29 maio 2007

Telos e sentido





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O que é telos? Esta palavra grega é muito rica de sentidos e ocupa um lugar central no pensamento de Aristóteles.
No ensaio “O problema da “Poética” de Aristóteles”, diz Emmanuel Carneiro Leão:

A integração de penhor e bem constitui e perfaz o sentido, to telos, do empenho na dinâmica da ação. Costuma-se traduzir telos por meta, fim, finalidade. Todavia telos não diz nem a meta a que se dirige a ação, nem o fim em que a ação finda, nem a finalidade a que serve a ação. Telos é o sentido, enquanto sentido implica princípio de desenvolvimento, vigor de vida, plenitude de estruturação. Assim o telos, o sentido, de toda ação é consumar a atitude, é o sumo desenvolvimento do vigor em sua plenitude. A atitude, como a consumação de todos os sentidos das ações, to teleiotaton, é, pois, a perfeita integração de penhor e bem. Aprendendo a pensar II, 156, Vozes, 1992.

A grande dificuldade de pensar o telos está no fato de que ele já é entendido quase sempre dentro da interpretação do “on” a partir das quatro causas. Esta foi a interpretação que Aristóteles fez não do “on” como tal, mas deste como utensílio. A interpretação do utensílio foi usada para a interpretação da obra de arte, gerando, evidentemente, numerosas confusões. No que diz respeito às quatro causas, ou seja, ao utensílio, é essencial que esclareçamos bem a questão do telos, porque é ele que determina o entendimento das outras causas. Quando pensamos o “on” como meta já temos em vista a determinação das causas como instrumentos pelos quais possamos atingir a meta. Daí a interpretar o “on” como instrumento é um passo. Isso ocorre sobretudo na questão da técnica como ela é entendida modernamente. O “on” (ente-sendo) e os “onta” (os entes) como um todo, ou seja, a natureza (physis), passam a ser instrumentos no sentido de “ta onta/physis” (os entes) serem simplesmente reduzidos a disposições disponíveis para atingir metas. Daí a classificação em: 1º. Recursos naturais; 2º. Recursos humanos; 3º. Recursos cognitivo-informacionais. Neste terceiro âmbito, todo o conhecimento produzido nas universidades está limitado à produção de conhecimento/informações pelas quais se operam e transformam “ta onta/natureza” em recursos naturais e recursos humanos. Nesse sentido, a própria linguagem se vê reduzida a essa possibilidade: tornar-se meio de informação, ou seja, a sua redução a um instrumento comunicativo-informacional. Isso fica bem claro no fato de que a linguagem se reduz ao código, pelo qual os emissores operam a comunicação mandando mensagens para os receptores. Este tratamento da linguagem/logos decorre da correlação entre o “on” e o seu enunciado como logos, enquanto pro-posição. Essa redução do logos a um meio funcional está no próprio fato de que o “entre” do diá-logo, ou seja, o diá-, é, de fato, um através nas mais diferentes situações e em diversos sentidos. Esse fato evidente e imediato, sobretudo, pela interpretação do “on” como utensílio e da comunicação como a ligação através da linguagem de emissor e receptor ainda é reforçada pelo fato de que esse “através de” como primeiro sentido do diá- tem na apreensão do tempo linear e cronológico a mais forte experiência de cada um, seja no decorrer dos dias e dos anos, seja na sucessão de tudo ininterruptamente. Tudo isso possibilita e leva à interpretação do logos a partir do prefixo diá- e não este a partir do logos, enquanto mundo e memória. Uma tal interpretação ainda foi reforçada pela interpretação da dialética hegeliana (tese/antítese/síntese), quando lida na chave do progresso, do caminhar para um fim, onde haveria a apropriação do real como conceito absoluto, ou na leitura marxista simplificada, no se estabelecer a caminhada da aventura humana para uma sociedade sem classes. Por outro lado, a forte percepção do “on” a partir da junção das quatro causas e de essência e aparência, oriunda do primeiro conceito de “on”, visto na experiência do real a partir do judaísmo-cristianismo, acentuou esta interpretação do “on” como história da salvação e também como um fundamento que se identifica com o criador e com Deus, no sentido do ser de todos os entes, que não deixa de ser ainda um ente supremo.
Desse modo, a interpretação de telos como meta, fim e finalidade tem múltiplas vertentes e é extremamente forte e difícil de ver claramente as outras possibilidades. Nesse sentido, a lugar dos conhecimentos e dos conceitos se torna quase imbatível. É muito difícil perceber o que os conceitos têm de essencial e o que os conceitos escondem. E é isto que se torna decisivo para uma abertura para as questões, o que significa, uma abertura para a experienciação das artes.
Para pensar o sentido essencial de telos é necessário penetrar profundamente em tudo isso e, sobretudo, repensar a questão da história, o que significa repensar a questão do tempo. Talvez a melhor maneira de repensar o tempo seja repensar a memória. O que é isto – a memória? Para tentar responder a esta questão não podemos partir do tempo, mas fazer a inversão, compreender o tempo a partir da memória. É que aí estaremos já compreendendo o próprio ser e conhecer, pois a memória é o cuidado da unidade, ou seja, do que foi, é e será. Neste horizonte, o ser é uma doação da memória enquanto ela se doa no foi, é e será. Ora, estamos sempre no é, no presente, que é o doar-se para os gregos como aion. Tomando o presente como permanente ponto de partida – e haverá outro possível? -, veremos que podemos tomar dois caminhos:
1º. O que parece mais natural e corriqueiro é o da linearidade, o do conhecimento, no qual no presente conquistamos o passado tendo em vista o futuro. Toda ciência trabalha nesta chave. Dominando o real enquanto conhecido busca através da acumulação e da transmissão a conquista permanente do futuro. A ciência é sempre progressista, investe no futuro, pesquisa o não-conhecido enquanto o futuro, o a-ser-conquistado, daí a forte idéia de linearidade e progresso e evolução. Esta possibilidade em que o real se dá é inegável e inútil tentar desmerecê-la. O interessante de hoje é que esse futuro ficou apagado e ensombrecido pelas metas, de que já falamos acima. As metas como tais não têm outro sentido senão serem metas do um progresso e de um bem geral de crescimento. Ninguém se pergunta: crescer para quê? Cresce a ciência e cresce o capital. É claro que há uma pressão muito grande e real relacionada com o emprego dos jovens e o círculo da produção, reprodução e do consumo. Nisso tudo se gera um grande círculo vicioso, porque a interpretação do telos se perdeu numa de suas facetas, a não essencial.
2º. É preciso trazer para reflexão essa faceta essencial: o logos do diá-logo não se reduz ao diá- enquanto através de, meio, pois o sentido essencial é manifestar a realidade como a verdade da não-verdade, como o aparecimento a partir do velamento. E isso vai estar estreitamente relacionado com o sentido originário de telos. A relação então de telos e memória vai estar no fato de que a memória, enquanto o cuidado da unidade, nos remete para o presente enquanto a vigência do futuro como possibilidade não realizada no passado, no conhecido, no desvelado. É de dentro dos próprios conceitos que temos que adentrar as questões como os seus interstícios. Só quando nos movemos nos conceitos podemos nos abrir para as questões que já desde sempre possibilitam a manifestação dos conceitos como o que se dando se retrai, as questões. É no conhecido e no dito procurar o não-conhecido e o não-dito de todo conhecido e de todo dito. Ou seja, é procurar no passado enquanto dito e conhecido o futuro enquanto o não-dito e o não-conhecido. Aqui não há linearidade nem progresso, porque o não-conhecido e o não-dito sempre se esquiva a todo conhecido e a todo dito. Então aí a memória vigora como a memória originária do que foi, é e será, onde o que foi, é e será provém do que sempre se dando se retrai. Neste horizonte, a memória é o tempo originário das artes e das diferentes experienciações do sagrado. E é nas experienciações do sagrado que podemos chegar a experienciar o não-saber de todo saber, a não-verdade de toda verdade, a meta, o fim e a finalidade de todo telos, isto é, do telos como princípio. É o que vamos ver.
Portanto, só podemos entender o que é telos se pensamos o sentido e se pensamos o sentido como princípio. Então se coloca a questão: o que é princípio? É isto que desenvolvi a propósito da tradução da palavra alemã Ursprung. Eis o que escrevi:

Ursprung: originário como arché ou princípio

A questão do originário já os gregos a pensaram desde sempre como arché. Nos tempos míticos (e algum dia os tempos deixaram de ser míticos? Talvez só na aparência) tudo era experienciado como um contínuo principiar permanecendo e um contínuo permanecer principiando. Diz Emmanuel Carneiro Leão:

Início não é princípio. Início é alavanca. Remete-nos ao empuxo e arranque com que uma coisa começa. Enquanto princípio é origem [originário]. Remete-nos à fonte donde uma coisa brota. O início, mal inicia, e já está superado. Desaparece e fica para trás nas peripécias do processo de criar e produzir. O princípio, ao contrário, surge e se impõe ao longo de todo processo, pois só alcança a plenitude no fim. Início é o princípio em busca de realização, fim é o princípio plenamente realizado como princípio. Quem começa muito, quem inicia muitas coisas, nunca chega ao princípio. É que nós, seres finitos, somos sempre definidos. Temos necessidade de definições [conceitos]. Nunca poderemos começar com o princípio. E por quê? Porque já estamos sempre imersos no princípio. Por isso mesmo, para sabermos que estamos, onde estamos, temos de começar invariavelmente com o início, com algo, portanto, que nos descubra e princípio, que nos mostre a origem, que nos desvele a fonte. É esta espécie de início, este tipo de começo que nos proporciona o discurso, quando nos surpreendemos no curso da Arte ou nos deparamos no percurso da Filosofia. Pois tanto a Filosofia como a Arte são o esforço que fazemos para tomarmos e entrarmos na posse do que já nos é sempre dado. Colocamos o discurso no início para chegarmos onde desde sempre já estamos. O caminho mais longo, tão longo que dura toda a caminhada da vida, é aquele que nos leva ao mais próximo. E é a última caminhada a que nos deixa no princípio (In: Revista Tempo Brasileiro, 64, jan.-mar., 1981, p. 42).

A melhor maneira, pensamos, de traduzir Ursprung é partir dessas distinções do pensador. Ursprung tanto pode significar origem como originário, daí ser passível de ser mal compreendido. Todas as traduções que consultamos optaram por traduzir por origem. Para apreender o sentido de Ursprung não se pode simplesmente lançar mão do dicionário. O que fazer?
O que significa a palavra alemã Ursprung? A palavra Ursprung é formada do verbo springen, pular, precedida do prefixo Ur, o primordial. No “pular” ele localiza o poético-ontológico. No ensaio Identidade e diferença, Heidegger mostra a essência da identidade como sendo um “pulo”. E Guimarães Rosa no conto “O espelho” (Primeiras estórias), no final, dá um “salto mortal”. É para essa identidade que tanto Heidegger como Rosa querem remeter ao pensar a essência da arte como Ursprung. Um tal “pulo primordial” é pensado também por Heidegger como Ereignis, o acontecimento apropriante.
Em português, temos como possibilidade de tradução as palavras origem e originário. Ambas vêm do verbo latino oriri, que significa levantar. Embora tenham o mesmo radical, seu significado é bem diferente. Origem diz uma proveniência marcada por um começo e uma causa identificável, inscrevendo-se, portanto, no tempo interpretado linear e historiograficamente. Metafisicamente o começo e a causa foram identificados com a essência metafísica. Já originário diz algo bem diferente, pois foge a uma interpretação metafísica. Não se identifica nem com começo nem com causa enquanto essência. Por isso, outra é a compreensão do tempo. É um tempo poético-ontológico que consiste em estar sempre principiando e constituindo realidade. Ele não provém de nenhuma essência essencialista, mas de uma Essência poético-ontológica, que consiste em estar sempre principiando (anfangen) enquanto acontecimento apropriante (Ereignis). Ele é sem fundamento, é Ab-grund, é abissal, é misterioso. É nesse sentido que o alemão diz Ur-sprung: o salto-originário, primordial. Ele não diz, portanto, nenhuma essência essencialista (metafísica). É puro agir, acontecer.
Tentemos apreender o que é originário por duas imagens, que chamo imagens-questão, porque nos lançam no cerne da questão e fora dos limites dos conceitos. Elas querem ser um convite e uma pro-vocação ao pensar enquanto aprendizagem do enigma que é toda obra de arte.
O que é uma fonte? É algo que não se esgotando não pára de dar origem à correnteza. A fonte é o princípio da correnteza. A correnteza tem um começo e um término, um percurso com decurso e fim, a fonte é princípio sem começo nem término. Como princípio seu fim é consumar a correnteza consumando-se como princípio. A correnteza corre e percorre pelo vigor do princípio, a fonte, que não cessa de ser fonte. A correnteza não tem o vigor em si. O princípio é este vigor que não se esgota, pelo contrário, se consuma no estar vigorando. O princípio é o vigor vigorando. Como vigor não está situada no tempo, constitui o tempo, por isso, a fonte é o tempo poético-ontológico. A este dá-se também o nome de tempo mítico, que nenhum rito esgota. A correnteza é o rito da fonte. A fonte, como a arte, é o originário. É sempre um acontecer apropriante (Ereignis).
Uma outra imagem-questão talvez provoque a escuta do que tanto mais fala quanto mais silencia. A mulher-mãe. É importante perceber que não há dicotomia entre origem e originário, mas uma tensão e disputa. Se a tensão assinala uma complementaridade, a disputa manifesta o abismo do mistério onde não dá mais para falar em complementaridade, senão deixaria de ser mistério.
Ninguém duvida que o filho tem a origem na mãe, mas também ninguém duvida que a mãe além de ser a origem também é o lugar do originário. Para saber o que é a mãe-mulher não precisamos buscar nenhuma origem causal histórica nem a podemos explicar através do estudo das circunstâncias em que a mãe concebe e tem o filho, numa linha do tempo historiográfico causal. O ser mãe principia com o conceber, gestar e dar à luz um filho. Nesse principiar não há origem, há o originar. A mãe-mulher é sempre mãe originariamente. E é mãe originariamente cada vez que dá à luz. Se uma mãe dá à luz onze vezes, como ocorreu com minha mãe, quando ela começou a ser mãe? Não foi no primeiro nem no último. Nas onze vezes, a cada vez. E pergunte-se a cada mãe-mulher se ela é mãe por algo que seja causalmente externo a ela mesma. Ela é mãe gestando, principiando, originando cada filho. Não precisamos tentar explicar o seu ser mãe remontando a Eva, às mães gregas, latinas, bantas, esquimós etc. Ela é mãe porque ela vigora no Ursprung, no abismo originário. Ela é o “lugar” da fonte originária. A historiografia das origens acaba por nos inculcar muitas explicações aparentemente históricas que no caso da fonte, da mãe-mulher nada explicam. Pelo contrário, complicam e silenciam o mistério que é ser fonte, mãe-mulher. A obra de arte é Ursprung porque, abissalmente, é fonte, verdade, mãe-mulher, Vida, em grego, dzoé. Ursprung (salto originário) é princípio (Anfang). E sem bem notarmos, o vigor do originário consiste no mistério de que ao estar sempre principiando (anfangen) jamais se esgota nem conclui, porque tanto mais revela e se revela quanto mais se retrai e vela. Esta tensão e disputa fica bem clara na imagem-questão mãe-mulher. Ao dar á luz um filho ela o faz integralmente, porque o filho tem início e término nela, mas nem por isso podemos dizer que ela já se esgotou como mãe, porque presenteando e apresentando-se como mãe tanto mais o faz integralmente quanto mais ela se retrai, de tal maneira que o mesmo vai fazer ao ter o segundo, o terceiro etc. É no mesmo e como mesmo que vigora o originário. Sem o mesmo não dá para pensar a arte, o pensamento e todas as experienciações do sagrado. Essas experienciações são o mesmo, mas jamais são a mesma coisa. E mais: ao doar-se e desdobrar-se em mãe é que ela como mãe se consuma. Mas ela não se consuma na soma dos filhos que tem ou até que pode vir a ter. Não. Ela se consuma em cada filho. Ela é mãe total em cada filho. A mulher-mãe em cada filho é a suprema obra-de-arte. Mas, na realidade, como mãe ela sempre se preserva, isto é, se retrai e vela num mistério que cada mãe-mulher experiência, mas não sabe, não quer, nem precisa explicar. Para a mãe-mulher basta ser mãe, sem necessidade de buscar explicações ou causas. Não há, pois, uma essência-mãe. A mulher é mãe acontecendo no ser mãe e no acontecer-sendo-mãe ela se apropria do que lhe é próprio. Na mulher-mãe há Anfang, acontece o princípio: Ursprung: originário.
Para pensar o telos como sentido e princípio, temos que pensar a liminaridade e a questão do limite, mas com estes vem a questão do horizonte e da morte. Por isso, podemos dizer que a morte não é um fim, mas um telos. A questão da liberdade está ligada à questão da finitude. O que fazer com nossa finitude, o que fazer em nossa finitude, isto é, o que na finitude e não-finitude da liminaridade acontece com a necessidade e liberdade? Estamos necessariamente lançados na liminaridade e nela nos advém o que somos como possibilidade de levar á plenitude o não-limite de todo limite enquanto a plenitude de todo limite. Levar o limite à plenitude é exercitar concretamente na necessidade da liminaridade a liberdade do não-limite. E quando e como é a necessidade da liminaridade transformada em liberdade? A necessidade da liminaridade advém como necessidade não porque estamos jogados na liminaridade, porque se aí ficássemos eternamente (a tentativa de preservar sempre a vida) então viver seria uma necessidade sem os apuros do que sempre já está dado na liminaridade juntamente. O quê? No fundo a liminaridade só é limite e não-limite porque, mais profundamente, é vida e morte. Então estamos jogados numa dupla vida e morte: a morte “física” e a morte enquanto impossibilidade de toda possibilidade: a morte enquanto projeto de travessia. Então o não-limite de todo limite é a morte de toda vida. Caminhar, paradoxalmente, para o não limite, e aí também como necessidade, é ter que escolher, é exercitar o ser livre, mas sempre o ser livre tendo como horizonte a morte. Não somos livres porque e quando procuramos a morte. Somos livres porque para ser livre é necessariamente procurar a morte, é caminhar para a morte. Mas se encararmos agora a morte não como fim, mas como telos, tudo muda. No e por morrer o ser humano se torna humano porque a necessária finitude pode e deve ser transformada num ato de liberdade. Sejam os ritos da vida, sejam os ritos da morte, e também os outros ritos, acontecem nesse entre da liminaridade. São os ritos onde os mitos sempre nos querem conduzir a um telos: o telos da vida, o que significa dar à vida um sentido, isto é, um telos, a partir do princípio da morte que é o princípio da vida. É na tensão deste entre que se dá o humano do homem. A tradução de telos por fim fica aí super-evidente, porque a morte implica aparentemente um fim, enquanto término, final de linha. Acontece que aí não se pensa o que no entre pode acontecer, isto é, não se pensa que o fim não é algo em si, mas depende do que na vida vivida aconteceu como vida experienciada. Isto é, o que no viver a vida aconteceu como princípio. Para isso é necessário saber o que é o princípio. Os ritos da vida querem afirmar a vida como possibilidade de plenificação da morte, mas na medida em que a própria morte é a medida da vida. A medida da vida, o princípio, vai aparecer nos ritos da morte. Seja nos ritos da vida, seja nos ritos da morte o que está sempre em questão é o princípío, isto é, o dar sentido pela morte à vida, o levar à plenitude a vida como possibilidades dadas pelo princípio em que a vida já está desde sempre jogada: a morte. Os ritos são ritos dos mitos na medida em que os mitos são mitos do sagrado. Só quando os ritos se afastam dos mitos do sagrado é que começa o simbólico. Portanto, tanto os ritos quanto os mitos já são uma doação do sagrado e dessa maneira os ritos não podem se tornar apenas algo formal, simbólico. Não. É o próprio princípio sempre acontecendo. Portanto, temos que pensar o princípio no concreto acontecer dos ritos enquanto nos ritos os mitos acontecem como acontecer do sagrado. Nesse horizonte, tanto a vida como a morte são inerentes ao princípio, uma não vive sem a outra, nem os ritos nem os mitos acontecem sem o sagrado. Nestas condições, o sagrado, enquanto o vigor tanto da vida como da morte, traz na morte a manifestação do princípio como sentido e verdade do não-sentido e da não-verdade, como plenitude do limite, isto é, do princípio como princípio. Sendo a morte o telos da vida, ela é o princípio que já desde sempre vigora na vida, ou seja, a morte é o princípio que rege a vida. Por isso, todo nosso viver se destina, se doa, se empenha no telos como morte para viver a vida em plenitude, para fazer da necessidade da morte um livre viver a vida, enquanto necessidade de morrer. Então a necessidade, enquanto é possibilidade de dar um telos à vida, é a própria possibilidade da necessidade de ser livre, isto é, de se tornar humano no viver a vida. Vivendo e experienciando esse entre, o homem humano só é humano na medida de sua mortalidade.
A importância disto tudo está em vermos que a interpretação do “on” como matéria e forma pressupõe uma reflexão sobre as outras duas causas. E quando constatamos que as outras três “dependem” desta causa final, ou seja, do telos, então se torna bem claro que o telos não é delimitado e unificado pela utilidade da obra, ou seja, do utensílio. Só pensaremos assim se ficarmos na superficialidade da compreensão do telos como sendo uma finalidade, no âmbito da qual se determinam as outras três causas, inclusive, o próprio fazer da causa eficiente, porque neste âmbito, o artesão, o inventor do utensílio não está livre para fazer o que quiser, isto é, se quer ter uma finalidade naquilo que faz, o faz no horizonte desta utilidade. Então a transição do utensílio e do lugar das quatro causas está já de antemão determinado pelo telos, ou seja, por aquilo que se compreende como telos.
Mas se compreendermos o telos como acabamos de o fazer acima, então o utensílio é útil dentro de um mundo que o precede e no qual se pode exercitar e dar a sua utilidade, ou seja, a finalidade como possível entendimento do telos é uma possibilidade de fato, mas a realização desta possibilidade só pode acontecer se for precedida de uma outra: aquela do telos como sentido de plenificação do princípio. A confiabilidade do utensílio vem justamente da possibilidade de tal confiabilidade já ter o seu vigor do telos, enquanto sentido de plenificação do princípio. Neste horizonte, a tensão, a disputa de mundo e terra é a disputa de vida e morte. Mas o utensílio como utensílio nunca me remete para essa disputa, apenas torna presente o mundo em que ele tem sua utilidade já manifesta na obra como a disputa de mundo e terra, como a disputa de vida e morte. A confiabilidade é a possibilidade inerente ao utensílio dada pelo mundo, enquanto o mundo da disputa com a terra, que advém no ser da obra de arte como ser da arte. Sem essa abertura, sem essa clareira não é possível o telos enquanto telos e nele e a partir dele a confiabilidade do utensílio. No fundo, a finalidade só pode acontecer como finalidade porque já está vigorando no telos, como sentido do princípio. Então a matéria e a forma são doações do telos, enquanto telos da disputa de mundo e terra. A proximidade de matéria e terra é importante para ser pensada, mas não é jamais a matéria que determina a terra, mas é a terra que se doa em possibilidades de ser “matérias”. Por isso, ler as diferentes manifestações artísticas a partir das matérias e das formas é ainda não compreender e se abrir para o vigorar do telos, enquanto princípio de vida e morte. E estas são as questões, as diferenças e como tal o próprio diálogo. Portanto, não podemos nunca ler ou tentar compreender as matérias e as formas a partir da confiabilidade do utensílio, porque esta tem como horizonte o telos, enquanto princípio de realização e plenificação da tensão de mundo e terra. Quando agora nos voltamos para o lugar da terceira causa, a eficiente, devemos também de novo compreender que não podemos lê-la simplesmente como alguém que executa o figurar de um utensílio, como o sujeito de um agir imediato e mediato, porque é imediato porque está imediatamente agindo diante de nós ou agiu em alguém tempo, e mediatamente porque ele só é eficiente porque faz a mediação entre a causa material e a causa formal. Mas se tanto a causa formal como a material recebem seu telos do princípio como o estamos entendendo, então também a causa eficiente recebe seu princípio do telos, não enquanto funcionalidade e operatividade desssa figuração, mas como aquele que é possuído pelo vigor do princípio, ou seja, por aquele que já está possuído pelas questões e diferenciações e diálogo de vida e morte, no âmbito do qual vigora o sagrado, como doação do sagrado. Por isso é que a obra é sempre obra do sagrado, enquanto doação do tempo e da memória, da poiesis e da linguagem. Como nas respostas às questões, como nas diferenças das obras, como nos diferentes diálogos, sempre de imediato temos as próprias respostas, as próprias diferenças, os próprios diálogos, mas as resposta não vigoram sem as questões, as diferenças não vigoram sem a identidade do mesmo, os diálogos não vigoram sem o logos. Quando a coisa articula céu e terra, mortais e imortais mundificando, ela só o pode fazer porque já vigora no vigor do telos, enquanto princípio de vida e morte.
As questões de vida e morte, enquanto telos, são o mesmo de todas as manifestações artísticas, de todas as possíveis experienciações do sagrado. Enquanto telos elas são sempre provenientes do mesmo como telos, mas jamais são a mesma coisa. E isso é muito, muito bom, porque esse mesmo como telos só pode ser o mesmo porque é physis se dando na excessividade da vida como experienciação da morte. E é uma excessividade tão excessiva que funda não só as diferentes épocas, as diferentes experienciações do sagrado como também e, sobretudo, as diferentes obras, os diferentes criadores e os diferentes leitores e as diferentes leituras (no sentido do logos como o que mundificando reúne).
Para entendermos a questão da vida e da morte, não podemos nunca separar a vida da morte, mas apreendê-la como vida e como morte, onde esse “e” é o mesmo de todo telos. Por isso, o telos não é e não pode ser inerente apenas a um agir do “homem”. A obra constitui o sentido, o telos de toda ação, inclusive das ações cotidianas, de todas as procuras, mesmo que elas não saibam, já se movem no âmbito e na proveniência do princípio que rege e vigora como vida e morte, mas podem ser ações que encobrem e esquecem esse mesmo telos, como insistência numa errância e numa verdade que justamente quer negar a proveniência de toda verdade: a não-verdade. Quando introduzimos morte, algo se torna evidente: a não-ação é que já vigora e impulsiona toda ação. Por isso, nos diz Emmanuel Carneiro Leão:

A obra é antes de tudo uma pro-dução. Manifesta o que surge, eclode e se mostra como tal. Nessa acepção Aristóteles diz que a toda ação pertence uma obra. Assim a determinação de bem como obra coincide com a determinação de penhor como sentido, de sorte que ergon (obra) e telos se correspondem na ação (Leão, 1992: 157).

O penhor está para o bem assim como a obra está para o sentido: disputa, ação, realização e terra cultivada, porque terra cultuada.

Mas a ação não se restringe apenas ao âmbito da ação humana. Pertence à dinâmica de toda a realidade. Sempre que na realização de qualquer coisa eclode e surge algo que não estava presente nem em vigor, há e se dá obra. Esta dependência do real de algo que brota do Outro de si mesmo é o que Aristóteles chama de dynamis: poder-ser.

Mas um tal poder-ser não pode nem é um conceito abstrato, é a questão se dando como vida e morte, estas se implicam mutuamente, assim como se implicam questões, diferenças e diálogo. Quando no diálogo dialogo só acontece porque dentro de mim já contece o outro de mim mesmo, não como não-eu que se pode tornar eu, como um eu-profundo, mas como o não-eu enquanto questão, diferença e diálogo. Então o diálogo de mim mesmo, é o mesmo enquanto o logos de todo diálogo, a identidade das diferenças, a questão de todas as respostas. Como não podemos separar vida de morte, também não podemos separar resposta de questão, diferença de identidade, diálogo de logos. É por isso que o homem vive em operação, está sempre agindo na medida em que o homem é ação que está em obra. Obra e operação são as duas instâncias de toda ação, como telos, como energeia da dynamis. Porém, em toda dynamis acontece um apropriar-se como obra e operação em que tanto mais a dynamis acontece como apropriar-se quanto mais a ação é não-ação, é retrair-se e velar-se do manifestar-se, segundo nos diz o fragmento 123 de Heráclito: O agir manifestativo apropria-se no velar-se.
Se tomarmos o philei do fragmento 123 de Heráclito como o apropriar-se do que é próprio, veremos que a partir da leitura do “en” como “in”, como entre, como intus, então a enteléquia (en-telos-echon) de Aristóteles é o philei, no sentido do que é o que a partir do íntimo e profundo de si mesmo tem a plenitude do sentido em si mesmo. Não é isso o amar? Não é isso o ser enquanto o apropriar-se do que é próprio? Então vamos ter na enteléquia o mesmo enquanto o “entre” de vida E morte.
A finalidade a que está preso o utensílio só pode acontecer num horizonte onde ele já está inserido, um mundo já manifesto, e jamais um estar entre vida e morte, entre terra e mundo, entre physis e kryptestai.
Na quaternidade da coisa, vamos ter sempre a proximidade. Mas esta proximidade para ser proximidade pressupõe a abertura de mundo e terra como a abissal identidade das identidades e como diferença das diferenças. Por isso é abissal. Essa abissalidade é o impensado de toda possibilidade de especular, de todo espelho poder ser espelho, de toda identidade poder se diferença e de toda diferença poder ser identidade. Lido em verticalidade, no fragmento 123 de Heráclito, o espelho é o entre physis e kryptestai, isto é, o philei. Este, enquanto o lugar de apropriar-se do que é próprio, é a clareira de physis E kryptestai. Nesse sentido, o philei é o telos, é a obra (ergon). O logos enquanto mundo é o silêncio, a linguagem, a clareira do ser, isto é, do nada como tudo. Por isso em Carta sobre o humanismo, diz Heidegger:

O pensamento con-suma a referência do Ser à Essência do homem. Não a produz nem a efetua. O pensamento apenas restitui ao Ser, como algo que lhe foi entregue pelo próprio Ser. Essa restituição consiste em que, no pensamento, o Ser se torna linguagem. A linguagem é a casa do Ser. Em sua habitação mora o homem. Os pensadores e poetas lhe servem de vigia. Sua vigília é con-sumar a manifestação do Ser, porquanto, por seu dizer, a tornam linguagem e a conservam na linguagem (Heidegger, 1967: 24).

É claro que ao lermos aí pensamento, o pensador deixe que nele se pense o pensamento como manifestação do sagrado, mas igualmente se dá esse deixar nas outras experienciações do sagrado, entre elas todas as manifestações artísticas. Mas é importante perceber e compreender que isso só é possível na medida em que no agir se dá uma distinção fundamental entre finalidade e telos.

O pensamento não se transforma em ação por dele emanar um efeito ou por vir a ser aplicado [finalidade]. O pensamento age enquanto pensa [aqui se pensem todas as manifestações artísticas]. Seu agir é, de certo, o que há de mais simples e elevado, por afetar a re-ferência do Ser ao homem. Toda produção se funda no Ser e se dirige ao ente [enquanto em tal agir se dá uma finalidade]. O pensamento [e todas as manifestações artísticas], ao contrário, se deixa requisitar pelo Ser a fim de proferir-lhe a Verdade [enquanto em tal agir se dá o telos] (Heidegger, 1967: 25).

Podemos concluir que os três conceitos de coisa (“on”), de que trata Heidegger na primeira parte de A origem da obra de arte, fizeram e fazem a história do Ocidente e o diferenciam das demais culturas, daí hoje tornar-se o modelo universal, nomeado globalização. São os conhecimentos advindos desses conceitos, estruturados em disciplinas, que hoje determinam o real (“on”), como se o real, a coisa só fosse possível e real na leitura dos conceitos e das disciplinas. Ficamos perplexos e desarmados quando questionamos os conceitos, como se eles fossem tudo. Tomemos consciência de que, evidente, esses conceitos, esses três conceitos e todo o séqüito das disciplinas são também uma doação do próprio “on”, que se diz e manifesta de muitas maneiras. É uma riqueza muito grande, uma riqueza de onde vem hoje um grande perigo, porque viver – não é? – é muito perigoso. Mas onde mora o perigo, é daí mesmo que pode vir a salvação. Como assim? Deixando que sejamos tomados pelas questões. Isso jamais quer dizer negar e abandonar os conceitos. Quer dizer que para além dos conceitos e precedendo-os há as questões, há o telos enquanto princípio e sentido. Como somos seres vivos impulsionados pela e para a morte, deixar advir a morte como princípio, como telos, é o horizonte mais pleno de dar princípio e sentido à vida, para que seja vivida na plenitude de seu limite enquanto entre-porta de libertação, de permanente e cotidiana utopia de conquistar a liberdade, a plenificação de nossos limites, porque, queiramos ou não, seremos sempre entre-ser, porque seres da liminaridade. Conquistar na liminaridade a liberdade é viver as experienciações do sagrado, isto é, experienciar o mesmo, mas nunca e jamais as mesmas coisas. Para nós, quando os ritos se perderam dos mitos, só nos resta ainda uma esperança, não voltar a velhos ritos, a velhas fórmulas artísticas ou coisa semelhante, não viver na ilusão de uma sociedade utópica fruto de uma teoria em detrimento da riqueza e complexidade do real, não viver na má-consciência de uma realidade de que ninguém abre mão (seria abrir mão dos conceitos), mas que vê perplexo que torna cada vez mais as pessoas distantes, o amor substituído pelo consumo do sexo, a mulher como produto de consumo etc. etc., a terra ser expoliada e ser explorada à exaustão, sem que a vejamos como aquela que nos é mais próxima, tão próxima que se torna cada vez mais estranha. E tudo seria tão simples, se deixássemos no ordinário de cada dia vigorar a proximidade do extra-ordinário, como já nos disse que vigora Heráclito, há 26000 anos.
Sejamos utópicos, sejamos sempre utópicos, sejamos absurdamente utópicos, se a utopia for o vigorar do extraordinário, para que haja proximidade entre nós: terra, mundo e corpo.

Não-saber





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Em todo contexto e em toda conjuntura, há um primeiro dado que possibilita a reunião das pessoas num mesmo contexto, numa mesma conjuntura e no habitar uma clareira: é o não-saber. Esse é inevitavelmente comum. Mas em relação ao não-saber pode haver duas atitudes:1ª) a científica. Nela, de posse do passado (assim julga) como algo passível de domínio, volta as costas para esse passado e olha o futuro, o não-saber como o ainda-não-sabido, mas que pode ser incorporado ao passado como novo conhecimento. A ciência vive no passado voltado sempre para o futuro se quiser progredir. Por isso, a ciência vive do domínio do passado e dos projetos de pesquisa como possíveis descobertas de novos conhecimentos, o ainda-não-conhecido que se pode transformar no conhecido. A ilusão do cientista é ser um utopista incorrigível, pois sempre acha que todo-ainda-não-conhecido pode ser pelas pesquisas incessantes trazido para o conhecido.
2ª) A artística. Nesta atitude o não-saber não está no futuro. Por isso, não volta as costas para o passado. Esquadrinha e busca no conhecido e não-conhecido. O resultado desta busca é uma tentativa permanente de surpreender no dito e conhecido o não-dito e o não-conhecido. A busca do não-saber como possibilidade de todo saber é que move todo agir artístico. Ele quer no saber manifestar o não-saber, no dito o não-dito. Ele, como o cientista, não busca o saber diferenciador e limitador. Pelo contrário, busca o que-a-todos-une: o não-saber como identidade das diferenças. Certamente, o artista se sente e percebe limitado, mas, por ser tomado pelo que independe da vontade dele, por se deixar atravessar e possuir por um pathos irresistível, quer contínua e reiteradamente, utópica e incansavelmente, trazer para o limite o não-limite, levando, nesse criar, o limite à sua plenitude.
O que esta dupla atitude pode nos levar a pensar? A grande questão que subjaz é simples: os dois conhecimentos são entre si tensionais, mas harmônicos. Por isso, a eliminação de qualquer um ou sua mútua anulação priva o ser humano da sua possibilidade de se tornar humano. Se a dimensão do humano advém ao ser humano do que o próprio ser humano não pode criar nem determinar, pois ele o recebe como doação para na vida achar o seu sentido, o seu telos, este telos lhe advém da morte, onde morte não é fim, mas a possibilidade de levar à plenitude a vida. Por outro lado, devemos dizer que por ser o sentido o princípio de plenitude de vida enquanto a vida vigora no impulso para a morte, fica claro que viver é buscar essa plenitude e não e jamais nega-la, seja a vida, seja a plenitude. Então qualquer conhecimento que contribua para uma tal plenitude, como negá-lo ou desmerecê-lo. Como desmerecer a brilhante trajetória de Édipo? Impossível. Mas uma tal trajetória é que lhe vai permitir apreender os seus limites e o alcance do seu saber; que só pode ser alcançado sabendo. Mas devemos igualmente dizer que a coerência de Édipo na trajetória do saber não tem um fim em si mesma. Pelo contrário, ele só encontra a plenitude na sabedoria da cegueira e na aprendizagem como processo do aprendizado. Sem aprendizado não há aprendizagem, mas esta não tem o seu produto, o seu desabrochar no aprendizado, porque este não pode dar mais do que o que ele é: aprendizado. Este deve ser buscado na medida em que receber sua razão de ser na busca da aprendizagem, pois é esta e só esta que realiza o humano do homem. O humano do homem é o deixar-se atravessar na travessia cotidiana e utopicamente no ordinário da vida pelo extraordinário do mistério e sentido da morte, não como fim, mas como telos, isto é, pelo deixar vigorar a arché, o princípio no desabrochar da sua plenitude. À plenitude do princípio Rosa chamou de travessia, a eclosão do humano.
Liberdade
Só o homem escraviza o homem, diz Emmanuel Carneiro Leão. Mas não se poderia dizer: só o homem liberta o homem. Por quê? Então quem liberta o homem? Eu creio que devemos distinguir o ser humano como ser humano, na ordem dos seres, e o humano do homem na ordem do ser. O humano do homem não coincide exatamente com o ser humano enquanto ser humano. O ser humano como ser humano se realiza na ordem do saber, mas só o humano do homem se realiza como sabedoria. O ser humano como homem se realiza na ordem do aprendizado, mas só o humano do homem se realiza na aprendizagem. O saber do homem na ordem da ciência pode ser bom ou mau. Se se considera o escravizar segundo a ordem da ciência no saber que traz mal e o libertar da ciência no trazer o bem, ainda asssim não podemos considerar que nesse mal ou nesse bem haja sabedoria e aprendizagem.
Na ordem do saber de Édipo, tal saber lhe trouxe o bem, mas não lhe trouxe nem sabedoria nem aprendizagem. Quando na ordem do saber de Édipo lhe trouxe o mal, então ele se deixou possuir pela sabedoria e pela aprendizagem. Na ordem da ciência do ser humano seu saber tanto pode ser bom como ser mau. Na dimensão do humano só se torna humano quando se deixa possuir pelo ser que faz do homem homem humano, isto é, só o homem se abrindo para o apelo e a interpelação e provocação do ser, o homem chega a se realizar como homem humano.
O humano do homem não advém ao ser humano no muito saber, mas no sabor do saber como sabedoria. Muito estudar é poder muito aprender, mas não é pelo muito aprender que advém a aprendizagem. A liberdade do homem não é a liberdade do humano. A liberdade do homem pode exercer o escravizar, o fazer mal, o proceder injustamente, o espoliar o outro, o anular os que se lhe opõem, aniquilar e matar os inimigos. Só a liberdade do humano deixa a liberdade libertar, o bem tornar-se bem, a justiça ser justiça, a vida vitalizar e o amor acolher as diferenças.
Para a ciência a sabedoria pode ser loucura e a aprendizagem algo com o qual nada se faz, isto é, inútil. Na ordem da ciência, a falta de bens e cultura pode ser indigência e na dimensão da cultura e da aprendizagem é renúncia, porque a renúncia não tira. Dá. Pois o silêncio não é a falta de voz e música, mas a sua plenitude. O repouso não é falta de dança e movimento, mas o ato puro da simplicidade do dançar e agir.

A música e as questões

Tanto o artista como o leitor ou ouvinte devem se mover no âmbito do questionar, diferenciar e dialogar. Acontece que nesses três verbos se manifesta uma unidade profunda que nos leva para a tensão do ser da obra de arte e para o ser da arte. Esse então, esse “e” acontece então como questão, diferença e diálogo. Por ser nesse “e” acontecerem, ao mesmo tempo, essas três dimensões é que Heidegger no ensaio A origem da obra de arte diz que tudo o que tentou fazer, quando termina o ensaio, foi ver mais claramente o enigma que obra de arte é. O que é isto – tentar ver o enigma? O que é isto – o enigma que toda obra de arte é? Em nossa aproximação, em nossa tentativa de ver o enigma, digamos que é se abrir para o questionar, diferenciar e dialogar. A obra de arte é questão e se constitui de questões – toda obra de arte – porque é questão, porque é diferença e diálogo. E é diferença porque é questão e diálogo. E é diálogo porque é questão e diferença.
Pensar a obra de arte – toda obra de arte – é pensar o mesmo de questão, diálogo e diferença. E então pensar o diálogo não é reduzir o entre-dialogar ao dizer ou não dizer, ou dizível ou não-dizível, a redução de toda obra de arte à elocução, a palavras ou proposições ou discurso. O logos é muito mais porque não há logos sem poiesis e não há poiesis sem logos. Como se dá esse “e” é a questão a ser pensada. Logos é linguagem e linguagem é mundo. Isso em todas as obras de arte. Para tentar entender – tentar fique claro – o que é poiesis, devemos nos abrir, de um lado, para o ser como verbo, no sentido de palavra poiética. A tensão volta porque temos de novo nome-palavra-linguagem e poética. Então aparentemente não avançamos. O poético diz o ditar-doar do sagrado enquanto poiesis, isto é, doar instaurador e inaugural porque originário, o narrar inerente a toda saga. Sendo instaurador-originário é energia poética, isto é, o ser-se-dando como doar. O ser-se-dando enquanto doar é tempo e silêncio e memória. Por isso, em toda arte temos necessariamente tempo, silêncio, memória, linguagem, onde linguagem não será apenas voz, elocução, mas será som, cor, pedra, luz, densidade, madeira, imagem-som-luz, será verdade da não-verdade enquanto clareira. Nesse horizonte, toda obra de arte é questão, diferença e diálogo, porque é verdade e não-verdade, enquanto clareira do ser. E é como clareira do ser que toda obra de arte é tempo, silêncio, memória e linguagem. Mas por toda obra ser tempo, silêncio, memória e linguagem, sendo esta obra é que ela é questão, é diferença, é diálogo, porque está e é sempre um entre, o entre o ser da obra de arte e o ser da arte, o som do silêncio na música, a cor da noite na pintura, a figura do vazio em tudo que se dá no figurar, a voz da linguagem em tudo que se dá a dizer.
De maneira alguma, podemos tentar compreender e apreender e escutar a música a partir da tentativa de diferenciá-la da voz da linguagem, como se a palavra só fosse linguagem e não fosse também e necessariamente silêncio, vazio, não-ação, noite. Como se o som da música não fosse necessariamente também linguagem, silêncio, vazio e noite, como se música e palavra (poiesis) não fossem o mesmo de mundo e terra. Ser o mesmo não quer dizer ser a mesma coisa. E ao serem, enquanto o mesmo, mundo e terra, enquanto esta obra de arte, serem questão, diferença e diálogo. Esse mesmo justamente se dá retraindo-se (mundo e terra) como o mesmo enquanto questão, diferença e diálogo. Por isso, o diálogo, a diferença e a questão não são um dar do diálogo, mas do logos, do silêncio, da linguagem, do vazio, do nada, da não-ação.
Só porque a questão, a diferença e o diálogo são uma doação do logos, do silêncio, da linguagem, do nada é que o humano do homem pode-se manifestar no diálogo, no diferenciar e no questionar, de tal modo que o humano do homem, enquanto doar-ditar-poietizar do sagrado, se constitui necessariamente como obra-de-arte no entre (diá-) do ser-da-obra-de-arte e o ser-da-arte.