05 setembro 2006

Perguntas sobre a entrevista de Rosa 05-09-06

Perguntas sobre a entrevista: Diálogo com Guimarães Rosa

A poética da poiesis segundo G. Rosa 05-09-06

Manuel Antônio de Castro

A Poética da poiesis como questão

Poiesis é um substantivo que se forma do verbo grego poiein. Este assinala no grego a ação de fazer diversificada, mas sobretudo a questão da essência do agir, daí estar ligada à poiesis, no sentido que hoje consideramos criação. Esta pressupõe um fazer surgir, um figurar algo a partir do nada, ou no pensamento mítico, a partir da Terra, e mais tarde a partir da physis. Mas o que é o nada, a Terra, a physis? São estas questões que remetem para a essência do agir. Poiesis é, pois, todo agir criativo ou essencial.

Do verbo poiein se formou o adjetivo poietikos, é, on. O feminino se substantivou e tornou-se he poitiké, ligada a outro substantivo grego: techné. Este substantivo significa fundamentalmente conhecimento. Qualquer técnica só é técnica enquanto pressupõe um determinado conhecimento. Mas a essência do agir também pressupõe um determinado “conhecimento”. Não um conhecimento técnico, ou melhor, é aquele “conhecimento” técnico que é fundado e impulsionado pela essência do agir. A esse “conhecimento” os gregos chamaram he sophia. Um exemplo simples dá logo para perceber a diferença. Podemos ensinar os conhecimentos matemáticos e outros, mas como ensinar os “conhecimentos” éticos? E estes são ensináveis? Quando algo pode ser aprendido e ensinado? Os gregos tinham um verbo que articulava essas duas ações que são, no fundo, uma só: o verbo mantano. Dele se originou nosso substantivo matemática. São os conhecimentos racionais passíveis de clareza e exatidão pela aplicação de medidas. Esses conhecimentos embora ensináveis não ensinam nem podem ensinar a agir. Por isso, como agir sem os “conhecimentos” éticos? Não são eles os mais importantes da nossa vida? Não é a partir deles que decidimos o que somos e não somos? He sophia é aquele “conhecimento” que se centraliza nos “conhecimentos éticos”, no agir ético, inerente a toda poiesis, pois toda ela é ética. Porém, aí o ético nada tem a ver com moral.

A techné também vai estar ligada à poiesis, mas ela se decide pela essência do agir. É, pois, uma techné num sentido elevado. Ela se denominou techné poietiké. O adjetivo poietiké se substantivou e tornou-se simplesmente Poética. Este emprego se originou de uma redução das reflexões essenciais de Aristóteles no seu tratado sobre o fazer poético a uma leitura metafísica. Contudo, as reflexões aristotélicas pela interpretação metafísica esqueceu quatro aspectos no estudo dessa obra:

a- Quando Aristóteles escreve esse tratado as obras poéticas já existiam e, inclusive, se baseia nelas para fazer as observações. Disto se conclui que são as obras que dão origem à Poética, melhor, a essa Peri poietikes technés. Logo, tomar estas regras como fundadoras e normas e modelos para as obras é um contra-senso, nem Aristóteles no todo de sua filosofia propõe isso;

b- As questões nela presentes estão elaboradas de acordo com os pressupostos filosóficos de Aristóteles. É impossível, portanto, entender suas questões poéticas sem o entendimento amplo de suas questões filosóficas;

c- Só se parte de uma primeira concepção aristotélica do “ente”, a que diz respeito ao orgânico, enquanto instrumento, utensílio, através das quatro causas, codificadas na Idade Média e tornadas padrões conceituais para a interpretação do ente e das obras de arte, sobretudo através das causas material e formal. Aristóteles tem outras interpretações do “ente”. Mas tais conceitos fizeram a fortuna crítica do Ocidente, no aspecto formal e político-ideológico, junto com os conceitos de Platão, sobretudo o da unidade da obra orgânica;

d- Na Poética faltam observações, pois eram anotações para discussão, sobre outras artes presentes na encenação das tragédias, como o canto, a dança, a música. Mas estas artes são essenciais e perfazem um todo com a arte da palavra. Deve haver uma inter-disciplinaridade;

Abandonando toda tradição metafísica platônico-aristotélica, Hölderlin, no final do século XVIII, retoma as obras a partir do vigor da essência do agir, isto é, da poiesis. E o que ele faz? Critica e substitui o conceito de unidade orgânica da obra de arte platônico-aristotélico e propõe a unidade poética do orgânico e do não-orgânico (aórgico). Ele resgata a tensão da physis/poiesis pela qual toda obra de arte radica tanto mais no orgânico quanto mais se move a partir do não-orgânico (aórgico). E que exemplo poderíamos dar do não-orgânico de toda obra de arte? É o caso do silêncio de toda obra musical. Esta surge do silêncio/não-orgânico, eclode a partir deste vigor no desvelamento e no aberto livre da clareira como o som manifestante da physis enquanto ente, para voltar e se recolher no silêncio/não-orgânico abrigante e velado da physis. O Nada-silêncio de toda “physis que ama velar-se” (Heráclito) é o horizonte de onde eclode todo sentido da obra musical (e não e jamais a partir da forma, da matéria e da causa final, como se define a obra metafisicamente). Nessa tensão desvelante/velante era como os gregos experienciavam as obras poéticas. Quando assistiam a Édipo Rei, de Sófocles, pouco ou nada estavam interessados na sucessão de eventos e no seu desenlace (conforme Aristóteles argumenta na Poética), até porque já sabiam muito bem pelo mito o que acontecia a Édipo. O que eclodia então no diálogo poético de obra/encenação/assistentes? Era a experienciação do sentido do limite e do ilimitado da travessia de Édipo como manifestação da verdade, que era a condição de cada um, ou seja, da tensão do orgânico e do não-orgânico, da fala e do silêncio, do ver e não-ver, do saber e do não-ser, enfim, de eros e thanatos. E então o sentido da essência do agir de todo homem se desvelava poeticamente. Temos aí uma Poética da poiesis. Temos aí o ethos enquanto sentido do agir e da sabedoria.

Na leitura do tratado de Aristóteles se fez uma enorme confusão, porque o termo substantivo era techné, o que dizia respeito a todo e qualquer conhecimento, ou como dizemos ainda hoje, aos conhecimentos técnicos nos mais amplos sentidos e aplicações. Há técnica para tudo. E o que indicava propriamente o adjetivo poietiké, um “conhecimento” especial, ficou esquecido. Passou-se a falar em Poética e se entendeu, na verdade, Techné, ou seja, conhecimentos meramente técnicos sem a dimensão da poiesis. Isso ficou bem claro na tradução para o latim. Estes, que não tinham o hábito do pensamento filosófico, ainda acrescentaram maior confusão, ao traduzirem techné por ars, ou seja, arte. Esta tradução põe todo o acento na techné. Daí se entendeu a arte como a techné poetiké, mas onde o principal não estava mais na poiesis como essência do agir, mas nos conhecimentos técnicos de fazer poesia, onde o fazer diz respeito às formas, à unidade orgânica. O aórgico é omitido e silenciado. Este aspecto técnico é o que predominou no entendimento da Poética. Esta inversão e simplificação esqueceu e silenciou a poiesis, a essência do agir, o ethos, he sophia: a sabedoria. Um desvio e esquecimento fatal para a trajetória do entendimento da arte no ocidente metafísico. Porque esses desvios são resultantes da simplificação e das dicotomias metafísicas.

Sabedoria é aquele conhecimento que se dá e se move na essência do agir enquanto todo e qualquer agir ético. Porque ético, de ethos – morada -, diz todo e qualquer agir que se dá no âmbito da morada, isto é, em nossa referência ao Ser enquanto linguagem, na qual e pela qual nosso agir, nosso morar, o abrigarmo-nos, se dá sob a proteção, desvelamento e velamento do Ser. O homem é um ser ético porque está constitutivamente aberto ao Ser, mora na morada do Ser, a Linguagem, isto é, na abertura que ele já desde sempre tem para o Ser e só por isso é homem, isto é, é o ser do entre, do limiar. É a diferença ontológica. Nessa morada, nessa referência é que se dá o agir do ethos, a sophia. Nele e por ele somos e não somos. Isso nada tem a ver com moral ou princípios de comportamento institucionalizados em sistemas prévios a todo agir. Por isso é que se discute a ética da ciência, porque está em jogo o ser humano em seu destino e o controle da humanidade pela manipulação do código genético.

Como a Poética ficou reduzida aos conhecimentos técnicos, exercitados pela crítica, pelas teorias literárias e pelas estéticas, tendo esquecido e silenciado a poiesis, é necessário dizer Poética da poiesis, para significar que não se trata nela de regras, conhecimentos críticos ou teóricos, mas do resgate da essência do agir como poiesis. Além disso, ao resgatarmos e acentuarmos o lugar central da poiesis, queremos ainda dizer algo muito mais fundamental: a essência do agir produz o homem, a poiesis produz o poeta e os poemas. O agir do poeta consiste fundamentalmente em auscultar e obedecer à fala da poiesis, da essência do agir, do poiein. Pela poiesis se decide o sentido do Ser do homem. Isso a ciência não faz, porque se orienta pelo sentido meramente racional e orgânico do homem, onde o conhecimento, porque matemático, pode ser ensinado e aprendido. No aspecto racional e orgânico são enormes os benefícios da ciência e indispensáveis hoje em dia. Mas eles não podem por em perigo a própria Terra e o ser humano pelos diversos controles do real virtual. O perigo maior está em se reduzir o real e o homem à dimensão matemática. Mas pode o homem viver sem o ético do ethos? É necessário tensionar o racional orgânico com o não-orgânico, como práxis, pois dessa tensão se origina o sentido do Ser do homem.

Disto resulta algo fundamental: Na Poética da poiesis não há conhecimentos técnicos prévios, críticos ou teóricos. Há, sim, uma tensão entre techné e poiesis, na qual a techné é tanto mais techné quanto mais deixa eclodir a poiesis, pois esta para eclodir em poemas e em obras tem que instituir “perai”, isto é, limites, pelos quais a obra como obra aparece como o limite do que se vela ao se desvelar como obra, no livre aberto da clareira da physis. Isto fica muito claro no verbo latino fingere: talhar, dar figura a toda matéria (lembrando o famoso verso de Fernando Pessoa: “O poeta é um fingidor”). Fictor é o escultor. Sua raiz, fig- diz o figurar a partir de Terra e da clareira. A Terra eclodindo em figuras é o fingere. Mas a mãe Terra como Terra se desvela e vela no eclodir como tal ou tal figura no aberto da clareira, assim como a mulher-Mãe se desvela e vela como Mãe ao eclodir em cada filho. A obra é o operar desse velar e desvelar: a verdade. A esta tensão de desvelar e velar é o que os gregos chamaram verdade/aletheia. Evitamos o verbo formar, porque este em latim já diz o fazer a partir de uma fôrma, e não a essência do fingere. Ao fingere corresponde o grego poiein. A poiesis, ao eclodir como obra, se dá como verdade. Que verdade? A da poiesis, a da sophia. Não é uma verdade de um conhecimento técnico, mas ético, ou seja, do Ser do homem. Disto decorre uma conclusão muito simples: cada obra realiza e concretiza a poiesis de uma maneira absolutamente original e originária, senão não é obra da poiesis. Tratar, pois, da Poética da poiesis, é, na figuração da obra na clareira da floresta, apreender sempre o vigor da physis/logos/poiesis, enquanto orgânico e não-orgânico, e jamais como forma e matéria, porque na Poética da poiesis se trata sempre da essência do agir, o ético: he sophia. Nela e por ela, os conhecimentos técnicos são tratados e lidos no horizonte da poiesis. Isso tem que ser indagado em cada obra que de fato seja obra de arte, que traga uma figuração e configuração original da experienciação do real, do Ser, da mãe Terra (orgânico/não-orgânico). Pensar essa experienciação é pensar a Poética da poiesis de cada obra artística.

É nesse sentido que podemos falar da Poética da poiesis de Rosa, Poética da poiesis de Clarice Lispector etc., onde qualquer classificação prévia é desnecessária, inútil e, sobretudo, silenciadora da poiesis. É uma tarefa fácil? Não é, porque somos educados para trabalhar com conceitos, com idéias prévias, com matéria e forma, com a luz da razão inerente ao orgânico, com aplicações e classificações práticas, com clichês, com nomenclaturas gerais, com a determinação da poiesis a partir de conhecimentos das diversas disciplinas instituídas pelos conhecimentos técnicos e científicos, com pesquisas científicas previamente estabelecidas em teorias, mas que não fundam e nem podem fundar a essência do agir, o ethos, o ético.

Falar de, tratar de e pensar a Poética da poiesis é se mover no horizonte da liminaridade, da finitude (peras) e não finitude de todo homem, na qual e pela qual tanto mais abordamos os conhecimentos técnicos dados e configurados nas obras quanto mais os questionamos a partir da atração do que como poiesis se vela em todo horizonte, ou seja, quanto mais somos atraídos e determinados em nosso agir pela essência do agir, pelo ethos, pela poiesis. A esta os gregos chamaram he sophia. Como se vê, não se excluem os conhecimentos técnicos, mas estes são vistos e transfigurados pela techné do extraordinário, da physis: a poiesis do ethos como sophia. E em que consiste propriamente a Poética da poiesis? Ela se configura em torno das grandes questões do homem, do mundo e do real, mas onde e sempre a questão das questões é como essas questões se dão e manifestam no horizonte do próprio agir poético, ou seja, da poiesis enquanto poiesis. Essa questão tem recebido na modernidade a denominação auto-referenciação. Ela sempre existiu, desde que há poetas, homens. Esse auto da referenciação é que foi lido em diversos sentidos. Mas ele trata, no fundo, e sempre, da referenciação do lugar e da essência do agir, da tensão do orgânico e do não-orgânico de toda physis. É o posicionamento em relação ao próprio fazer poético, onde se destacam três posições: as técnicas, a vida poética e a linguagem como tal. Elas se transformam em questões no horizonte de todo grande artista, porque aí auto significa fundamentalmente: o próprio, o mesmo (não do poeta, mas do que faz com que o poeta seja poeta, da essência do agir). Este decide da identidade da obra e automaticamente da do próprio artista. Portanto, diz tanto respeito ao poeta como poeta como também à poiesis. O mesmo articula assim a identidade e as diferenças. Podemos então notar que na Poética da poiesis as questões se articulam entre si num círculo poético. Não se trata, portanto, de fazer de fora uma reflexão sobre essas questões, mas de, pelo agir da reflexão, entrar no círculo do agir da poiesis. Este entrar não significa ir de fora para dentro, mas de começar a se mover no mesmo vigor circular do vigor da essência do agir, isto é, da poiesis. E isto sempre na liminaridade do orgânico e do não-orgânico. A essa reflexão do e no agir denominamos diálogo poético.

A poética da poiesis de Guimarães Rosa

A Poética da poiesis deve ser buscada sempre e principalmente nas próprias obras, pois é onde ela acontece. Mas de G. Rosa temos também um importantíssimo diálogo com um crítico que ele admirava muito. E aí aparece outra faceta da Poética da poiesis: o lugar do crítico como leitor, ou noutras palavras, o lugar da interpretação, a que denominamos: diálogo poético. Eis algumas das questões pro-postas pelo leitor-crítico e as respostas de Guimarães Rosa. Iremos formular as questões em forma de perguntas. Cabe a você, leitor, procurar as respostas no decorrer do diálogo.

As questões

1 – Qual a grande questão da obra de Rosa? (10, 64, 65, 66, 79) Qual a importância, para Rosa, do fato de ter nascido no sertão? Que sentido ou sentidos dá ele ao sertão? Por que se torna a grande questão? (23)

2 – Como ele relaciona biografia e obra poética, e qual a escala de valores e seu mundo? (15-17, 30, 31, 32, 40)

3 - O que ele acha da poesia profissional e por que volta à saga? (24) Qual a relação desta declaração de Rosa com a temática do sertão? (23 e 24)

5 – Qual a posição do autor sobre: língua, dicionários, gramática e lingüística? (25, 67, 68, 69)

6 – O que ele fala da “inspiração” (musas) e do trabalho, da disciplina, do estudo? (26, 29, 50, 56, 57)

7 – Qual a relação entre diabo, solidão, vida e literatura? (31, 32, 80) Como ele relaciona literatura e vida? (61, 62)

8 – Qual o “credo” de Rosa e sua relação com a poética? (35)

9 – Qual o lugar da crítico (leitura como diálogo poético)? (37, 38, 39)

10 – O que Rosa diz da política e como isso se reflete nas obras? (1, 2, 3, 4, 5, 42, 43)

12 – Uma poética se faz fundamentalmente na referência com a língua, pois ela implica um mundo poético novo. Qual a referência de Rosa com a língua? (23, 24, 51, 55, 60)

13 – Qual a oposição que faz entre reacionário e revolucionário? Como ele entende então a criação poética? Como interpreta o futuro em relação à língua e à obra? (63)

14 – Como Rosa se refere à identidade brasileira? O que entender por identidade? (75, 76, 77)

15 – Quais as três grandes vias ou veredas pelas quais se indaga no que é? (77) Como Rosa define Riobaldo e por que ele se identifica com ele? (87, 89)

16 – Como define sabedoria e que relação tem com a poética de Rosa? (77, 78 79)

18 – Como Rosa define leitura-intrpretação e tradução? (88)

19 – Rosa diz na resposta 70: “Pode entender literalmente o que acabo de lhe dizer e acrescentá-lo à minha poética” (69, 70, 71, 72, 73):

a) Segundo Rosa, o que é Poética? Por que podemos dizer que é uma Poética da poiesis?

b) Onde podemos buscar uma tal poética?

c) O que poética tem a ver com biografia pessoal/personalidade?

d) Segundo Rosa o que é a verdadeira biografia?

e) Como se estabelece a relação entre biografia/personalidade, poética e identidade?

f) Que referência se estabelece entre língua, memória, identidade e criatividade?

Nestas questões e nestas respostas temos o que propriamente com-põe uma Poética da poiesis. Podemos notar que não há nenhuma regra ou norma geral, a não ser a posição original e originária desse criador excepcional que se chama João Guimarães Rosa.