09 dezembro 2008

A Moira como destino


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Ao leitor: esta reflexão se move na liberdade de pensar. E é isso que o leitor deve também procurar fazer. Moira é o mistério maior em que o ser humano se move desde sempre. Ela é nossa medida, mas como tomar conhecimento dela senão a experienciando? E então se coloca a moira como a essência do agir, ou seja, como sua medida. Uma medida que nos mede, mas da qual não temos domínio, isto é, não a temos, somos possuídos por ela. E só nela e por ela podemos chegar a ser livres, uma liberdade conquistada a cada dia que a moira se torna nosso destino, livremente vivido e experienciado. Então ser possuído pela moira é ser possuído por eros. Eros é a plena liberdade.

Moira nunca é uma questão de escolha da vontade, mas uma questão de ser tomado pelo extraordinário e é neste ser possuído que se dá o acontecer poético. Não é o ser tomado pelo extraordinário uma questão de êxtase ou de êntase repentino, mas é o próprio acontecer poético longa e essencialmente amadurecendo e tomando corpo. É qual um aion desdobrado na tensão poética de cronós e kairós ao longo do suceder das estações e suas horas. Todo caminho é um percurso que excursiona pelo incurso do extraordinário enquanto acontecer poético. Quando nos sentimos enleados nas dobras do extraordinário em meio ao aparente infinito e imutabilidade do decorrer dos dias e horas, é então que tudo se torna claro e não podemos senão dizer: Apolo me feriu. Então a travessia tem uma outra ressonância, para além dos avios pessoais, porque inseridos nos envios do tempo das épocas. Ser não é mais uma opção, porém, um vigilante e pleno deixar acontecer. Ser é entre-acontecer poetica e eticamente. E tudo se move ao mesmo tempo que tudo se torna calmo e um repouso integrador e pleno se torna o real. E tudo é sem por quê, porque simplesmente é. Moira não é mais necessidade. É a leve e solta e completa liberdade. Eros. Amor.

10 novembro 2008

Poética, cultura e diálogo




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A maior dificuldade em desenvolver o tema proposto: poética, cultura e diálogo não está em expor os diferentes conceitos desses três núcleos e estabelecer relações entre eles. Trabalhar conceitos é muito fácil. A grande dificuldade está em constatar a cada dia que a realidade mudou e muda a cada instante e que, no entanto, os conceitos teimam em nos dar uma visão teórica dela já feita e, pior, imporem-se à realidade. Este é o grande impasse das teorias em tempos de metamorfose. A dinâmica da realidade adquiriu uma rapidez que logo deixa ultrapassadas as mais diferentes teorias. E isto em todos os campos do saber, o que quer dizer também naqueles que tratam da cultura, os chamados estudos culturais. Os critérios das teorias não são os critérios e medidas da realidade. Por que isso está acontecendo? Por que hoje o tempo é tão acelerado? Diante do isolamento cada vez maior das disciplinas fala-se então em interdisciplinaridade, transdisciplinaridade e até em antidisciplinaridade.
Qual é a questão real? Por que isto está acontecendo? Achar que há uma solução fácil é cair numa ilusão. Isso os próprios estudos culturais já estão constatando. Trocar simplesmente também os prefixos apostos a disciplina será que atinge aquilo que é essencial? Mas o que é essencial hoje em dia? O que entender por essencial frente à realidade que não cessa de mudar? Será que esta é a pergunta certa? Quem ou o que decide o que é essencial? Quem decide ou o que decide o que é cultura? O que é disciplina? Qual a medida ou o critério para estabelecer esses conceitos? Por quais paradigmas, quais suportes, quais teorias nos guiarmos para tentar responder a essas questões? E será que hoje a realidade ainda se deixa prender e circunscrever por conceitos? Porém, falta ainda uma pergunta que não foi feita e precede a todas: O que compreender por realidade? Tentar apreendê-la através de qualquer atributo é já cair nas disciplinas: realidade cultural, econômica, social, capitalista, neocapitalista, globalizada, virtual, hiper-realidade etc. Hoje os atributos são muitos. É a questão da disciplina frente ao real, cada uma desde que se institua gera um atributo. E prestamos mais atenção aos atributos gerados pelas disciplinas do que às questões da realidade que geram as próprias disciplinas. Precisamos voltar à realidade.
Tomemos como ponto de partida o que aqui nos reúne: a questão das culturas. De que cultura falar: erudita, popular, globalizada, moderna, pós-moderna, antiga, medieval, acadêmica, religiosa, científica, mítica, pop, indígena? Cultura no singular ou no plural. Por exemplo, a respeito de cultura mítica, de cultura indígena. Como um adjetivo, um atributo, pode querer dar conta de tantas culturas indígenas, de tanta diversidade cultural? No afã de faze valer algum saber, alguma disciplina, lançamos mão com muita facilidade dos atributos e procuramos circunscrever nossas pesquisas e nossos saberes ao alcance conceitual que o atributo configura. Temos a nítida impressão de que a cultura é evidente por si. Mas será que algo é evidente? Ou apenas as teorias e seu vocabulário é que passam de mão em mão, de professor para alunos, sem questionamento? Devemos nos mover nos conceitos ou teremos, queiramos ou não, que dar lugar às questões?
O grande pensador do século XX, Martin Heidegger, já nos advertiu: Questionar e por em questão é a única tarefa do pensamento. Mas será que estamos sendo preparados e cultivando as questões ou só institucionalmente somos treinados e até formatados para nos movermos só nos conceitos? O conceito sem a questão é como a disciplina sem a realidade. A realidade é a questão, a grande questão. Mas então estou falando de realidade sem atributos, como precisamos pensar a cultura sem atributos. Precisamos pensá-la como questão. O conceito diz e procura determinar a essência de algo enquanto âmbito de validade do seu conhecimento. Parece que, conhecendo o conceito, já podemos dizer que temos o conhecimento da realidade. E se a realidade não couber nos conceitos? Se a realidade for mais rica, profunda e ampla do que o âmbito de todo e qualquer conceito? De toda e qualquer disciplina? Como fica aí o saber universitário, o saber científico? Mas será que este saber dá conta da totalidade da realidade? Vocês estarão pensando: se não dá conta ao menos é ele e só ele que estabelece qual o saber verdadeiro. Se é científico é verdadeiro, se é verdadeiro é científico. Será? Não notam que aí, de novo, a verdade não é pensada, ela se tornou também um atributo? Por que em relação à realidade, a todas as disciplinas, à própria verdade os atributos é que se tornaram os núcleos dos conhecimentos? De onde vem a determinação da realidade como atributo?
A ciência apenas desenvolve o que já se decidiu filosoficamente. A essência da ciência é filosófica. E aí nos perguntamos com certeza: que filosofia? Porque na época das disciplinas até a própria filosofia se tornou uma disciplina. Mas então quem determinou todo saber como sendo constituído como uma disciplina? E aí vem o primeiro paradoxo: a filosofia. Como sair do impasse? Hoje, como sempre foi, é e será, só há um caminho: abrir-se para as questões. Sobre as questões as épocas e as teorias formulam e estabelecem muitos conceitos, mas jamais algum conceito conseguirá desfazer e eliminar a questão. Não que o conceito seja inútil, é até necessário, mas não como resposta única e última. Todo conceito é uma resposta que deve recolocar a questão em outro patamar, em outro nível, em outra dimensão, isto é, torná-la cada vez mais vigente. E certamente a grande questão que nos reúne aqui hoje é: O que é cultura? Só assim podermos começar a discorrer e a pensar o que podemos determinar e compreender por estudos inter-culturais. Claro que então no âmbito da cultura como questão é que poderemos ir pensando o âmbito também do que podemos determinar ou não como estudos. Qual a natureza dos estudos? O que eles podem dar e não podem.
Na realidade é facilmente constatável que não há apenas uma cultura, mas várias e mudando de acordo com o tempo, a época. Mas se houvesse só mudança não poderia haver diálogo. É necessário para o diálogo haver algo em comum e que tenha uma permanência na mudança. É dentro destes pressupostos que podemos aqui nos reunir “entre” nós. “Entre” nós? Que “entre” é esse? Será uma mera preposição como a gramática classifica tal palavra? A gramática tem ouvidos atentos para a realidade? Claro que pode ter, mas se sair dos meros conceitos. O “entre” que nos congrega para diálogo é o mesmo que está presente na palavra: inter-cultural. Inter e entre são a mesma palavra na forma latina e na forma portuguesa. Mas então quem determina o quê? É o “inter” que abre os horizontes para pensarmos as culturas ou as culturas é que determinam o “inter”? Ou será que é o diá-logo que nos joga e move já no “inter”, no entre? Mas o que é então o diálogo para que ele permita a congregação das pessoas no entre?
Por que estou fazendo tantas perguntas em vez de logo expor os temas propostos para a palestra? Estas questões não se baseiam numa determinada teoria ou posição epistemológica e ideológica. Tenho uma visão muito crítica de qualquer suporte ou paradigma, e qualquer teoria ou modelo crítico ideológico ou formal. Isso ainda é mover-se na retórica e não, e jamais, no poético. O critério originário da crítica é sempre o poético da realidade e não o critério racional-moderno. Para mim, tornaram-se o meu próprio projeto de vida, seja profissional-acadêmico, seja existencial. Não faço outra coisa do que pensar essas questões desde que estudo e desde que iniciei meu exercício de magistério. Minha dificuldade não é uma questão de saber o que dizer para vocês, mas de escolher na amplidão e complexidade dessas questões o que dizer para vocês. Se trato de alguns aspectos, noto logo que faltam muitos outros. E para explicar uma afirmação, uma pequena posição, toda uma seqüência da outros dados precisariam ser tratados. Mas se conseguir sensibilizá-los para as questões, um pequeno mas decisivo passo terá sido feito. A questão fica, os conceitos passam. Nós ficamos e nossos conceitos mudam e passam.
Quando comecei meus estudos universitários, em meados da década de sessenta, a grande corrente crítica era a estilística (ainda hoje presente na classificação e estudo das obras como estilos de época). Como um vendaval, na década de setenta apareceu o estruturalismo. E as correntes críticas foram se sucedendo. Por curiosidade fiz um levantamento e contei pelo menos 27 correntes críticas que fazem das obras poético-artísticas o seu objeto. Em ordem cronológica a mais recente são os Estudos culturais. Reafirmo, as questões não passam, crescem. Os conceitos mudam e passam. As correntes críticas surgem, crescem e passam. Todas têm um certo ciclo de vida. Mais breve ou mais longo, mas passam. O que não passa é a Poética, porque não é uma corrente crítica. Ela só passará quando as obras poético-artísticas deixarem de existir. Mas então aí o ser-humano já deixará de ter existido. Onde e quando houver um ser-humano aí haverá Poética, obras de arte. A Poética fica porque a maior de todas as questões é o próprio ser-humano e a maior de todas as obras poético-artística é o próprio ser humano.
Constatemos algo muito simples que já nos coloca no âmago da essência da cultura. Na época de Sófocles os gregos venceram o persas usando os navios chamados trirremas. Depois na época dos descobrimentos meus antepassados usaram as caravelas. Hoje os novos senhores do mundo usam navios atômicos. Num exercício de lógica, os produtos culturais: trirrema, caravela passaram porque estão ultrapassados. Alguns produtos culturais são ultrapassados diante de novas produções. Porém, Sófocles, um dos maiores criadores que a humanidade já conheceu, escreveu Rei Édipo, na mesma época. Quem em sã consciência pode dizer que Rei Lear, de Shakespeare, ultrapassou a genial obra poética de Sófocles? Freud se serviu de Rei Édipo e não de Rei Lear para revolucionar todos os estudos da psique humana. E aí podemos dizer que Rei Édipo é uma obra de arte da cultura grega ou será que, sem a menor dúvida, ela é universal, ela diz respeito a todos os seres-humanos de todas as culturas? E o que dizer de Antígone e todas as questões jurídicas que ela coloca e são discutidas até hoje onde se faça presente o poder judiciário? E por quanto tempo? Não será enquanto o ser-humano durar? Se Rei Édipo é válida e importante para os seres humanos de qualquer cultura e de qualquer tempo, devemos dizer que se quisermos pensar a inter-culturalidade devemos pensar com propriedade as obras de arte. Mas pensando a trirrema e a peça de Sófocles como passar a compreender a cultura? A caravela evoluiu em relação à trirrema, mas podemos dizer que Rei Lear é mais evoluída, que houve progresso em relação a Rei Édipo? Podemos dizer que do ponto de vista cultural e humano houve progresso e evolução se comparamos Sócrates com Hitler?
Então como fica a questão da criação, da evolução e do progresso em relação à cultura? Como fica a questão do ético em relação às culturas? Cultura e humano, criação e ética em relação às culturas, ou seja, criação e ética em relação ao humano. Como se dá isso tudo? Com que critérios, com que medidas medir a cultura, o humano as criações? De onde nos vêm as medidas, nos vêm os critérios? Das culturas ou das teorias que definem as culturas? Com que teorias se estabeleceram os estudos culturais? Com que teorias e critérios se definiram os valores dos estudos, ou seja, das disciplinas? E trocar disciplina por estudos, mudou alguma coisa? Se entendermos por valores o ético e a verdade das culturas, esses serão determinados pelas próprias culturas ou dependem dos conceitos elaborados pelas estudos, pelas disciplinas, a partir de alguma teoria. E a partir de qual teoria ou paradigma se poderão determinar os valores das culturas, isto é, o ético e a verdade? O que é o ético? O que é a verdade? Não podemos cair no caminho fácil dos conceitos já feitos. Temos sempre que questionar ainda que inevitavelmente cheguemos a novos conceitos. Mas ao menos procuraremos acompanhar a dinâmica da realidade. E isso exige sempre o tornar a questionar. Minha fala se move sempre no questionar, pois questionar e pôr em questão é a única tarefa do pensamento, como já nos advertiu sabiamente o pensador. E é isso o que fazem todos os grandes pensadores-poetas e poetas-pensadores. Já citei as obras de um grego, um alemão e um inglês. Pertencerem a diferentes culturas e autores não é o importante. O que decide sempre são as obras e o que elas operam.
E agora cito um grande poeta-pensador de nossa cultura: Guimarães Rosa. Riobaldo em suas andanças no ser-tão do mundo, e certamente por estes sertões de Tocantins, pois o ser-tão está em toda parte, encontra num pobre rancho uma mulher que não estava conseguindo botar seu filho no mundo. E era noite de luar. E é Riobaldo que vai ajudar no parto. Narra:
Digo ao senhor: e foi menino nascendo. Com as lágrimas nos olhos, aquela mulher rebeijou minha mão... Alto eu disse, no me despedir: - “Minha Senhora Dona: um menino nasceu – o mundo tornou a começar!...” – e saí para as luas (Rosa, 1968: 353).
Como podem constatar é uma pequena passagem dessa obra monumental que é Grande sertão: veredas. E, no entanto, aí já está pensada a essência da cultura, da criação, do ser-humano, da ética, enfim, da realidade. E ainda temos a questão da lua, do luar. O que com a insistência ao luar ele nos quer fazer pensar? Porque vocês sabem, nas grandes obras de arte, na Poética, nenhuma palavra é inútil ou meramente funcional. Nenhuma passagem ou alusão serve para conversa fiada, para diálogo meramente comunicativo. A Poética não passa porque toma sempre as coisas pela raiz, como é o caso desta passagem dessa obra-prima. “...um menino nasceu – o mundo tornou a começar!...”. O que aí mundo nos quer fazer pensar senão o que aqui estatamos tentando pensar: Pode haver mundo sem cultura? Pode haver cultura sem mundo? Pode haver cultura sem o nascimento de um ser-humano? Mas um ser-humano não pode nascer como nasce um animal, uma planta? Não têm o animal e a planta um código genético como tem um ser-humano? Por que então o nascimento do ser-humano já traz consigo o nascimento do mundo? Por que o nascimento de uma planta não traz mundo? Ou traz? Quem o pode afirmar ou negar? O que acontece no ser-humano que não acontece nos animais e demais seres vivos?
E nessa pequena passagem o grande pensador e poeta Rosa já destrói o paradigma mais resistente e antigo da cultura ocidental: o paradigma metafísico, que dá origem a todos as teorias da cultura e da ciência, enfim, a todas as teorias das disciplinas. Prestemos atenção redobrada ao que Riobaldo/Rosa diz: “...um menino nasceu – o mundo tornou a começar!...”. Quem nasceu primeiro: O menino ou o mundo? O mundo é causa primeira do menino ou o menino é causa primeira do mundo? E se então pensarmos como devemos pensar que o mundo é a realidade, perguntamos: O que nasceu primeiro o menino ou a realidade? Pode haver realidade sem menino ou menino sem realidade? No caso presente que nos reúne aqui: pode haver menino sem cultura ou cultura sem menino? Pode haver realidade sem cultura e menino ou menino e cultura sem realidade? Fica bem claro para todos que não se trata de excluir um e incluir o outro, mas de achar a causa primeira. A causa primeira, o que é isto a causa primeira?
Rosa aí não diz, mas fica subentendido que aquilo que vigora essencialmente é a linguagem. A linguagem são as possibilidades de realidade ou mundo assim como a natureza são as possibilidades de vida. Já disse Wittgenstein: “Os limites do mundo são os limites da linguagem”. Mas uma vez que linguagem são as possibilidades, quais são os limites das possibilidades? Mundo não diz aí de maneira alguma um sistema constituído por astros, planetas etc., o universo enquanto classificações científicas, religiosas, metafísicas ou algo semelhante, dentro de uma teoria criacionista ou evolucionista. Para falarmos de universo já precisamos nos mover nas possibilidades da linguagem, nas possibilidades de mundo. Um menino nasceu, o mundo recomeçou significa para os simplificadores e causalistas, que o mundo só pode recomeçar porque ele irá viver socialmente e aí aprender a linguagem e começar a reproduzir o mundo, isto é, a realidade social e cultural. Cultura é o social? Mundo é o social? E o psíquico? E o inconsciente? E o amoroso? E a dor da paixão? Tudo isso é social? É cultural? E a solidão e a angústia diante do amor e da morte? Isso é social, isso é cultural? Mas o que nasceu primeiro, o que causa o quê? E como causa é sempre igual para todos ou depende da cultura? Não se limitam os homens a repetir e a reproduzir a linguagem social e a cultura? Reproduzir pressopõe um modelo, uma medida que mede todas as reproduções. De onde vem essa medida, de onde vem esse padrão? Da realidade ou das teorias da realidade? De onde vem a explicação causal? Da realidade ou das teorias da realidade? Da cultura ou da realidade? Da cultura ou da linguagem? Da linguagem ou da realidade? Tudo muito fácil, trata-se de estabelecer a causa primeira, ou seja, o que é o princípio. Estabelecido o princípio tudo se torna fácil. É como uma chave que abre a porta para todos os conhecimentos de todas as disciplinas. Toda disciplina se baseia e pressupõe uma explicação causal: estabelecido isto, segue-se aquilo.
Por isso, quando se fala em inter-disciplinaridade trata-se de achar essa chave, essa causa primeira, esse princípio, essa medida. Medida é o critério pelo qual se mede algo, se julga algo. Critério vem de criticar. Ela pode advir no diálogo, assim se acha. Então a causa comum que se procura deve-se procurar no diálogo. Mas então a medida do diálogo deverá ser a causa, o princípio das disciplinas? Ou para o diálogo não há causa, princípio, nem esta é a medida? A medida do diálogo deverá ser a medida da inter-disciplinaridade? Na inter-disciplinaridade, pode esse “inter-“ se tornar uma medida ou está aí como um apêndice gramatical indicando apenas uma ligação das disciplinas? E toda a realidade no seu aparecer e mudar ao mesmo tempo que permanece tiver nesse “entre” um abismo misterioso para a razão e para o ser-humano? É que a essência do ser-humano é estar sempre jogado numa liminaridade, no “entre” limite e não-limite. Toda liminaridade para o ser-humano é sempre um horizonte.
Como podem observar, temos muitas perguntas, isto é, muitas questões. E não é tão fácil de respondê-las. Mas uma coisa fica logo evidente. Quando retomamos a passagem de Rosa, ele não fala de primeiro e segundo, de causa e conseqüência. Ele fala simplesmente: “...um menino nasceu – o mundo tornou a começar...”. Não há causa nenhuma aí, não há explicação causal que alguma análise me possa dar. Pelo contrário. Há uma afirmação simples e poética, sem ambigüidade nenhuma do ponto de vista gramatical. Se bem observarmos a afirmação: o tornar a começar do mundo, da realidade, da cultura, da linguagem é simultâneo ao nascimento do menino. O que têm em comum sem causa nem conseqüência é o nascer. Então a questão é muito simples. Para achar a causa de menino, realidade, mundo, cultura, linguagem é necessário achar a causa do nascer, da concepção e gestação do menino.
Mas notemos que o poeta afirma algo de radical: não é o nascimento daquele menino específico que inaugura, como um criador, o mundo, a realidade, a cultura, a linguagem, o social, o psíquico, o amor, a paixão, a dor, a injustiça, o mal, o bem, os utensílios, as obras de arte, ou seja, um nunca acabar de tudo o que se entende por realidade, mundo, cultura e linguagem. Não. Rosa diz bem categoricamente: ao nascer este, aquele ou outro qualquer menino, o mundo torna a começar. Quando um menino nasce no próprio nascer do menino nasce a realidade, o mundo, a cultura, a linguagem. Não há previamente nenhuma herança de que o menino possa se apropriar para adquirir socialmente e passar adiante dentro dos mesmos mecanismos causais. O nascer simplesmente de qualquer ser humano em qualquer tempo, lugar e cultura, é a própria realidade e mundo e linguagem nascendo inauguralmente. O que o poeta nega radicalmente são todas as explicações e análises causais. Mas vejamos que estamos falando de uma obra de arte, de Poética.
Quando examinamos a trirreme e Rei Édipo, a caravela e Rei Lear, como produtos culturais, constatamos que em uns há progresso e evolução e nas obras de arte não. Não há evolução e progresso na cultura e mundo como ético e poético. Se não há progresso e evolução não há causa e conseqüência. É não compreender toda sua força e vigor poético querer achar explicações causais. Então no mundo e na realidade temos produtos que podem ser explicados e reproduzidos causalmente e produtos que não não obedecem a explicações e análises causais. Rei Édipo é sem por quê, é sem causa. Ou como já disse o poeta alemão Ângelus Silesius num poema famosíssimo:

O por quê
A rosa é sem por quê
Floresce porque floresce.
Não se auto-contempla
Nem pergunta se alguém a vê.

Este pequeno poema nos lança num diálogo direto com a passagem poética de Rosa. Quando o menino nasce e o mundo tornou a começar não há aí nenhuma causa. O menino nasce porque nasce: é sem por quê, sem causa. A rosa floresce e sem por quê. Não se auto-contempla nem pergunta se alguém a vê. A rosa para florescer não precisa de auto-contemplação, não precisa de que alguém a veja e a explique através de alguma teo-ria (teo-horao). Não precisa de teoria e por isso não pergunta por causas. Mas podemos dizer: tudo muito simples. Ela é uma criação da natureza e não tem função nenhuma nela. Mas quando o ser-humano cria uma trirreme e depois a caravela elas são criadas a partir de determinadas finalidades, para que elas exerçam algumas funções. E qual é a função de Rei Édipo, de Antígone? Querer achar função na sua criação é a mesma que querer achar função anterior à concepção, gestação e nascimento do menino de que nos fala Rosa. Toda função é já dentro de um mundo produzido. Mas não há mundo antes do nascer do menino. Quando ele nasce o mundo torna a nascer.
Qual a diferença então do nascer do menino, do nascer e florescer da rosa e do nascer e florescer da obra de arte, de Rei Édipo? Há diferenças fundamentais entre:

a) o nascimento da rosa; b) o nascimento do menino; c) o nascimento de Rei Édipo; d) o nascimento de uma trirreme, de uma caravela, de um navio atômico, numa palavra, de todo e qualquer utensílio ou objeto instrumental. Mas antes de continuar notemos algo interessante na enumeração dos quatro nascimentos. Todos para serem têm de nascer de uma maneira ou de outra. Não nos damos conta dessa questão porque o linguajar cotidiano usa diferentes verbos para cada um desses nascimentos. Uma caravela não nasce, ela é fabricada. E quem fabrica a fábrica? De uma obra de arte não se diz que ela nasceu, mas que ela é criada. Mas toda criação não pressupõe um nascimento? Enfim, no fundo, tudo precisa nascer: do ser-humano à flor, da caravela à obra de arte.
Nascer vem do verbo latino nascor, nasci, natum, nascere. Deste verbo originou-se a palavra portuguesa natureza. Natureza é a totalidade dos entes já nascidos ou que ainda vão nascer. Natureza indica, portanto, os entes nascidos e a possibilidade de todos os entes que ainda vão nascer. Natureza não é, pois, o que nós vemos fora de nós e opomos a cultura. A negação da natureza como núcleo, essência originária de toda criação, e sua oposição às criações culturais, tem uma data marcada para seu surgimento: a modernidade. Mas antes de entrarmos por esse acontecimento e procurarmos saber por que isso aconteceu, deixemos bem clara a questão que precede essa separação, a questão do nascer. É que podemos dizer com real propriedade que tanto a natureza produz como o homem produz, como uma fábrica produz. Pro-duzir é trazer para diante pelo entre-acontecer histórico.
Podemos, no todo, considerar duas modalidades de criação:
1ª. As criações da natureza, isto é, de todos os entes, de tudo que é e está sendo. Pois a natureza como essência originária, como plena possibilidade não cria e expele e abandona as suas criaturas, ela continua presente ativamente em suas criaturas. Toda a natureza é continua mudança, é contínua presença ativa em tudo que cria. Por isso, todo ente é, em verdade, um sendo, isto é, o que foi e é, vem-a-ser e é, e só sendo e vindo a ser o que não-é. A natureza como pura possibilidade é e não-é. Porém, não só ela, mas todas as criaturas estão continuamente sendo, na medida em que a natureza é sendo. Isso é facilmente constatável, basta olhar o dia, a flor, o rio, o céu, enfim, tudo.
Disso decorre algo de que não nos damos conta: É radicalmente impossível tirar duas fotos iguais. Podemos reproduzir quase ao infinito uma foto, mas tirar duas iguais é impossível. Por isso, nada se repete na natureza. Natureza é vida. O estudo mais radical do que é vida acontece hoje na genética. E nesta não se fala nem se trata de um modo genérico da vida, isto é, não se trata de conceitos abstratos. Vida não é algo geral, genérico, abstrato. Tudo para eles é muito concreto, isto é, é um com-crescer da natureza, da vida como possibilidade em cada ser vivente. Não há nem pode haver separação entre vida e ser vivente, nem para a genética nem para nós. Isso traz conseqüências enormes para a consideração do homem, da arte, da cultura. Para os geneticistas, a cada manifestação da vida em um ser vivo, corresponde uma identidade como diferença no universo de todos os seres vivos, de todos os “sendo”.
A identidade das identidades e diferenças é a vida, a natureza. Cada sendo os geneticistas denominam “unidade genética” e o que a distingue é que ela é sempre e absolutamente única, irrepetível. Por assim ser, eles dizem que cada unidade genética é uma “autopoiese”. Mas este nome podemos igualmente atribuir a cada menino que nasce, a cada obra de arte, isto é, a cada obra poética. Cada uma é uma “auto-poiese”. Todos sabem um pouco de grego e podem compreender que “auto” significa “próprio”, as propriedades e possibilidades de cada sendo, de cada obra, de cada vida, de cada obra de arte. “Poiese” diz o nascer, o criar. Por isso, é que a Poética não passa, ela é sempre atual e permanente. Pois, um menino nasceu, o mundo tornou a começar. E não nascem meninos a todo momento?
Retomando, natureza é nascer, é possibilidade de nascimento, de tudo que nasce. E não nascem apenas animais e plantas e rios e dias e noites etc. Nascem também os homens. Não há homem, não há menino que não nasça da natureza. Tudo que nasce nasce da natureza. Fora da natureza não há nada. Por isso, é que dizemos: a natureza humana é misteriosa. E de fato é. Só os incautos é que acham que não. Mas se nós nascemos da natureza, também o saber que sabemos nasce e é um dom da natureza. A natureza nos dá o corpo e nos dá o saber, a linguagem, o poder criar. Sim, também podemos criar, mas a partir das possibilidades que a natureza já nos doa como possibilidades de criação. É por isso que o poeta-pensador pode afirmar: um menino nasceu – o mundo tornou a começar. O menino já traz em si as possibilidades sempre inaugurais de criar. Se quem doa as possibilidades é a natureza, o homem só cria a partir das possibilidades que já recebeu da natureza. De qualquer maneira, podemos (este podemos já é o exercício das possibilidades que a natureza doa para não só sermos, sabermos, podermos fazer alguma coisa, mas também dizermos e nomearmos, isto é, a linguagem são possibilidades da natureza que se atualizam no ser humano).
Também podemos falar de uma segunda modalidade de criações.
2ª. São aquelas que a própria natureza não faz, mas incumbe o ser-humano de fazer. Mas não esqueçamos que é a natureza que faz o ser-humano e lhe doa todas as possibilidades e também aquilo onde o ser-humano pode pôr em prática essas possibilidades. É o que impropriamente se chama de matéria. Para a Física a matéria é variada e algo extremamente complexo. As criações humanas e culturais usam a matéria da natureza para lhe dar formas. Linguagem é matéria? É forma? A natureza é linguagem? A superficial classificação e estudo das obras de arte partindo dos princípios de matéria e forma, não se dão conta de que linguagem são possibilidades, que jamais podem ser reduzidas a esse par básico. Esse modo impróprio de classificar as possibilidades da natureza em materiais até acontece numa impropriedade mais radical e desastrosa para compreender a própria natureza, a natureza do ser-humano e natureza das criações do ser-humano, ou seja, da cultura. É a questão da linguagem.
Os geneticistas é que fazem o uso mais impróprio, pois quando querem marcar e assinalar a presença em cada ser vivo ou unidade genética como autopoiese, eles se referem a código genético. Mas o que é isto – um código? O nome código foi retirado da lingüística, onde indica um sistema abstrato de sinais como possibilidade de uso na língua, isto é, em cada fala. Código como sistema abstrato é um conceito e como conceito tem uma existência virtual como representação de algo mais vivo e concreto. Se bem observarmos, só podemos falar de código no discurso e fala do ser-humano, e na autopoiese genética porque tanto nos seres vivos não-humano como no ser vivo humano, já existem em toda unidade genética as possibilidades dadas pela natureza. Antes de ser um código cultural é linguagem da natureza dada como possibilidades a todo ser vivo, a toda autopoiese. Se assim não fosse, não haveria nem autopoiese genética nem cultural. Fiquemos bem conscientes de que todos os níveis de possibilidades em toda a gama de seres vivos são possibilidades da natureza que se fazem presentes de um modo sempre originário e inaugural em cada ser vivo, isto é, plantas, animais e seres humanos. Linguagem são possibilidades de viver em dimensões inaugurais.
A variação das possibilidades doadas pela natureza é que determina o nível de linguagem em todos eles. Por isso, herdamos as possibilidades, mas não herdamos as que queremos. Eis porque as possibilidades poético-musicais, por exemplo, de Bach não passaram para seus filhos. Não se pode ensinar a arte, a Poética. Ela se recebe ou não da natureza como possibilidades da própria natureza em cada ser poiético. Quando Rosa diz: um menino nasceu – o mundo tornou a começar, aí ele não se refere a nenhum mundo específico, a nenhum mundo cultural, ao mundo de nenhuma época. Ele, criativa e poeticamente, está afirmando que as possibilidades de mundo, isto é, de criar obras de arte tornaram-se a fazer presentes. Por isso, nas criações culturais, devemos em primeiro lugar assinalar aquelas que são as criadoras de mundo, como sendo as possibilidades poéticas, pelas quais se criam as obras de arte.
Quando uma obra de arte é criada, um mundo acontece, mas tal mundo só acontece, como qualquer obra de arte, pela doação da natureza a certos seres-humanos, que já nascem com essas possibilidades. Estas podem se traduzir em obras ou não. A manifestação das possibilidades das obras de arte inauguram mundo. Este acontece quanto encontra leitores, cuja leitura se torna um diálogo de escuta desvelante. Só o desvelo produz diálogo poético. Desvelar como diálogo é deixar-se tomar pelo cuidado da verdade da realidade que entre-acontece em toda obra poética.
Mas como já vimos, as possibilidades poéticas que a natureza doa ao ser-humano não são as únicas possibilidades. As próprias possibilidades poéticas só são poéticas porque já vigoram nas possibilidades da linguagem. É extremamente difícil diferenciar umas das outras, mas o podemos (possibilidades críticas, de krinein) fazer porque ambas em unidade se manifestam em diferentes realizações: as obras poéticas, as obras de pensamento, as obras místicas, os mitos e os jogos em que está em jogo a vida e a morte. Este jogo essencial, sempre em ritmos e ritos perpassa todas as manifestações poéticas do ser-humano, mas não necessariamente se traduzem em obras que possamos identificar como um determinado sendo. Por exemplo, os jogos de fundação de uma polis, os jogos de abertura de realidade e época de um grande estadista.
A possibilidade de mundo passa necessariamente pelas possibilidades poéticas e pelas possibilidades da linguagem. E não podem ser ensinadas. Mas constatamos que além das obras poéticas, como exemplificamos com Édipo rei, Antígone e Rei Lear, e tantas outras poderiam ser citadas, como já foi Grande ser-tão: veredas, também há obras como trirremes e caravelas, obras que têm outra natureza e que, por isso, não perduram. Seu âmbito de existência coincide com a existência de um determinado mundo, desempenham suas funções e utilidades dentro de um determinado mundo em que elas se esgotam e o próprio mundo em que elas são usadas funcionalmente também passa. Chamamos essas obras de utensílios, objetos e instrumentos. Elas também são criações, pois dependem do agir do ser-humano, uma vez que ninguém encontra naturalmente uma caravela ou um navio atômico.
O que as caracteriza? Elas estão em função de um mundo já criado e tem a função de re-produzir o sistema do mundo criado pelas obras de arte. Mas não é que haja primeiro a natureza, depois os seres-humanos, depois as obras de arte, depois o mundo ou mundos, depois os utensílios que reproduzem esses mundos. Essa idéia de explicação causal é muito antiga e até, talvez, co-natural a referência de natureza e ser-humano. Ela está profundamente ligada à cultura, vista de uma maneira imediata, quando se tentar explicar a realidade como um todo. Se para as obras de arte falamos que a natureza doa as possibilidades poéticas e de linguagem, quando o ser-humano produz e reproduz os utensílios, no reproduzir outras possibilidades que a natureza lhe doa se manifestam. São aquelas possibilidades de aprender e ensinar, que geram os conhecimentos matemáticos (não são estes que geram o poder ensinar e aprender. Só porque já posso aprender e ensinar é que posso apreender e compreender os números).
Ao lado das possibilidades de aprender e ensinar em perfeita simbiose com elas estão as possibilidades técnicas. Estas não dizem um conhecimento técnico, mas possibilidades de aprender e ensinar um conhecimento de criação tanto das obras poéticas como dos utensílios. A sua diferença para as possibilidades poéticas e de linguagem é que aquelas podem ser aprendidas e ensinada, e estas não. Aquelas estão ligadas às funções e às formas, que podem ser ensinadas e reproduzidas. Por isso, as obras poéticas de linguagem não estão jamais ligadas às formas. Estas podem ser ensinadas, aprendidas, analisadas e explicadas, porque no fundo se explicam e analisam funções. Função é o lugar que algo exerce no funcionamento de um sistema, onde de antemão se determinam no sistema as finalidades. São funções todas as nossas atividades profissionais. A chamada linguagem social é, em verdade, apenas a linguagem poética reduzida a uma funcionalidade tendo em vista o funcionamento e as finalidades do sistema social, econômico, comunicativo, psicológico, relacional-afetivo, acadêmico etc. etc. É o que se tende a chamar, desde a modernidade, os conhecimentos das disciplinas, além dos valores, práticas e realizações da tradição, como sendo o mundo cultural de uma nação, etnia ou comunidade.
Porém, os níveis de relações dentro do mundo de uma comunidade são muito variados. Os lugares que cada um ocupa dentro do todo do mundo cultural variam muito segundo os valores codificados nas tradições, sendo distribuídos papéis e funções por idade, poder econômico, relações de sexo, de proveniências étnicas, conhecimentos (técnicos) adquiridos pela tradição, pela escolarização etc. etc. Não podemos dizer que a cada desempenho de função corresponde uma linguagem, mas que a cada função corresponde um desempenho funcional da linguagem. A própria classificação das ditas obras de criação em diversas instâncias tende a se submeter a esses níveis de funções. É em relação às funções que também se querem classificar as obras de criação. Mas serão criação em relação a quê? Ao mundo cultural onde estão inseridas ou em relação à própria natureza quando é a própria natureza que eclode, se desvela em mundo? Pois temos produção de mundo e reprodução de mundo.
Para melhor compreender isso temos agora que pensar a natureza em relação à cultura e as relações intra-culturais e inter-culturais. Mas não podemos começar a tentar compreender o que são as relações intra- e inter-culturais sem primeiro tematizarmos o que é cultura na sua referência à natureza e a cultura com tal. Isto de maneira alguma significa opor natureza e cultura. Como já dissemos acima, isso só aconteceu a partir da modernidade, mas dentro de uma profunda transformação crítica que atingiu todos os níveis da realidade e a vai distinguir de todas as épocas anteriores e distinguirá desde então a cultura ocidental de todas as outras culturas. Eis o que nos diz Octávio Paz:

A modernidade começa como uma crítica da religião, da filosofia, da moral, do direito, da história, da economia e da política. A crítica é o seu traço diferencial, seu sinal de nascimento. Tudo o que foi a Idade Moderna tem sido obra da crítica, entendida esta como um método de pesquisa, criação e ação (Paz, 2001: 34)

O fato de o modelo de cultura ocidental hoje se impor a todas as outras num processo irreversível de globalização está fundada nessa transformação crítica. É isso que teremos que ver. Mas para compreender outros aspectos é necessário que pensemos como se formou a palavra cultura e em que condições. É neste horizonte da cultura que podemos agora melhor compreender também a própria natureza e, nela, o lugar das diversas criações: naturais e humanas, ditas estas hoje, culturais.
É muito conhecida a expressão popular, quando alguém constata uma teimosia: “Não adianta você tentar mudá-lo, é a natureza dele”. Em si, tudo tem uma natureza ou em linguagem filosófica, tudo tem uma essência, algo próprio. Hoje diríamos tudo tem o seu código genético. Anterior à própria filosofia também já se pensava isso que vigora em cada um e tem recebido tão diferentes nomes. Os antigos viam como código genético de cada um a sua moira. Esta palavra grega nos diz o quinhão, a parte que cada um tinha dentro de um genos. De genos originou-se genética. Vemos, portanto, como o pensamento mítico é bem mais atual do que nós imaginamos e admitimos, sobretudo depois da Modernidade, onde tudo se fez até hoje para erradicar os mitos, mas jamais conseguirá erradicar o mítico. E Freud teve o bom senso e a genialidade de voltar ao mítico dos mitos. O mítico é mais do que o consciente e do que o inconsciente.
Não teremos aí uma pista para pensar a cultura em sua essência? O que é uma essência? Quando é necessário agora pensar a essência da cultura, o que temos em vista? Como já disse Leibniz, nada é sem alguma razão, ou seja, sem alguma essência. Em termos simples e imediatos para cada um compreender: essência é o que é próprio de cada um, o seu ser. Quando alguém diz sou isto não sou aquilo, o está afirmando a partir da sua essência. A essência é o que nos é mais próximo e íntimo e profundo, pois decide do como sou, uma vez que é o que cada um é que decide o como cada um é ou tenta ser no sendo. Mas não há ser sem não-ser, como não vida sem morte. Embora seja o mais imediato em cada um, a explicação e compreensão do que seja isso que cada um e que todos são, é o mais enigmático porque tudo é e, portanto, constitui a própria realidade. Constitui, logo, também a natureza e a cultura.
A procura do que é uma essência varia de acordo com a época. Houve a essência entendida pelos pensadores originários, a pelos filósofos gregos, a da Idade Média pelo Cristianismo. E a moderna. É nessa que todo nosso vocabulário está fundado e tudo o que, em geral, pensamos sobre cultura, disciplinas, diálogo, poética, ciência, vida, amor, morte, religião, artes. A grande questão é que tomamos essa compreensão de essência como sendo a única verdadeira, numa ignorância atroz da sua origem e das suas variações. E esse foi o maior obstáculo para mim na redação destas notas e observações, porque diante de tantas e tão profundas questões, o que até agora disse não passam de observações para levantar questões, pondo em dúvida crítica o solo firme dos conceitos. A primeira e mais genérica discordância que, em geral recebo, é a uma reação até certo sentido cômica: isso de que se está tratando é filosofia. Como se o saber conceitual acadêmico não fosse todo ele decorrente de posições filosóficas, mas que variam de acordo com a época e os sistemas filosóficos, que geram as teorias científicas. Porém, não há a menor dúvida: todos os conceitos das disciplinas têm uma origem filosófica. Mas, enfim, o que é cultura? Esta pergunta se impõe porque não podemos tentar discutir o que são os estudos inter-culturais se não nos pusermos de acordo num horizonte mínimo de compreensão do que se entende por cultura.
A cultura não é algo evidente por si. Quando lhe apomos diversos atributos, diferenciando-a, tais diferenças pressupõem um mínimo de identidade, até para concordarmos ou discordarmos. Dentro do meu horizonte de reflexão, vou procurar a sua essência. E começo pela origem da palavra cultura. Por que começar pela palavra? O ideal da ciência é reduzir a realidade a fórmulas matemáticas, o que é impossível, pois para produzir números e letras e equações já devem os cientistas, necessariamente, usar palavras, isto é, linguagem. Somos radicalmente linguagem. É dela que provêm todas as nossas possibilidades e é nela e com ela que podemos chegar a ser realidade e conhecimento. O ter bem presente isso – a necessidade da linguagem, mesmo que só nas suas possibilidades instrumentais – é a porta de entrada para a tentativa de compreensão da essência de algo, inclusive de nós mesmos.
Nossa palavra portuguesa cultura formou-se do verbo latino: colo, colui, cultum, colere. Há três sentidos profundos e ligados entre si: cultivar, habitar, cultuar. Deve ser notado que cultivar e habitar implicam-se mutuamente, pois cultivar não é só arar o campo, mas também tem o sentido moral de formar-se, educar-se, desenvolver as possibilidades intelectuais e morais. Dizemos que alguém é culto. Mas esta sepração entre vivencial e moral é artificial, metafísica: cultivar é assegurar a vida enquanto possibilidades poéticas: aquelas que recebemos do código genético, as intelectuais e as éticas, que jamais deveriam ser separadas, coisa que acontece na separação e segmentação da realidade em disciplinas, perdendo-se o sentido da concreticidade da realidade e sua dinâmica sempre inaugural, pois tais separações só são possíveis do ponto de vista de conceitos abstratos. Somos um projeto de possibilidades que temos que cultivar cultivando a permanência da vida. O que hoje em dia se torna questão é: como cultivar, seja o campo, seja a alma, seja o intelecto, também significou originariamente cultuar, isto é, o realizar o culto e as homenagens aos deuses, o entrar em contato amoroso e cuidadoso com eles? Por que a cultura se afastou do culto? Por que os deuses abandonaram o âmbito da cultura enquanto trato da natureza, da alma, do corpo e do espírito?
A ligação profunda de cultura e culto está na raiz do verbo. Como tal, a raiz denomina o mover-se no sentido de tornar-se. Mover-se não é só o deslocamento entre dois pontos. Mais radicalmente mover-se indica o vir a ser o que ainda não é, a realização das possibilidades que já nos foram dadas como destino pela própria natureza. A raiz indo-européia de cultura se faz presente em diversas línguas: indica o que ainda será no realizar-se e mover-se enquanto viver, por isso, esse mover-se é um ocupar-se de e cuidar da vida, é empenhar-se no e pelo agir daquilo que é essencial em nós. Em toda ação há um empenho por algo, visa-se a um bem. Do verbo latino colo formou-se o substantivo colus, que indica eixo central, gonzo em torno do qual tudo gira. É a base, a árvore da vida. É o próprio círculo da vida e em sânscrito: o sol que circunda o dia. Podemos facilmente notar que a cultura é todo o âmbito do real, seja como centro, eixo central, como também tudo aquilo que como o sol circunda, o dia, a vida, a realidade.
Em verdade, a cultura indica a profunda unidade de tudo num movimento contínuo de crescimento, mudança e permanência, pois indica o habitar, onde cultivar e habitar não se diferenciam. Cultivar e habitar dizem do lugar do homem como sendo perfeitamente integrado com tudo e ao todo da natureza, no estar continuamente sendo, realizando-nos. E nessa integração consiste o habitar. Lugar não é um mero espaço e tempo, diz mais. Toda habitação constitui sempre como tal um mundo. Habitar é estar sendo em meio à natureza como habitante, isto é, a natureza é tudo e implica o fora e o dentro do ser humano. Ela se lhe oferece como habitação. Habitar é estar totalmente integrado à natureza. Habitação ou casa não são as quatro paredes, é um lar, pois ela diz a identidade e a diferença no sendo do ser-humano e da própria natureza. Não há nem pode haver oposição. Ser é estar vivendo e realizando as possibilidades que a natureza já nos deu. A este movimento de identidade e diferença no habitar integrando o sendo da natureza, enquanto sendo do ser-humano, é o que originariamente se chama cultura.
E é o que o verbo, em seus sentidos profundos, denomina cultivar, habitar e cultuar. Cultura é o próprio ser-humano sendo o que é como sendo da natureza. Cultivar o que é no sendo é cultivar o que ele como natureza é em meio à natureza. Habitar a Casa é essencialmente viver enquanto sendo, daí que natureza se origina do verbo nascor, nasci, o nascer e crescer e realizar a vida, a natureza, a essência vital do que cada um é em sua natureza, isto é, em sua essência. A natureza se dando como possibilidades de sentido e mundo é a linguagem, o ético e o poético. Por isso, a linguagem é a habitação da natureza em que o ser-humano habita, enquanto possibilidades de chegar a ser na e como linguagem da vida, da natureza, do ser. Ser ser-humano é estar aberto para as possibilidades da linguagem, é habitar na linguagem, que é a habitação do ser. Habitar diz a proveniência de e o de-morar em meio à natureza, isto é, o estar e continuar vivendo, densificando-se este em vista da presença constante da morte. Esta é o mistério de onde provém a vida. É o que está velado em todo desvelamento.
O habitar tem sempre como horizonte o morrer, o que está velado, silencioso e fazendo parte da memória. A morte como fim é estranha e ignorada do cultivar e habitar a natureza. Habitar é reportar-se à fonte permanente da vida, aquilo que permanece no que não cessa de mudar. A natureza como fonte de mudança e permanência é um mistério. A essa força misteriosa da vida, todos os povos denominam, o sagrado, o divino. O sagrado se dá como possibilidade misteriosa de muitas maneiras: no bosque, na montanha, na luz, na noite, no nascer, no amadurecer das pessoas e das plantas, no amor, na amizade, na justiça e assim por diante, em todas as possibilidades da natureza. O sagrado, o ser, é tudo que não cessa de permanecer em tudo que não cessa de mudar. Essa força misteriosa é a que protege e assegura a vida. Este assegurar gera uma convivência amorosa, de satisfação, de dar-se bem, daí o sentido de habitar mais profundo: é a integração com tudo e com todos a partir da força protetora que assegura a vida. Então o cultivar torna-se naturalmente cultuar, que indica o proteger enquanto amar, prezar, ter muita afeição, compartilhar a vida em cada vivente, em cada cultura, em cada estação, em cada instância da vida. E então colo designa naturalmente o culto, isto é, as honras que os homens dão aos deuses.
Daí surgem os ritos, que são festas de agradecimento pelo estarem todos unidos compartilhando e assegurando a vida. O culto não fala aos deuses, que não precisam escutar nossas vozes. O culto lembra aos homens a força misteriosa da sua existência. Tal lembrar é agradecer, é orar, um ato de agradecimento pela dádiva cotidiana da vida, diante da morte. Um deus que precisasse ouvir orações seria um ente, não um deus. O sagrado não é algo distante, é algo misterioso, mais próximo do ser humano do que o próprio ser humano é próximo a si mesmo. E que, por isso, preside com seu vigor e permanência a vida, o cultivo, a casa, a tudo integrando, pois, como a força que a tudo gera e faz perdurar, é ela que assegura a memória do genos, da família, dos antepassados. A memória é o próprio princípio de integração de tudo, pois o centro, o eixo (colus) do mundo é o sagrado integrando o mundo do natureza, da casa, da família, do grupo social. À atuação dessa força misteriosa que se faz presente em cada instância da natureza é que se denominava deus. E cada instância recebia um nome diferente. Mas era o sagrado o que integrava tudo, que em tudo se fazia presente. Nossa idéia de deuses míticos é totalmente falsa, pois provém da separação de natureza e cultura, de vida e morte, de matéria e espírito, de vida mortal e vida imortal, de vida profana e vida religiosa, de homem culto e homem inculto, de cultura primitiva e cultura elevada ou progresso.
A oposição de cultura e culto radicalizou-se na modernidade. Nesta predomina o profano. É que esta parte de uma oposição mais radical: A oposição de natureza e cultura. Esta oposição radical gerou o que o poeta alemão Hölderlin denominou: a fuga dos deuses. Mas esta é um fenômeno ocidental. Como este modelo de comportamento em relação à realidade, à natureza se universalizou com a globalização está tornando-se um fenômeno universal. E eu creio que o maior problema que os estudos culturais, entre outros, sempre enfrentará será a oposição ocidental de natureza e cultura. A fuga dos deuses não diz aí que, de repente, os seres humanos deixaram os cultos e as práticas religiosas. Estas podem ter se tornado meras formalidades ritualísticas, sem o vigor operante do sagrado. Não. Isso é muito superficial. Então o que diz a fuga dos deuses? Em essência, é a questão do agir, do fazer, do transformar, do realizar, do construir o real. A questão da construção do real se abre num leque muito complexo de questões que dizem respeito a toda a história ocidental. Podem compreender que me é impossível dar conta disso, de toda essa complexa problemática em poucas linhas.
Centralizemo-nos na questão do agir, que é, sem dúvida, a questão motriz de todas. Mas então aí o que entender por ação? A ação da técnica, da ciência, da educação, da política, das pesquisas, das descobertas, do saber de cada e de todas as disciplinas? Da nova ação prevista dentro da inter-disciplinaridade das disciplinas? Que ação? Mas será que modernamente a ciência e a técnica já se perguntaram qual é a essência do agir? Qual é o sentido do agir? Para que agimos? E onde queremos chegar com nossas ações? Só pesquisar, pesquisar, transformar, transformar, produzir, produzir, vender, vender, pesquisando mais, produzindo mais, vendendo mais, num círculo vicioso de ciência e capitalismo? Mas não há uma outra ação, uma ação mais originária e que não tem finalidade? Não há a ação que é a essência poética de toda obra poética? Do viver humano? Não há também e principalmente a ação poética? Sim, até porque poética se forma do verbo grego poiein, que diz o agir inerente às produções poéticas, artísticas.
Pensar originariamente, radicalmente a cultura, as culturas, é ter a coragem de nos abrirmos para a Poética, não como conjunto de normas inúteis para realizar retoricamente as obras poéticas. Não, a Poética como essência do agir, seja dos deuses, seja da natureza, seja da cultura, seja dos homens, é aquele agir em que a cada instante de nossa vida de-cidimos as procuras e escolhas pelas quais decidimos o sentido de nossas ações, de nossa vida, e a realizamos com sentido, que nos torna felizes ou profundamente infelizes, deslocados e perdidos em meio a tanta produção e opções de consumo. Pelas quais só podemos cada vez mais ter sem chegar a ser. E ter não só objetos, mas também ter cada vez mais conhecimentos, com novas pesquisas e novas disciplinas e novos conhecimentos, mas onde temos e sabemos e não chegamos a ser o que temos e sabemos. Em Poética não basta ter e saber. É necessário também ser o que se tem e se conhece. É preciso reintegrar: natureza, ser-humano e cultura. E esperar, quem sabe, como possibilidade de sua integração, a volta dos deuses. Nunca será uma volta feérica, um espetáculo para os olhos ou ouvidos, produzindo alaridos e comoção. É a reinstalação do simples em cada um, do deixar vigorar em tudo a fala do silêncio e, assim, ser tomado pelo extraordinário.
É isto possível? É desde que nos tornemos poetas (sem retórica). E como então nos tornarmos poetas? Aristóteles conta uma passagem da vida de Heráclito, que pode nos abrir a porta para a volta dos deuses. É difícil? É, mas não impossível. Heráclito, diz Aristóteles, já era muito famoso como pensador e sua fama ia para além da sua cidade. Ele, como pensador, era algo diferente e raro. Recebeu o atributo de o obscuro. E habitantes e turistas de todas as partes queriam conhecê-lo. Levas e levas de pessoas e até de ônibus se dirigiam freqüentemente aos arredores de sua habitação. Todos estavam ansiosos pela novidade: Como seria um pensador pensando? Alguns, um dia, se aproximaram da porta e ficaram olhando para o surpreenderem em profunda meditação pensando. Dentro de casa, o pensador, como estava frio, se aquecia diante da lareira. Foi grande a decepção dos turistas e curiosos. Que novidade havia em ver alguém com frio se aquecendo diante de uma lareira? Heráclito, vendo o desencanto e decepção dos turistas e curiosos, abriu a porta, convidou-os a entrar na habitação com as seguintes palavras: “Entrem, aqui também mora o extraordinário”. Os deuses, o extraordinário, não fugiu do ordinário, fugiu de nossos corações e mentes que opõem natureza e cultura, porque o vigor de todo ordinário é o extraordinário, é o poético. Apreendê-lo é só aprender de novo a dialogar, abrirmo-nos para a essência do diálogo. Mas será que ainda temos tempo em meio a tantas disciplinas e saberes para o saber e o sabor do diálogo, do extraordinário em meio ao ordinário?
A irrupção da modernidade diz respeito à opção, melhor, à de-cisão pela escolha de um determinando tipo de agir e do seu sujeito. Essa opção responde à seguinte pergunta: Quem age, quem realiza, quem constrói a realidade: O homem ou a natureza? Mas não há decisão que não provenha de uma teoria. Não há prática sem teoria. A prática foi, é e sempre será uma teoria que pode se desconhecer ou se desconhece. A desintegração da unidade do ser humano com a natureza, surgiu já há muito por diversas teorias que tentaram analisar e explicar, causalmente, essa integração. Mas no caso, a procura da causa como conceito se tornou mais importante do que a questão que sempre angustiou e sempre angustiará o ser-humano, porque nessa angústia ele se vê como finito jogado nas possibilidades do não-finito. Achando uma causa que explique tudo, ele resolve a angústia. Esta angústia não é algo cultural, faz parte da essência do humano. Nenhuma cultura a pode resolver.
A cultura ocidental nas diversas modalidades formulou diferentes teorias da causa. O ser dos entes, entre os filósofos gregos, Deus entre os teólogos e filósofos medievais. A razão entre os filósofos e cientistas modernos. O ser e Deus eram algo transcendente, externo ao homem, mas que tudo determinava e, determinando, agia e comandava tudo. A novidade da modernidade não está em colocar como centro de ação a razão. Esta traz modificações profundas em relação a tudo que se teorizou antes. A teoria da razão crítica pura, centraliza no ser-humano a ação, enquanto possibilidades de conhecer da razão, mas vista esta criticametne, isto é, nas suas possibilidades puras transcendentais. Esta decisão, numa primeira instância, opõe ser e saber (contra os antigos filósofos). O ser-humano pode agir e transformar a natureza, a realidade, porque o que é depende não só do que se conhece (saber transcendente) mas do como se conhece, saber transcendental, isto é, um saber que se funda na razão humana como causa primeira e determinante de tudo, como fundamento novo e irrefutável da realidade. Também opõe a razão a Deus, isto é, a causa transcendente, que tudo criou.
O ser-humano através da razão pode criar e transformar a realidade, a natureza. Pode intervir e realizar como representação a realidade nas instâncias da razão crítica. O mundo virtual que hoje nos cerca é o fruto dessa decisão interventiva, certamente uma das possibilidades que a natureza doa ao ser-humano. Este com isso se desintegra da natureza, no que ela tinha de sagrado e inaugura o mundo profano. Não se trata apenas de uma oposição entre ciência e teologia. Trata-se da secularização de tudo, do homem, da natureza, do universo, do saber, do Estado, das produções culturais, aí incluídas as produções poético-artísticas. Estas devem agora integrar-se de uma maneira racional e crítica na construção da realidade. Tudo fica reduzido às causas racionais críticas. Tudo tem que ser crítico e racional. Criticamente fora da razão não há saber. Toda a cultura e todas as culturas devem ser vistas como produções transformadoras da natureza para implantação de um novo real.
A oposição de natureza e cultura trouxe para cena, naturalmente, a questão do que é o ser-humano, uma vez que teoricamente ele descartou todas as respostas e causas anteriores. Porém, como não se parte mais da religião nem da fé (criador do mundo e das criaturas), mas da filosofia reduzida à razão, que elabora o como se sabe como ciência, e fora da qual não há mais saber. É ela que cria não propriamente uma resposta, mas uma disciplina que, racional e criticamente, dentro da razão crítica pura – elabore a resposta à pergunta o que é esse homem racional que a tudo agora cria e transforma. É a antropologia. É evidente que esta não dá conta crítica e racionalmente, da complexidade desse enigma que é o homem e, neste horizonte, do que é a natureza. E vão se criando disciplinas sempre no intuito racional de reduzir o desconhecido ao conhecido. Isso é bom, mas não é tudo e toda a realidade. Sobretudo não é a poética. Pois a razão crítica elimina qualquer enigma. O que se desconhece ainda pode vir a ser conhecido. Basta ter paciência e elaborar novos e contínuos projetos de pesquisa.
Para isso se dotaram depois as universidades de verbas generosas, cada vez mais generosas. Porque elas, com suas descobertas, mudam e transformam o real em geral com suas descobertas disciplinares e novos produtos técnicos e culturais, gerando mais capital e recebendo mais verbas. O poder de intervenção do homem no próprio homem, nas culturas e na natureza não tem limites. Não se trata apenas de uma questão científica, mas de uma questão de fé, no homem, na ciência enquanto construtora da realidade. A razão crítica moderna não parte de enigmas. Isso são mitos e superstições. A ciência parte de certezas e persegue certezas, não e jamais questões. Até as obras de arte devem ser analisadas, explicadas e classificadas cientificamente. Na classificação está resolvida a essência da obra de arte.
Nas classificações estão resolvidas todas as culturas. À oposição de natureza e cultura, à eliminação do sagrado, segue-se naturalmente a redução de tudo a diferentes disciplinas para analisar, explicar e classificar todas as dimensões da natureza em diferentes saberes, as disciplinas. A natureza inteira e o próprio universo se torna um grande objeto, um grande feudo, onde cada disciplina tem direito a um lote, que cultiva cientificamente, partindo, equivocadamente, de que teórica e conceitualmente, a natureza e o universo se reduzem a leis passíveis de conceituação teórica. Por conceito entende-se o exercício do saber racional e científico que procura as causas ou leis subjacentes às mudanças da realidade. Conhecidas as causas é fácil e tecnicamente prático prever, controlar e determinar as conseqüências, ou seja, impor as finalidades.
Como a realidade é complexa foram se criando cada vez mais disciplinas, para ir aos poucos conhecendo todas as causas. Portanto, no todo da realidade, cada disciplina cultiva o seu lote. É um afã de pesquisas sem fim, para ir construindo a realidade que o homem racional e cientificamente vai determinando.
A outra conseqüência da oposição de natureza e cultura é que o saber científico é radicalmente intervencionista. A intervenção determina a produção como sendo sempre algo instrumental, tendo o caráter de objeto funcional. A intervenção científica se baseia numa teoria não mais da natureza, mas do saber do homem sobre a natureza. Disso resulta uma nova verdade: a da certeza. A verdade da certeza é a medida da razão do homem. É ela que determina tudo o que o ser-humano faz. Assim, as produções culturais serão de agora em diante as produções feitas dentro da verdade racional, ou seja, da certeza e exatidão da medida racional. Como a razão pode se objetivar em cálculos, serão estes a medida da intervenção na realidade e de tudo o que daqui por diante o ser-humano faz e tem. Tudo o que o ser-humano faz tem então as seguintes características: causal, funcional, finalista. O princípio causal racional é que determina a priori as finalidades e estas serão verdadeiras e úteis dentro da medida em que cumprirem as suas funções determinadas pelo princípio intervencionista da ciência racional.
Algo muda radicalmente. As produções culturais nada mais têm a ver com a natureza enquanto correspondência às suas possibilidades e manifestação. Não. Agora o princípio do saber racional elabora tudo, todas as manifestações culturais dentro de padrões científicos. Quais são estes? Tudo é regido pela verdade científica: a da certeza e a do cálculo como padrão de controle. Todos os conhecimentos disciplinares são regidos pelas seguintes dimensões: a matéria disciplinar enquanto conhecimento fica determinado pela forma. E esta fica determinada pela função e finalidade, determinando esta a natureza da criação: a instrumentalidade ou utensilidade. Desse modo, o que não for causal, funcional, instrumental e finalista ou útil, não será mais conhecimento verdadeiro. Todo saber fica reduzido às causas material e formal, onde a forma é o resultado final daquilo que a priori já se determinou como o funcional e útil. Matéria e forma ficam, portanto, dependentes da verdade científica, que é a verdade regida pela certeza e pelo cálculo. A realidade no seu todo como saber fica regida pela verdade da certeza e do cálculo. Isto é decisivo para o que está acontecendo hoje com a cultura e com toda a realidade.
O império da verdade da ciência e não mais da verdade da natureza possibilita ao saber racional humano construir a realidade dentro das medidas e paradigmas e padrões da ciência e da cultura opostas à natureza. Por isso, a verdade científica do cálculo permite a introdução de um terceiro elemento nos objeto instrumentais, que trará algo completamente novo até então. Todo objeto instrumental, todo utensílio é constituído sempre de duas causas internas: a material e a formal; e duas externas: a eficiente e a final. Tendo em vista a oposição ao agir contínuo e sempre presente da natureza, a determinação da realidade pela verdade da ciência, sua atuação determinará a mudança radical da causa formal. Esta fica agora dependente sempre da verdade como certeza e cálculo, o que permite atingir com maior objetividade as causas externas: eficiente e final.
E que elemento novo é esse? Forma é dentro da produção da natureza qualquer ente em seus limites internos e externos, frente à indeterminação da natureza como causa material. A verdade como certeza e cálculo introduz o suporte da forma, pelo qual a forma como forma fica à mercê da aplicação e presença do suporte. Até onde a introdução do suporte da forma modifica cada construção cultural ou não é para ser pensado e questionado. Aqui apenas vamos mostrar como isso acontece.
Natureza significa nascer, mas um nascer que não cessa em nenhum momento de nascer. Por exemplo, cada unidade poética é um sendo dentro de uma autopoiese ininterrupta. Tudo na natureza é assim. A finalidade e funcionalidade e medida de verdade vem da autopoiese e não da funcionalidade e finalidade a partir da verdade como certeza e cálculo. Desde a modernidade, a deliberada oposição da cultura à natureza fez emergir a nova dimensão da forma como suporte. Em que ela consiste?
Tomemos um exemplo simples. Quando pronunciamos um som, um fonema, só abstratamente podemos falar de um conceito de um fonema, por exemplo, “eme” da palavra “Manuel”. Como a natureza é sempre mudança, nenhum “eme” é jamais pronunciado do mesmo modo, até porque mudam continuamente as condições corporais, psíquicas, contextuais, conjunturais, intelectuais etc. Embora o fonema “eme” esteja sempre mudando, eu posso compreendê-lo como “eme” dentro de um sistema de relações com outros fonemas. O sentido do fonema não vem da relação com os outros fonemas, porque não há fonema sem falante e sem ouvinte. Todo fonema pressupõe um diá-logo. O sentido do fonema também não é uma produção funcional da razão. Isso é um engano racionalista. Muito menos da função conjuntural e contextual.
O sentido que o fonema realiza precede, como saber, o contexto ou conjuntura. Só posso saber que estou num contexto ou numa conjuntura, porque já me movo no sentido do fonema como mundo em que já desde sempre já estou me movendo. O sentido do fonema faz parte do mundo porque quando um menino nasce, o mundo torna a começar, como já disse poeticamente o pensador-poeta Guimarães Rosa. O ser-humano não nasce culturalmente. Todo nascer só pode tornar-se cultural porque já é radicalmente um nascer. Ao nascer que dá origem a todo nascer como tal é o que se compreende como natureza. Natureza é o nascer como nascer, o nascer do que já nasceu, do que nasce e do que nascerá; do que foi, do que é, do que será, do que é sendo e do que por estar sendo ainda não-é e jamais será a ser o não-ser.
É um engano racional achar que o sentido vem do funcionamento do sistema, de qualquer sistema. Não é a função que dá o sentido. Nada pode funcionar se as posições e ligações sintáticas já não forem determinadas pelo sentido, através do qual até posso dizer que funciona ou não funciona. Este dizer também não depende de quem diz. Pensemos um pouco. No todo da natureza como a possibilidade de todas as possibilidades, há infindáveis unidades genéticas, cada uma numa ininterrupta autopoiese, devido às possibilidades que a natureza lhe doou como código genético. Cada autopoiese ocupa uma posição. As possibilidades da natureza, do que não cessa de nascer, nos projeta numa posição e como diz Rosa dentro da possibilidade de mundo. O mundo como sentido é mais do que uma rede de relações e posições.
Dentro dessa posição, toda autopoiese se expande, realiza suas possibilidades. O ser-humano, dentro de suas possibilidades, não apenas ocupa uma posição. Ele pode, dentro do mundo como possibilidades de sentido, ter perspectivas. Se não são as relações dentro do sistema que geram a posição de cada um também não é a perspectiva que me dá a ver o que vejo na realidade. A realidade (natureza ou physis entre os gregos) já se dá a ver (daí a nossa palavra fenômeno) como mundo e sentido, e possibilita as diferentes relações com os outros e com as coisas. Se a realidade não se desse a ver eu nem poderia mudar de perspectiva. Eu posso ver e ter no que se dá a ver diferentes perspectivas. Se agora constatamos que alguém está numa posição e não há outros seres humanos nem outros entes, não há nada, ele está só no infinito. Será que podemos dizer que ele tem uma posição e pode ter perspectivas? Como determinar a posição de alguém ou de algo dentro do infinito? Impossível, porque não há medida de referência e relação. Não havendo medida é impossível determinar qualquer posição. E se não posso determinar qualquer posição também não posso determinar um limite, ou seja, uma forma nem matéria alguma.
Porém, constatamos também que ocupamos uma posição determinada pelos limites internos e externos, e que temos perspectivas. Mas então de onde elas provêm? De onde provêm os limites e as perspectivas? Não é da razão, de onde se gera a verdade como certeza e cálculo. Estes já prevêem a posição e a perspectiva, num círculo vicioso. Também não pode haver matéria e forma, espaço e tempo. Há, pois, algo que me permite o limite e com ele a forma e a matéria, pois temos posições, limites, formas e matérias, espaço e tempo. O que aí já se dá e ainda não foi nomeado e percebido e compreendido? O horizonte. O que é o horizonte? O horizonte esférico e vertical nos lança nos abismos da tensão, do entre, limite e não limite. Onde o limite e a matéria são doações do não-limite e do vazio, do não-ser. Toda fala e visão são doações da não-fala e da não-visão. Mas em todo sendo só podemos ininterruptamente continuar sendo porque somos uma doação da possibilidade de estar sendo a partir do não-ser.
Voltemos agora ao fonema. Este não existe sem a fala, mas esta implica posição, perspectiva, horizonte, tensão de fala e silêncio. Todo horizonte vigora num “entre” enigmático. É ele e só ele que pode permitir a inter-disciplinaridade. Esta vive da tensão entre o limite (disciplina) e não-limite (não-disciplina). A posição do positivismo é aparência e superficialidade. Sem horizonte não há perspectiva, não há teoria, não há ciência. O que a ciência faz é se opor à natureza reduzindo tudo à cultura, isto é, ao limite, como possibilidade de aplicar uma medida como verdade de certeza. Mas essa aplicação só é possível à forma e matéria enquanto forma-limite sem a dinâmica do fonema como algo vivo e natural.
Surge então o conceito de algo como passível de um saber abstrato aplicável às formas-conceitos e a aplicação da verdade como exatidão e certeza. Isso, em relação à cultura, revoluciona tudo, pois dá origem aos suportes. Estes influem radicalmente na transmissão e acumulação das produções culturais. Eles estão sempre ligados às possibilidades do matemático e da técnica como conhecimento e não somente das técnicas de conhecimento. O fonema quando se transforma numa letra é um suporte-formal como conceito abstrato, sem a dinâmica do horizonte, do fonema vivo e em contínua transformação. O abstrato é sempre o abstrato do limite, do matemático mensurável e do seu conhecimento técnico. Surge com as letras o suporte conceito-formal, onde a matéria é determinada pelo suporte conceito-formal enquanto limite abstrato. É a escrita o suporte conceito-formal mais antigo que conhecemos. Quem já o tematizou de maneira profunda foi Platão no diálogo Fedro. E vai estar ligado a quê? À questão da memória, ou seja, da linguagem (logos) como mundo. Hoje quando lemos um texto de Sófocles, lemos as letras, mas não poderemos jamais chegar a conhecer e a experienciar os fonemas vivos, concretos, o contexto e a conjuntura. Mas algo fica e permanece: o horizonte no que ele se doa no limite como não-limite, no ver como não-ver, no saber como não-saber, no ser como não-ser. Então a escrita é inútil? Não é isso que se está discutindo nem tentando colocar como questão. Já sabemos o que é útil para determinar o que é inútil? A medida do útil ou do inútil não pode vir da verdade da ciência como exatidão e certeza.
E antes da escrita como se dava a permanência na mudança? Isso fica bem claro nos mitos e nos ritos, a partir da memória. A escrita da memória é apenas a memória da escrita. O mito e o rito vivos são sempre a tensão de natureza e cultura a partir do incessante nascer. E todo nascer é inaugural, como, volto a repetir, já nos afirmou Rosa. Nenhuma escrita, nenhum suporte forma-conceito pode inaugurar realidade. Ora o que caracteriza os instrumentos e pode fazer dele instrumentos é justamente a funcionalidade e a finalidade. Estas é que determinam a matéria e a forma. Como a funcionalidade e finalidade podem ser medidas pela verdade científica, estabelecendo através de sua medida a exatidão, todo instrumento pode ser determinado pela suporte limite-conceito. O suporte-conceito escrita em seu limite calculável pode então passar pelos seguintes processos e dimensões:

1º A produção de instrumentos ou produtos culturais com a função de intervenção e construção da realidade, da transformação da natureza em cultura;

2º. A reprodução desse instrumento ou produto cultural a partir da verdade científica como medida suporte conceito-forma. A escrita pode reproduzir e transmitir porque é determinada pela função e finalidade. Uma letra pode ser reproduzida praticamente ao infinito;

3º. A reprodução a partir do suporte forma-conceito permite a acumulação indefinida no tempo e no espaço. O que dependia da memória viva como tempo do mito e do rito, enfim, da narração, se congela agora numa forma-conceito estática e repetível abstratamente. Mas na reprodução perdura o horizonte, cujo não-limite do limite se torna a essência da obra de arte. Podem os suportes influenciar a essência da criação poética, uma vez que eles se referem sempre, enquanto algo abstrato, a limites? Qual a relação entre suporte e horizonte, ou seja, entre o limite e limite e não-limite? Qual o lugar do “entre”? Não é o próprio horizonte o “entre”?

4º. A reprodução do acumulado resolve o problema da transmissão. Esta, porém, traz para cena os dados fundamentais de toda criação: posição, perspectiva e horizonte. Estes não podem tornar-se conceitos abstratos e se imporem à natureza. E é nesta dinâmica que surge com toda a importância cada ser-humano concreto num tempo e num espaço para além das formas-limites conceitos ou das produções que ficarem restritas às determinações dos utensílios ou instrumentos. Voltamos aqui agora a comparação entre trirreme e Rei Édipo, caravela e Rei Lear.
O que podemos ver é que a história ocidental está de certo também influenciada pela história dos suportes formas-conceito. A grande transformação da modernidade em relação à Idade Média tem a ver com a invenção da caravela e da imprensa. A determinação das produções culturais fica assim dependente da oposição natureza cultura, mas porque esta já está inserida também num predomínio da razão crítica na produção de instrumentos e de formas-conceitos. Mas então devemos distinguir, discernir criticamente os produtos científico-culturais dos produtos não instrumentais. Não podemos igualar caravela, produto instrumental, e Dom Quixote, obra de arte. Com a obra de arte nada se faz de útil ou inútil. Ela não obedece a uma causalidade, funcionalidade e finalidade instrumentais.
À imprensa seguiram-se na primeira metade do século vinte, os meios fonográficos de reprodução, a invenção da foto e do cinema no final do século dezenove. E hoje temos as info-vias. De todos estes suportes formas-conceitos surgiu uma vasta produção cultural em todos os níveis. Hoje é uma verdadeira indústria cultural. Mas essa indústria tem a marca de qualquer outro produto saído das descobertas científicas produzidas tecnicamente. Não está na essência da técnica poder ser transformada em instrumento toda e qualquer produção cultural? Até onde o cultural pode ser determinado pela técnica? A essência da técnica é a possibilidade dos suportes. É aqui que devemos voltar à questão da cultura ligada à natureza. Se pensarmos a cultura como cultivar, habitar e cultuar, então cultura está sempre no horizonte da natureza e então não teremos simplesmente cultura, temos antes obras de arte, que serão como obras poéticas mais fundamentais do que meramente produtos culturais. Serão produtos do humano na dimensão e vigência do extra-ordinário, na vigência do horizonte onde se dá a tensão permanente de limite e não-limite, que é a própria vigência do saber e não-saber, do ser e do não-ser, da vida e da morte.
A redução das produções a utensílios e a instrumentos é a possibilidade de reduzir a cultura a produtos culturais dentro de suportes técnico-formais. Como esses suportes hoje se tornaram universais, globalizados, o que temos é uma gama de produtos culturais em todos os povos dentro desses parâmetros e que recebem diversas denominações, mas todos eles entram num nome genérico como produtos culturais. Eles aparentemente se tornaram tão diversificados que já constam desde 1999 na Organização Mundial do Comércio como produtos culturais ao lado dos produtos agrícolas. Como falar desses produtos culturais como fazendo parte ainda de identidades culturais? E as próprias identidades culturais com a globalização do turismo não se tornaram objetos de consumo? E não são cultivadas e preservadas como produtos de consumo para os turistas? Não é o turismo hoje um dos principais produtos para os povos que desenvolveram uma cultura diferente e original? Até onde ainda mantêm a sua essência originária e se tornam para seus povos experienciações do humano em profunda comunhão e união com a natureza, onde não haja delimitação precisa e técnica do que é cultural e do que é natural? Onde não haja fuga dos deuses e do mítico?
Dentro de um horizonte de globalização como ainda falar de inter-culturalidade? O que determina a inter-culturalidade? Serão os meios técnicos enquanto suportes formais-conceituais ou ainda serão as culturas experienciações do horizonte, onde entre-acontece o “inter-“ de toda cultura? Não será o “entre” a identidade de todas as diferenças, enquanto possibilidade sempre aberta de afirmação das diferenças? Mas como levar a valorizar o “entre” como identidade para que se possam preservar e valorizar as culturas em suas diferenças originárias, isto é, sem se curvarem e vulgarizarem como produtos culturais de largo consumo? Todo consumo só é possível dentro de uma determinação da cultura como objeto, como utensílio, isto é, que fica reduzido a funcionalidades e finalidades de consumo, sejam estéticas, sejam de exotismo, puro consumo turístico.
Nos produtos culturais reduzidos a objetos de consumo o que em primeira instância se perde no consumo é a dimensão do humano, porque então o humano como o extraordinário de todo ordinário não se consuma, só se consome. Consumar é levar à plenitude de possibilidades de realização. Isso ainda será possível numa sociedade globalizada que, parece, virou um rei Midas. Pois tudo que ela toca se torna produto de venda, capital, lucro, riqueza. A sociedade globalizada está tão impregnada do mito de Midas da riqueza que, na oposição de natureza e cultura, quem mais sofre com tal oposição é o próprio ser humano. Num processo de intervenção na realidade que alçou o ser-humano para primeiro plano, deixando em segundo a natureza, como aquilo que deve ser transformado e explorado para servir ao novo homem, parece que o feitiço da razão se voltou contra o feiticeiro.
Hoje, todo o processo educacional, baseado no império da razão crítica, tem por objetivo primordial fazer das universidades centro de pesquisas e conhecimentos, que têm por finalidade preparem os seres-humanos para se tornarem recursos humanos e para fazerem de toda a natureza recursos naturais. O poder do novo conhecimento interventivo intervém tão radicalmente que nem o ser-humano escapa dele. Mas será que os ser humano realiza as possibilidades de viver tornando-se mero recurso dentro de um sistema funcional? Será que essa é a finalidade da vida? Ou melhor, será só essa a finalidade? E onde fica a liberdade?
Em meio à vigência da natureza, surge o ser-humano como o lugar da eclosão da liberdade. A prometida liberdade outorgada pelo exercício da razão levou-o à liberdade de exercer ou não uma função ou funções dentro dos sistemas, produtivos ou operativos, mas sempre dentro de sistemas, sempre em funções. Mas será esse o horizonte de realização da liberdade humana? Será esse o sentido mais profundo da cultura? O mundo não se constitui num sistema de relações dentro do qual o ser-humano se realiza ao desempenhar nele funções, realizando as finalidades dos sistemas. Não. Diz-nos Rosa que o mundo torna a nascer quando um menino nasce. Para tentar responder ao sentido do ser-humano e de sua liberdade essencial, temos que voltar às obras de arte, mas não para tornar conhecimento delas dentro de sistemas de classificações funcionais. Temos que nos voltar para as obras de arte no que elas são essencialmente, fora de qualquer teoria prévia, como suporte teórico ou crítico-paradigmático.
Quando se multiplicam pela impressão as obras de arte poético-literárias, não é na letra que encontraremos o que elas são poeticamente. Pois elas não podem ser classificadas pelas matéria e pelas formas. Estes são conceitos para classificar e analisar as funções dos utensílios. As obras de arte pedem outra atitude, outros procedimentos, outro método. Elas são fala do silêncio, um sendo do, no e para o não-ser. Então elas ao serem lidas exigem algo muito mais profundo do que uma classificação formal ou uma busca de um deleite estético. Elas exigem radicalmente um diálogo. Todo diálogo se dá sempre para além de uma posição e de uma perspectiva. O diá-logo já nos joga no horizonte, onde o limite e o não-limite são o vigor operante de toda obra poética.
A palavra diá-logo forma-se do prefixo grego diá- que significa através de, entre. Em linhas gerais podemos falar de três diálogos: o comunicativo-informacional; o hétero-diálogo, o auto-diálogo. Uma coisa é certa, nunca haverá diálogo se só alguém falar. Há sempre radicalmente a necessidade da escuta. Na realidade só chega a falar verdadeiramente quem já radicalmente mergulhou na escuta. O alcance dos produtos culturais feitos em série, a chamada cultura pop, não passa do fácil e superficial diálogo comunicativo, que se esgota com o entretenimento. Mas se nos voltarmos para a obra-prima que é Grande sertão: veredas, notaremos que ele entre-acontece no horizonte de seu limite e não-limite como hétero-diálogo e auto-diálogo.
Toda obra poético-artística radica no hétero-diálogo. Não podemos confundir ponto de vista narrativo com posição dialogal. Todo narrador ou qualquer personagem não passam de personagens-questões. Porém, numa leitura atenta de Grande sertão: veredas, vamos descobrir uma declaração estranha de Riobaldo. Ele diz que fala para o ouvinte e não pára de falar, de narrar sua vida vivida como vida experienciada, onde nunca chegamos a saber a opinião do ouvinte. É que, no fundo, ele só fala, como o próprio Riobaldo diz em certo momento, para melhor ouvir a ele mesmo. Então, no fundo, o que temos em toda obra poético-artística é um auto-diálogo. O que é um auto-diálogo? Nada mais, nada menos do que a fala e escuta do que nos é próprio, do que constitue nossas possibilidades. E o que é o próprio enquanto nossas possibilidades? Aquilo que é comum e o fundamento dos três modos de dialogar: o logos. Mas o que é o logos? É uma enigmática palavra grega, que já recebeu ao longo da caminhada do ocidente numerosas traduções. No fundo, ele diz simplesmente linguagem.
Mas o que é linguagem? Não podemos perguntar nem à gramática nem à lingüística, pois para tentarem conceituar o que é linguagem já se movem na linguagem. A linguagem é o “entre” de todos as culturas, de todas as possibilidades de inter-culturalidade. A linguagem é não-limite do horizonte onde o extraordinário do não-limite é a possibilidade do ordinário de todo limite. A linguagem, o logos, é a Poética entre-acontecendo. O entre-acontecer é o caminho de toda possível leitura, de toda possível inter-culturalidade. Mas o melhor caminho para nos lançarmos na questão que é a linguagem, fonte de todo diálogo, é o que nos diz poeticamente Guimarães Rosa numa famoso e enigmático conto: “A terceira margem do rio”. Nele somos convidados ao diálogo com o extra-ordinário, onde Poética, cultura e diálogo podem entre-acontecer. Terceira margem do rio, eis o “inter-“ de toda possível culturalidade como diálogo poético.

Bibliografia

PAZ, Octávio. A outra voz. S. Paulo, Siciliano, 2001.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 6. e. Rio de Janeiro, José Olympio, 1968.

28 outubro 2008

O "Trans-" , o "Inter-" e o conhecimento

O “Trans” e o “Inter”

Manuel Antônio de Castro

Abaixo transcrevemos um ensaio que nos fala de transdisciplinaridade. É um convite à reflexão e ao aprofundamento de questões que dizem respeito à ciência. Até onde tais reflexões nos levam a aprofundar as questões em torno da referência do ser e do ser humano enquanto obra de arte?
É isso que propomos. Primeiro o ensaio de Basarab Nicolescu. Depois algumas observações minhas. Trata-se de pensar a questão que hoje a todos aflige: como num mundo fragmentado e de corações e mentes fragmentadas ir além ou aquém do saber que funda a realidade na modernidade?

UM NOVO TIPO DE CONHECIMENTO - TRANSDISCIPLINARIDADE

Basarab Nicolescu

Físico teórico do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França (C.N.R.S.).
Fundador e Presidente do Centro Internacional de Pesquisas e Estudos Transdisciplinares (CIRET).
[...]
A metodologia da transdisciplinaridade

c. A lógica do Terceiro Incluído
O desenvolvimento da física quântica, assim como a coexistência entre o mundo quântico e o mundo macrofísico, levaram, no plano da teoria e da experiência científica, ao aparecimento de pares de contraditórios mutuamente exclusivos (A e não A): onda e corpúsculo, continuidade e descontinuidade, separabilidade e não separabilidade, causalidade local e causalidade global, simetria e quebra de simetria, reversibilidade e irreversibilidade do tempo etc. O escândalo intelectual provocado pela mecânica quântica consiste no fato de que os pares de contraditórios que ela coloca em evidência são de fato mutuamente opostos quando analisados através da grade de leitura da lógica clássica. Esta lógica baseia-se em três axiomas:

1. O axioma da identidade: A é A;
2. O axioma da não-contradição: A não é não-A;
3. O axioma do terceiro excluído: não existe um terceiro termo T (T de "terceiro incluído") que é ao mesmo tempo A e não-A.

Na hipótese da existência de um único nível de Realidade, o segundo e terceiro axiomas são evidentemente equivalentes. O dogma de um único nível de Realidade, arbitrário como todo dogma, está de tal forma implantado em nossas consciências, que mesmo lógicos de profissão esquecem de dizer que estes dois axiomas são, de fato, distintos, independentes um do outro. Se, no entanto, aceitamos esta lógica que, apesar de tudo reinou durante dois milênios e continua a dominar o pensamento de hoje, em particular no campo político, social e econômico, chegamos imediatamente à conclusão de que os pares de contraditórios, postos em evidência pela física quântica, são mutuamente exclusivos, pois não podemos afirmar ao mesmo tempo a validade de uma coisa e seu oposto: A e não-A. A perplexidade produzida por esta situação é bem compreensível: podemos afirmar, se formos sãos de espírito, que a noite é o dia, o preto é o branco, o homem é a mulher, a vida é a morte?

O problema pode parecer da ordem da pura abstração, pode parecer interessar apenas alguns a lógicos, físicos ou filósofos. Em que a lógica abstrata seria importante para nossa vida de todos os dias? A lógica é a ciência que tem por objeto de estudo as normas da verdade (ou da "validade", se a palavra "verdade" for forte demais em nossos dias). Sem norma, não há ordem. Sem norma, não há leitura do mundo e, portanto, nenhum aprendizado, sobrevivência e vida. Fica claro, portanto, que de maneira muitas vezes inconsciente, uma certa lógica e mesmo uma certa visão do mundo estão por trás de cada ação, qualquer que seja: a ação de um indivíduo, de uma coletividade, de uma nação, de um estado. Uma certa lógica determina, em particular, a regulamentação social.

Desde a constituição definitiva da mecânica quântica, por volta dos anos 30, os fundadores da nova ciência se questionaram agudamente sobre o problema de uma nova lógica, chamada "quântica". Após os trabalhos de Birkhoff e van Neumann, toda uma proliferação de lógicas quânticas não tardou a se manifestar. A ambição dessas novas lógicas era resolver os paradoxos gerados pela mecânica quântica e tentar, na medida do possível, chegar a uma potência preditiva mais forte do que a permitida com a lógica clássica.

A maioria das lógicas quânticas modificaram o segundo axioma da lógica clássica: o axioma da não-contradição, introduzindo a não-contradição com vários valores de verdade no lugar daquela do par binário (A, não-A). Estas lógicas multi-valentes, cujo estatuto ainda é controvertido quanto a seu poder preditivo, não levaram em conta uma outra possibilidade, a modificação do terceiro axioma: o axioma do terceiro excluído.

O mérito histórico de Lupasco foi mostrar que a lógica do terceiro incluído é uma verdadeira lógica, formalizável e formalizada, multi-valente (com três valores: A, não-A e T) e não-contraditória.

A compreensão do axioma do terceiro incluído — existe um terceiro termo T que é ao mesmo tempo A e não- A — fica totalmente clara quando é introduzida a noção de "níveis de Realidade". Para se chegar a uma imagem clara do sentido do terceiro incluído, representemos os três termos da nova lógica — A, não-A e T — e seus dinamismos associados por um triângulo onde um dos ângulos situa-se num nível de Realidade e os dois outros num outro nível de Realidade. Se permanecermos num único nível de Realidade, toda manifestação aparece como uma luta entre dois elementos contraditórios (por exemplo: onda A e corpúsculo não-A). O terceiro dinamismo, o do estado T, exerce-se num outro nível de Realidade, onde aquilo que parece desunido (onda ou corpúsculo) está de fato unido (quantum), e aquilo que parece contraditório é percebido como não-contraditório.

É a projeção de T sobre um único e mesmo nível de Realidade que produz a impressão de pares antagônicos, mutuamente exclusivos (A e não-A). Um único e mesmo nível de Realidade só pode provocar oposições antagônicas. Ele é, por sua própria natureza, auto-destruidor, se for completamente separado de todos os outros níveis de Realidade. Um terceiro termo, digamos, T’, que esteja situado no mesmo nível de Realidade que os opostos A e não-A, não pode realizar sua conciliação.

Toda diferença entre uma tríade de terceiro incluído e uma tríade hegeliana se esclarece quando consideramos o papel do tempo. Numa tríade de terceiro incluído os três termos coexistem no mesmo momento do tempo. Por outro lado, os três termos da tríade hegeliana sucedem-se no tempo. Por isso, a tríade hegeliana é incapaz de promover a conciliação dos opostos, enquanto a tríade de terceiro incluído é capaz de fazê-lo. Na lógica do terceiro incluído os opostos são antes contraditórios: a tensão entre os contraditórios promove uma unidade que inclui e vai além da soma dos dois termos.

Vemos assim os grandes perigos de mal-entendidos gerados pela confusão bastante comum entre o axioma de terceiro excluído e o axioma de não-contradição. A lógica do terceiro incluído é não-contraditória, no sentido de que o axioma da não-contradição é perfeitamente respeitado, com a condição de que as noções de "verdadeiro" e "falso" sejam alargadas, de tal modo que as regras de implicação lógica digam respeito não mais a dois termos (A e não-A), mas a três termos (A, não-A e T), coexistindo no mesmo momento do tempo. É uma lógica formal, da mesma maneira que qualquer outra lógica formal: suas regras traduzem-se por um formalismo matemático relativamente simples.

Vemos porque a lógica do terceiro incluído não é simplesmente uma metáfora para um ornamento arbitrário da lógica clássica, permitindo algumas incursões aventureiras e passageiras no campo da complexidade. A lógica do terceiro incluído é uma lógica da complexidade e até mesmo, talvez, sua lógica privilegiada, na medida em que nos permite atravessar, de maneira coerente, os diferentes campos do conhecimento.

A lógica do terceiro incluído não abole a lógica do terceiro excluído: ela apenas limita sua área de validade. A lógica do terceiro excluído é certamente validada em situações relativamente simples, como, por exemplo, a circulação de veículos numa estrada: ninguém pensa em introduzir, numa estrada, um terceiro sentido em relação ao sentido permitido e ao proibido. Por outro lado, a lógica do terceiro excluído é nociva nos casos complexos, como, por exemplo, o campo social ou político. Ela age, nestes casos, como uma verdadeira lógica de exclusão: bem ou mal, direita ou esquerda, mulheres ou homens, ricos ou pobres, brancos ou negros. Seria revelador fazer uma análise da xenofobia, do racismo, do anti-semitismo ou do nacionalismo à luz da lógica do terceiro excluído.

Conclusão:
Sem uma metodologia a transdisciplinaridade seria uma proposta vazia. Os Níveis de Realidade, a Complexidade e a Lógica do Terceiro Incluído, definem a metodologia da transdisciplinaridade. Só se nos apoiarmos nesses três pilares metodológicos poderemos inventar os métodos e modelos transdisciplinares adequados a situações particulares e práticas.

Referências
- Gibbons, Michael et al., The New Production of Knowledge - The Dynamics of Science and Research in Contemporary Societies. Londres, Sage: 1994.
- Nicolescu, Basarab O Manifesto da transdisciplinaridade. São Paulo, Triom: 1999. Tradução do Francês por Lúcia Pereira de Souza.
- Site do Centro Internacional de Pesquisa e Estudos Transdisciplinares (CIRET): http://perso.club-internet.fr/nicol/ciret/ .

Oservações para diálogo.

Manuel Antônio de Castro

A substituição da disciplina pela trans-disciplina ainda não saiu do âmbito moderno e metafísico do “como saber crítico”, porque ainda fica na renitente insistência científica e lógica de querer reduzir a physis à cultura (ao como se sabe, como se faz, como se sem te, como se crê, como se cria). Só sairemos da cultura e seus produtos quando compreendermos que cultura e natureza não se opõem, mas também não formam uma síntese.

Notemos que o autor fala de “modelo” ou método para incluir o T (o terceiro excluído). É sempre a idéia metafísica causal da realidade, onde se busca determinar o terceiro como “algo” passível de “modelo”, a que preside uma “medida” ou “critério”. No horizonte deste critério, a realidade pode ser “conhecida”, é passível da aplicação de um método para depois intervir (prática, aplicação) na realidade.

A questão da realidade se torna o problema de achar uma “nova” medida, uma nova verdade, pois o “critério” sempre determina, nessa visão, a verdade da realidade e a realidade da verdade.

Mas qual é a questão da realidade? Ela já está colocada na sentença 123 de Heráclito: Physis kryptestai philei (O desvelar-se ama velar-se / A realidade apropria-se no velar-se). Nunca poderá haver uma “medida”, um critério para o kryptestai, senão deixará de ser kryptestai (physis). Ele pode ser acolhido no amar. Mas haverá algum dia medida ou critério para o amar? E isso não é muito bom? Não é bom que as diferenças não tenham nunca uma medida? Não ter medida é não ater controle. Caso contrário, ainda seriam diferenças? No entanto, podemos acolher sempre as diferenças. Caso contrário, também deveríamos afirmar que há uma dicotomia radical entre as diferenças. Então o que pro-curar? O que nas diferenças é o seu vigor, não para determiná-lo e medi-lo, mas para deixar que ele opere e vigore. E assim deixe as diferenças serem diferenças, porque movida pelo mesmo de todas as diferenças: a identidade (possibilidades de ser). Mas agora não mais a formal e lógica, de que fala o ensaio acima, no início. A obra de arte é a identidade, como diálogo possível, de todas as diferentes leituras. Mas o que é o dia-logo?

Então deveremos no lugar da transdisciplinaridade pensar o “entre” de toda “inter-disciplinaridade”. O que é esse “entre”? Um neutrale tantum, o mesmo de que nos fala o pensador Parmênides, na sentença VII: “O mesmo é pensar e ser”. Quando colocamos estas questões, devemos estar atentos ao fato de que elas já são a vigência do krinein, de um criticar não apenas racional e do como conhecer, mas a própria realidade em sua disputa originária (Sentença 53 de Heráclito): De todas as coisas a guerra [polemós: disputa] é pai, de todas as coisas é senhor; a uns mostrou deuses, a outros, homens; de uns fez escravos, de outros livres.) (Cf. a interpretação de M. Heidegger in: Ser e verdade, p. 97 a 136. Petrópolis, Vozes, 2007).

Devemos compreender, a partir da vigência do krinein, que a realidade sempre se vela. Quando vemos o dia, não vemos o sol em sua presença como tal, vemos o manifestar-se de sua presença, mas em que ele mesmo como sol, não pode ser visto. Quando ele, em sua luz, se retrai temos a noite. Mas nesta ainda não temos o sol em seu velar-se. Temos como velamento a presença do sol, como o que não pode ser visto tanto em presença como em ausência. Notemos, no entanto, que não há aí fundamento e fundado, pois sem o sol e sua presença vigorante não há noite nem dia. Portanto, não podemos reduzir o sol a T (terceiro excluído), passível de um novo modelo de conhecimento, passível de um critério, de uma medida. A noite e o dia do sol, são, no dizer do pensador-poeta, Guimarães Rosa, veredas do grande ser-tão. Um tão como tao que nos convoca ao diá-logo, como o mesmo de todas as falas e escutas: as veredas, veredazinhas. Mas estas são Sabedoria para poucos, diz ele: os doidos. “Ao doido doideiras digo”. É a sabedoria de que nos fala outro pensador-poeta: Platão, no dia-logo: Fedro. Então tal sabedoria não é mais o simples saber, é amor.

Cf. meu ensaio: “Interdisciplinaridade poética: o “entre”. In: Rev. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 164: 7/36, jan.-mar., 2006.