a luz da razão inerente ao orgânico, com aplicações e classificações práticas, com clichês, com nomenclaturas gerais, com a determinação da poiesis a partir de conhecimentos das diversas disciplinas instituídas pelos conhecimentos técnicos e científicos, com pesquisas científicas previamente estabelecidas em teorias, mas que não fundam e nem podem fundar a essência do agir, o ethos, o ético.

Falar de, tratar de e pensar a Poética da poiesis é se mover no horizonte da liminaridade, da finitude (peras) e não finitude de todo homem, na qual e pela qual tanto mais abordamos os conhecimentos técnicos dados e configurados nas obras quanto mais os questionamos a partir da atração do que como poiesis se vela em todo horizonte, ou seja, quanto mais somos atraídos e determinados em nosso agir pela essência do agir, pelo ethos, pela poiesis. A esta os gregos chamaram he sophia. Como se vê, não se excluem os conhecimentos técnicos, mas estes são vistos e transfigurados pela techné do extraordinário, da physis: a poiesis do ethos como sophia. E em que consiste propriamente a Poética da poiesis? Ela se configura em torno das grandes questões do homem, do mundo e do real, mas onde e sempre a questão das questões é como essas questões se dão e manifestam no horizonte do próprio agir poético, ou seja, da poiesis enquanto poiesis. Essa questão tem recebido na modernidade a denominação auto-referenciação. Ela sempre existiu, desde que há poetas, homens. Esse auto da referenciação é que foi lido em diversos sentidos. Mas ele trata, no fundo, e sempre, da referenciação do lugar e da essência do agir, da tensão do orgânico e do não-orgânico de toda physis. É o posicionamento em relação ao próprio fazer poético, onde se destacam três posições: as técnicas, a vida poética e a linguagem como tal. Elas se transformam em questões no horizonte de todo grande artista, porque aí auto significa fundamentalmente: o próprio, o mesmo (não do poeta, mas do que faz com que o poeta seja poeta, da essência do agir). Este decide da identidade da obra e automaticamente da do próprio artista. Portanto, diz tanto respeito ao poeta como poeta como também à poiesis. O mesmo articula assim a identidade e as diferenças. Podemos então notar que na Poética da poiesis as questões se articulam entre si num círculo poético. Não se trata, portanto, de fazer de fora uma reflexão sobre essas questões, mas de, pelo agir da reflexão, entrar no círculo do agir da poiesis. Este entrar não significa ir de fora para dentro, mas de começar a se mover no mesmo vigor circular do vigor da essência do agir, isto é, da poiesis. E isto sempre na liminaridade do orgânico e do não-orgânico. A essa reflexão do e no agir denominamos diálogo poético.

A poética da poiesis de Guimarães Rosa

A Poética da poiesis deve ser buscada sempre e principalmente nas próprias obras, pois é onde ela acontece. Mas de G. Rosa temos também um importantíssimo diálogo com um crítico que ele admirava muito. E aí aparece outra faceta da Poética da poiesis: o lugar do crítico como leitor, ou noutras palavras, o lugar da interpretação, a que denominamos: diálogo poético. Eis algumas das questões pro-postas pelo leitor-crítico e as respostas de Guimarães Rosa. Iremos formular as questões em forma de perguntas. Cabe a você, leitor, procurar as respostas no decorrer do diálogo.

As questões

1 – Qual a grande questão da obra de Rosa? (10, 64, 65, 66, 79) Qual a importância, para Rosa, do fato de ter nascido no sertão? Que sentido ou sentidos dá ele ao sertão? Por que se torna a grande questão? (23)

2 – Como ele relaciona biografia e obra poética, e qual a escala de valores e seu mundo? (15-17, 30, 31, 32, 40)

3 - O que ele acha da poesia profissional e por que volta à saga? (24) Qual a relação desta declaração de Rosa com a temática do sertão? (23 e 24)

5 – Qual a posição do autor sobre: língua, dicionários, gramática e lingüística? (25, 67, 68, 69)

6 – O que ele fala da “inspiração” (musas) e do trabalho, da disciplina, do estudo? (26, 29, 50, 56, 57)

7 – Qual a relação entre diabo, solidão, vida e literatura? (31, 32, 80) Como ele relaciona literatura e vida? (61, 62)

8 – Qual o “credo” de Rosa e sua relação com a poética? (35)

9 – Qual o lugar da crítico (leitura como diálogo poético)? (37, 38, 39)

10 – O que Rosa diz da política e como isso se reflete nas obras? (1, 2, 3, 4, 5, 42, 43)

12 – Uma poética se faz fundamentalmente na referência com a língua, pois ela implica um mundo poético novo. Qual a referência de Rosa com a língua? (23, 24, 51, 55, 60)

13 – Qual a oposição que faz entre reacionário e revolucionário? Como ele entende então a criação poética? Como interpreta o futuro em relação à língua e à obra? (63)

14 – Como Rosa se refere à identidade brasileira? O que entender por identidade? (75, 76, 77)

15 – Quais as três grandes vias ou veredas pelas quais se indaga no que é? (77) Como Rosa define Riobaldo e por que ele se identifica com ele? (87, 89)

16 – Como define sabedoria e que relação tem com a poética de Rosa? (77, 78 79)

18 – Como Rosa define leitura-intrpretação e tradução? (88)

19 – Rosa diz na resposta 70: “Pode entender literalmente o que acabo de lhe dizer e acrescentá-lo à minha poética” (69, 70, 71, 72, 73):

a) Segundo Rosa, o que é Poética? Por que podemos dizer que é uma Poética da poiesis?

b) Onde podemos buscar uma tal poética?

c) O que poética tem a ver com biografia pessoal/personalidade?

d) Segundo Rosa o que é a verdadeira biografia?

e) Como se estabelece a relação entre biografia/personalidade, poética e identidade?

f) Que referência se estabelece entre língua, memória, identidade e criatividade?

Nestas questões e nestas respostas temos o que propriamente com-põe uma Poética da poiesis. Podemos notar que não há nenhuma regra ou norma geral, a não ser a posição original e originária desse criador excepcional que se chama João Guimarães Rosa.

23 agosto 2006

A leitura e o uso de dicionários

A interpretação de textos e o uso de dicionários - 13-03-06

Prof. Manuel Antônio de Castro

www.travessiapoetica.com

. A leitura de um texto, poema, conto, romance nos lança num mundo poético através do entre-tecer das palavras e verbos numa sintaxe poética. Na tessitura do discurso se dão inter-stícios muitas vezes só acessíveis pela reflexão em torno de algumas palavras fundamentais, verdadeiramente poéticas, isto é, que se tornam núcleos de sentidos múltiplos, verdadeiras imagens-questões. No todo, a obra como tal reúne todos esses sentidos múltiplos e ainda produz novos, numa interação poética do todo e das partes. Essas possíveis interações são semelhantes às existentes num percorrer uma rede, ou melhor, enquanto obra viva, o viver a teia artística da vida.

Para mover-se aí enquanto ato de leitura tudo isso é muito complexo, mas podemos apontar dois caminhos de reflexão mais imediatos:

a - Quando procuramos saber como se originou a denominação de “palavra”, nada nos pode indicar a sua “estranha” formação, pois a sua visibilidade por causa da escrita ou a percepção através dos sons da fala acabam por nos lançar numa apreensão somente sensível e imediata. É então que a “etimologia” (o que é verdadeiro) nos conduz pelos caminhos e veredas tortas da “linguagem”, para além e aquém do simples e imediatamente sensível. Não há sensível sem o sentido dos sentidos.

Palavra vem do grego e se formou através do prefixo pará: junto a, cerca de, entre. E seu radical é formado do verbo ballein: lançar, pôr. Disto decorre que a palavra não é algo substancial, mas a força e ação de lançar, pôr junto a, cerca de, entre. Este “entre” indica a liminaridade, o limite instável entre fala E escuta, escrita E sentido, língua E linguagem, ser E não ser, em que todo ser humano como ser-do-entre já desde sempre está lançado e existe. A palavra assinala sempre uma mobilidade instável do real como linguagem, na medida em que o ser humano, como doação da linguagem, é essencialmente um ser liminar, ou seja, um ser-do-entre;

b – Fazemos parte de uma grande rede, a teia da vida. O ser humano, nesta teia, é o real, a “natureza” se doando como linguagem enquanto palavra, na medida em que o doar é o próprio ato criador, a que se denomina poiesis. O sentido do ser que doa o ser-humano e seu sentido é a palavra nomeadora enquanto linguagem da poiesis. A linguagem é dizendo o sentido do ser do ser-humano, ou seja, é palavra. Esta nos lança, põe na dinâmica da memória e do tempo. Como tecido verbal a palavra tece e entre-tece a vida da memória em três instâncias: hypo-texto, hiper-texto e inter-texto (inter=entre). Disso decorre que toda leitura se alimenta dessa complexa teia de sentidos e caminhos verticais e horizontais uma vez que a vida é a poiesis ou ação em seu sentido manifesto nas palavras da linguagem.

Enquanto memória e tempo os significados e os sentidos das palavras, cotidianos e restritos ao código, não nos permitem apreender toda a sintaxe poética em que o real se configura no texto. Fazem-se, pois, necessários os dicionários.

2º. Há seis tipos de dicionário que podem, e muitas vezes devem, ser consultados se se quer um diálogo mais profundo com as possibilidades poéticas. Isso não quer dizer que podemos esgotar os sentidos poéticos do texto. Não. É o que nos diz o poeta Drummond, contemplando a poesia das palavras:

Lutar com palavras

É a luta mais vã.

Entanto lutamos

Mal começa a manhã.

São muitas, eu pouco ... “O lutador”

E numa outra dimensão o reafirma no poema “Procura da poesia”:

........................................................................................

Penetra surdamente no reino das palavras

........................................................................................

Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma tem mil faces sob a face neutra ...

Para seguir o conselho poético é que é necessário consultar os dicionários, mas não como receita e, sim, como possíveis caminhos indicativos. Às vezes as palavras se apresentam em diferentes significados semânticos, outras, tornam-se metá-foras. A relação entre as metáforas e as palavras pode-se dar em dois níveis complementares: a- a formação da palavra metáfora me mostra que ela, como a própria palavra, se move numa força de ação fundamental, pois metá, prefixo grego, diz o entre, o através de. E o radical -fora vem do verbo fero, que diz: levar, conduzir. Ou seja, toda metáfora é um conduzir pelo vigor e ambigüidade do entre, na medida em que é lançado e posto e levado pelo entre da palavra; b – a presença do entre (ambíguo) na palavra e na metáfora faz desta uma imagem poética, como se diz normalmente. Para expressar a presença e força da imagem poética diz-se que as obras de arte são simbólicas. Esta palavra também se forma do grego, em que o sim tem sua origem no prefixo grego: syn, que reúne, junto e em companhia de. Já o radical –bólicas vem do mesmo verbo ballein (pôr e jogar), presente no radical de palavra. Ou seja, em todo símbolo um jogar, um pôr que reúne. Reúne o quê? O que as palavras e as metáforas manifestam do real em sua ambigüidade (na medida em que o ser humano se move, vive na liminaridade e é um ser-do-entre). Então a imagem poética mostra a sua ambigüidade na medida em que ela é imagem-questão. A palavra e imagem poética manifestam o real como questões. Essas questões do real e do ser humano nos advêm como e na linguagem poética como palavras e metáforas. Linaguagem, em seu sentido grego, isto é, derivado do verbo legein (de onde se formou o substantivo logos) significa reunir e só porque reúne é que pode dizer. A tal reunião enquanto linguagem da poiesis é que se dá o nome de sintaxe poética. Para melhor apreender as questões da imagens-questões foi criado uma dicionário especial: o simbólico. Mas os mitos também são essencialmente imagens-questões. Então a consulta de um dicionário de mitos é fundamental. Além disso, na medida em que cada imagem ou figura configura questões é necessário consultar um dicionário de poesia e pensamento.

Mas fique claro que nem todos os significados estão dicionarizados. Os poetas e pensadores criadores desentranham novos sentidos, que o uso dos dicionários não trarão. O que fazer então? Simples. Ler como escuta essas palavras e apreender os seus sentidos a partir do todo da obra ou ensaio, porque todo criar é um auscultar da poiesis da linguagem enquanto sentido do ser e é nesta essência do agir que a obra se denomina obra, ou seja, a que opera. Por que opera? Porque desvela o sentido do ser, ou seja, sua verdade. A um tal operar da verdade se denomina: real.

Os dicionários

A - Há o dicionário normal de significados das palavras. Ele trata dos diferentes empregos semânticos das palavras. Dependendo da sintaxe poética, um ou mais significados podem elucidar os sentidos do texto. É importante ter presente que a sintaxe diz respeito à interconexão das palavras pelas quais o real se nos faz presente, mas sempre numa dinâmica múltipla, como se o real nos aparecesse como uma rede, um tecido. Os diferentes significados semânticos servem para ligar entre si os diversos nós e linhas de conexão e passagens, mas também os enigmáticos buracos vazios do discurso/texto enquanto rede. Não há rede sem os vazios. Como chegar ao vazio da rede? Faz-se necessário apelar para outro tipo de dicionário;

B - Para além dos significados semânticos, as palavras também recebem novos significados dentro das diferentes teorias filosóficas e até das ciências. Não se trata mais de significados semânticos, mas de conceitos filosóficos ou científicos. Para ter acesso a esses conceitos faz-se necessário a consulta a um bom dicionário de filosofia, onde haja uma bibliografia e a referência às obras dos grandes pensadores que deram origem aos conceitos. Mas fique bem claro que uma mesma palavra pode ter diferentes conceitos. Às vezes, um conceito filosófico se torna a chave pela qual se abrem as portas das múltiplas faces das palavras nos textos. Como hoje a ciência está mudando muito é essencial que os conceitos científicos também sejam consultados. A título de exemplo. Os biólogos Varela e Maturana criaram o conceito novo em biologia: autopoiese. No caso do conceito de representação, tão divulgado em teoria literária e correntes críticas, esse novo conceito de biologia vem destruir qualquer pretensão da representação.

C - Nem sempre temos todo acesso às palavras consultando esses dois tipos de dicionários. É que para além da semântica, dos conceitos, há também as questões e as imagens-questões. Uma questão é algo em que estamos lançados e que não podemos nunca resolver, só conviver alegre ou dolorosamente com ela. É o caso, por exemplo, da necessidade, da morte, do amor, do tempo, da alegria, da dor etc. etc. Quando se trata de um questão, então, é necessária outro dicionário. Guimarães Rosa, esse mágico das palavras, em entrevista a um crítico alemão disse o seguinte:

[Nós sertanejos] Chocamos tudo o que falamos ou fazemos antes de falar ou fazer... E também choco os meus livros. Uma palavra, uma única palavra ou frase podem me manter ocupado durante horas ou dias ... Os livros nascem quando a pessoa pensa; o ato de escrever já é a técnica e a alegria do jogo com as palavras.

Estas afirmações de Rosa mostram-nos que as palavras podem e devem ser chocadas. Para chegar a esse núcleo vital do qual nascem as palavras e obras é que é necessário muitas vezes consultar um Dicionário etimológico (mas não só, faz-se necessário abrir-se para a escuta da criação que irrompe como linguagem e poiesis). A palavra grega etymon diz o que é verdadeiro. A palavra poética manifesta o real como verdade. Então muitas vezes para chegar a esse núcleo verdadeiro é que o precisamos consultar a etimologia. Mas o que procurar e como aproveitar o essencial, para que não se torne mera ginástica filológica? Quando consultamos uma palavra em sua etimologia, buscamos um ou mais sentidos que ficaram submersos, mas vigoram ainda em seu frescor inaugural, em sua força poética originária, como tempo originário. A interpretação de um texto em seus sentidos profundos depende muitas vezes dessa densidade da palavra em seu sentido etimológico. Citaria um exemplo importante para o estudante de literatura. É a palavra ficção. Vem do verbo latino: fingere. Consultando o dicionário latino, encontramos quatro significados principais: fingir, formar, imaginar, educar. Eles têm uma origem comum, que podemos encontrar na sua etimologia. Propriamente, fingere significa modelar na argila. Figulus é o oleiro. Fictor é o escultor. Daí se generalizou para qualquer ato de manipular, por ex., uma figura, ou modelar, seja externa ou internamente. Passou então a significar imaginar, apresentar, o talhar, o modelar a terra e o ser humano ou real.. Como tal, é criar a partir do nada, do vazio, do que ainda não há. Toda ficção é, pois, uma construção do real a partir do vazio, da Terra. A ficção se torna, verificando a densidade dessa palavra na etimologia, algo real e verdadeiro. Não podemos esquecer aqui que “Deus” fingiu, ficcionou (criou do nada) o ser humano a partir da argila (Terra). No mito de Cura, é a própria Cura que também ficciona, figura o ser humano a partir da argila da Terra. Por isso diz Rosa: Primeiro há meu método que implica na utilização de cada palavra como se ela tivesse acabado de nascer, para limpá-la das impurezas da linguagem cotidiana e reduzi-la a seu sentido original (isto só é possível pela reinvenção etimológica, ou seja, a partir de seu etymon ou núcleo poético.

A densidade etimológica de cada palavra levou nosso grande Rosa a acrescentar:

Hoje, um dicionário é ao mesmo tempo a melhor antologia lírica. Cada palavra é, segundo sua essência, um poema. Pense só em sua gênese. No dia em que completar cem anos, publicarei um livro, meu romance mais importante: um dicionário. Uma palavra densa é uma palavra grávida de sentidos.

D - Como as palavras criam nova densidade em seu vigor metafórico, tornando-se imagens-questões, é muito importante, dependendo do caso, consultar um dicionário de símbolos. Mas os símbolos ou alegorias só se tornam poeticamente fecundas se as apreendermos como imagens-questões.

E - Além disso os próprios mitos são essencialmente imagens-questões, por isso é também importante consultar diferentes dicionários de mitos ou, ainda melhor, os próprios mitos. Porém, é importante acentuar que as imagens-questões não são nem do poeta nem das obras objetivamente tomadas. Obra diz o que opera. Para a obra operar é necessário que as suas imagens-questões nos atraiam e nos lancem no vigor das questões que nos propõem, para que elas se tornem nossas, isto é, experienciando-as nos apropriemos do que nos é próprio, o ser que nos foi dado. Desse diálogo de leitura é que nascem as interpretações como leituras criativas.

F - Se o leitor bem notou, o convite à reflexão para enriquecimento interpretativo das leituras exige de cada um a união e reunião de poesia e pensamento, onde o pensar poético se faça poesia pensante. Se bem prestou atenção às citações acima de Rosa, poesia e pensamento fazem uma perfeita simbiose. O mesmo foi afirmado por Fernando Pessoa: “Na palavra, a inteligência dá a frase, a emoção o ritmo. Quando o pensamento do poeta é alto, isto é, formado de uma idéia que produz uma emoção, esse pensamento, já de si harmônico pela junção equilibrada de idéia e emoção, e pela nobreza de ambas, transmite esse equilíbrio de emoção e de sentimento à frase e ao ritmo, e assim, como disse, a frase súbdita do pensamento que a define, busca-o, e o ritmo, escravo da emoção que esse pensamento agregou a si, o serve” (Poesia de Álvaro de Campos. Nota Preliminar, p. 297, in: Fernando Pessoa, obra poética. Rio de Janeiro, Aguilar, 1965). E também o que nos afirma Martin Heidegger: Por isso diz Heidegger: “Os dicionários não dizem nada do que dizem as palavras na experiência originária de pensamento. Por isso, neste caso, como nos demais, não é verdade que o nosso pensamento viva de etimologias. Vive, antes, de pensar a atitude vigorosa daquilo que as palavras, como palavras, nomeiam de forma concentrada. A etimologia, junto com os dicionários, ainda pensa pouco demais” (A coisa. In: Ensaios e conferências. Petrópolis, Vozes, 2002, p. 152).

Procurando essa união de poesia e pensamento estou elaborando um dicionário com esse título, para ser consultado na internet. Em breve estará no ar. Mande um email para profmanuel@gmail.com e mandarei, quando estiver no ar, o endereço.

Dicionários – Indicações

1º. Aurélio ou Houaiss (Em português).

2º. FERRATER MORA, José. Diccionario de filosofia. Madrid, Alianza Editorial, 1981.

3º. FARIA, Ernesto. Dicionário escolar latino-português. Ministério de Educação e Cultura.

4º. KÖHLER, Pe. H. Dicionário escolar latino-português. Porto Alegre, Globo.

5º. PEREIRA, Isidro S.J. Dicionário grego-português e português-grego. Porto, Apostolado da Imprensa.

6º. BAILLY, A. Dictionnaire grec-français. Paris, Hachette.

7o. ERNOUT, A. et MEILLET, A. Dictinonnaire étymologique de la langue latine. Paris, Klincksieck.

8º. CHANTRAINE. P. Dictionnaire étymologique de la langue grecque. Paris, Klincksieck.

9º. BRANDÃO, Junito. Dicionário mítico-etimológico. Petrópolis, Vozes.

10º. KLUGE – etymologisches Wörterbuch der deutschen Sprache. 24.e. Berlin, Walter de Gruyter, 2002.

11º. CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dictionnaire des symboles – mythes, rêves, coutumes, gestes, formes, figures, couleurs, nombres. Paris, Seghers e Jupiter, 1973, 4 volumes.