30 setembro 2008

Criticar é amar

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A vida como possibilidade de presença é a possibilidade da morte como ausência. Se a morte não estivesse já desde sempre velada não haveria a vida desvelada. Viver é o desvelo amoroso de aceitar sempre a provocação da morte.
Só porque estamos vivendo e sendo (presentificação) é que parece que a morte é a sua negação. Na verdade, a vida é uma doação, um presente amoroso da possibilidade da morte que se retrai e se ausenta para deixar a vida ir sendo vida. Todo sendo e todo vivendo se dimensionam num entre misterioso de poder ser e de poder não-ser, de poder viver e poder morrer. Todo sendo chega a ser o que já é porque pode chegar a ser o não-ser que possibilita e doa o sendo do ser.

Só aparentemente vemos o que vemos no horizonte como alcance de nossa visão. Boa visão não é aquela que vê tudo que é visível. Boa visão é a que vê o não-visível no visível. Nem vemos o olho que vê embora nele, que não se vê, se realize toda possibilidade de visão. Na realidade, vemos o que se dá a ver daquilo que dando-se a ver se retrai e vela, enquanto não-visível, como possibilidade de todo visível. Só por podermos ver a partir da possibilidade do não-ver é que efetivamente podemos chegar a ver o que vemos. Por que vemos pouco, muito pouco? Porque não é necessário ver muito, só o essencial. Por que vemos o limitado sempre ligado à perspectiva ou até mesmo às perspectivas? Porque se víssemos, na perspectiva, a partir da possibilidade de todo ver, que sempre se retrai para podermos ver o que se mostra como perspectiva, veríamos o não-limite de todo ver, ou seja, nada veríamos, porque, enfim, não mais haveria horizonte.

Ver não é uma questão de perspectiva. É uma questão de memória. Daí sermos não pessoas perspectivistas e perspectivadas, mas seres histórico-temporais. E isto é o sendo. Todo ver na dinâmica da memória é ver o já possível de ser (visto). O que é possível de ser é o não-ser sendo. O que é possível de ser visto é o não-visto de todo ver.
O viver, o ver e o conhecer-da-consciência, eis nossos limites como presentes e presentificações do morrer, do não-ver e do não-conhecer da consciência. Mas então viver, ver e conhecer é estar originariamente jogado e projetado no entre limite e não-limite. É um entre que já constitutivamente nos põe num krinein/criticar histórico-ontológico, que se desdobra num questionar, escutar, discernir, dialogar e amar.
Experienciar isto – como esse entre misterioso, eis os caminhos ambíguos e os desafios éticos sempre novos do pensamento e do poético. Apreender e compreender isso – eis nossa procura e empenho nos desempenhos críticos, uma procura e empenho sempre ético e poético: um empenho e desempenho amorosos.

26 setembro 2008

A linguagem poética e a instrumental


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Os limites do mundo são os limites da linguagem. Wittgenstein.

A linguagem fala, não o homem. O homem só fala quando corres-
ponde à linguagem. Heidegger.

Linguagem e língua
O alcance de toda leitura está diretamente ligado ao alcance da atuação e compreensão do que é linguagem. Para deixá-la atuar, temos que nos abrir para a sua fala, exercitando a escuta. Para compreendê-la, temos que afastar qualquer pretensão conceitual e tomar profunda consciência de que ela é essencialmente uma questão.
No entanto, muitos são os conceitos de linguagem que dizem mais respeito ao que é língua e o seu estudo sistemático remonta aos sofistas através da invenção da gramática. A linguagem propriamente dita como questão sempre fez parte de todo fazer mítico-poético. Basta lembrar o mito de Hermes, cujo nome significa verbo, daí ser um deus mensageiro que se constitui na própria mensagem. A linguagem está diretamente ligada a outros dois termos correntes que também apresentam múltiplos conceitos, quando tratados pelas teorias gramaticais e lingüísticas: língua e discurso. Como questão a linguagem é a mãe de todas as línguas e discursos.
Aqui interessa-nos o questionamento e compreensão da linguagem na sua referência com o concreto exercício da leitura e da interpretação. Toda língua se move no âmbito da linguagem e diz mais respeito ao uso dos signos verbais. Embora o signo verbal seja fundamental não se pode confundir simplesmente a linguagem com a palavra circunscrita às línguas. Há também a linguagem musical, pictórica etc. A linguagem verbal também é muito variada, de que é prova a existência das muitas línguas. Cada língua é a manifestação concreta da linguagem, o rito de sua efetiva realização. Todas as línguas, como ritos, dizem o diferente, mas como linguagem dizem sempre o mesmo, embora não digam as mesmas coisas. Só porque a linguagem diz sempre o mesmo é que um mesmo homem pode falar diferentes línguas, traduções podem ser feitas e haver a tradição viva da memória.
As línguas pressupõem a existência da linguagem como possibilidade de sua operação. Não há uma separação entre linguagem e língua, pois elas formam uma dobra de identidade e diferenças como seu desdobramento. Assim como toda língua se dá numa tensão de significantes e significados, a linguagem se dá numa tensão de fala e silêncio. O desdobrar-se desta dobra de fala e silêncio realiza-se no diálogo. A existência de diferentes linguagens está diretamente ligada à variedade de manifestações da realidade em seu sentido e verdade. A realidade é múltipla, por isso também o é a linguagem, porque não há realidade sem língua, que é a linguagem em seu vigor de manifestação.
Linguagem e língua constituem uma dobra, sendo impossível a sua separação. No entanto, podemos apreendê-las em duas instâncias bem distintas, embora não sejam, em-si, separáveis. Quais são? Quando pensamos a linguagem E a língua como sintaxe, na verdade, com esta palavra pensamos o próprio ordenamento da realidade em mundo. O que é mundo? Não há mundo sem linguagem, porque então ele e ela nos remetem para o sentido e verdade da realidade manifestando-se em realizações. Quando compreendemos a realidade como conjunto de realizações então o apreendemos como mundo realizado, ou seja, o real. Temos já aí as duas instâncias: a realidade se realizando como linguagem, que constitui o mundo e o real como mundo constituído. O mundo constituído não é algo estático nem separado do mundo se constituindo, mas são diferentes. O mundo se constituindo se dá como linguagem poético-manifestativa. O mundo constituído consiste num sistema de relações em que a linguagem em seu poder manifestativo se retrai para ser reduzida ao seu poder de inte-relacionar: os homens entre-si e o homem com os todos os demais entes. Neste caso temos a linguagem instrumental. Sua instrumentalidade consiste numa abstração em que fica reduzida ao produzir as relações funcionais em que se mantém o mundo constituído como sistema. Pela abstração a linguagem passa a ser compreendida como código. A linguagem poético-manifestativa produz mundo. A linguagem instrumental re-produz o mundo. Estas duas dimensões não são separadas, mas efetivam diferentes possibilidades que constitutem originariamente o próprio da linguagem como linguagem na sua concretização enquanto línguas.

A linguagem como palavra

As reflexões que se seguem privilegiam a linguagem verbal e esta ainda na sua forma escrita, porque estão voltadas para o complexo exercício da leitura da escrita. Porém, a leitura como leitura é mais. Não há leitura sem escuta. Mas toda escuta pressupõe uma fala.Toda leitura se exerce na apreensão da realidade enquanto manifestação do que ela é pela palavra. Ela é e não é linguagem, pois esta se presentifica na palavra como fala e escrita, ao mesmo tempo que se retrai como linguagem.
A palavra é uma força misteriosa e ambígua. Ela deixa entre-ver sua ambigüidade ao apreendermos o jogo misterioso em que se entre-tece. Palavra se forma de um prefixo grego para-, que significa junto a, entre; e do radical oriundo do verbo grego ballo, que significa jogar, lançar, pôr, originando inicialmente para-bola. Esta reduziu-se e formou palavra. Em si, indica o que se põe e coloca e joga entre. Todo “entre” é ambíguo e poético-ontológico.
O jogo do entre das palavras dá origem à sintaxe. Dentre as classificações gramaticais, ela exerce uma função nuclear, porque não se pode falar de língua e suas categorias sem a constituição de um sentido e mundo como lugar. A palavra sintaxe, de origem grega: syn, com, e tacsis, ordem, já compreende a língua como estruturação da realidade num ordenamento significativo. Quando tal acontece temos um discurso, que é a tradução latina de logos, no sentido de oração.
Ele compõe-se do prefixo dis- e do radical –curso, que deriva do verbo currere: fluir, o correr e decorrer do tempo. No dis-curso, o tempo se faz linguagem, não apenas no sentido gramático-formal, mas enquanto também conforma e expõe a ordem social em instituições que configuram a memória de um povo histórico. O discurso é o cursar histórico do homem estruturando-se como tempo no finito de seu não-finito, gerando o presentificado como presentificante do presentificável. Daí a ligação entre discurso, tempo e memória. Os conceitos de língua e discurso, nas suas versões gramaticais, têm a sua origem nos conceitos filosóficos gregos, que apreendem e definem a realidade de uma maneira essencialista e metafísica. Por isso não dão conta do vigor manifestativo da Linguagem poética.

Linguagem poético-manifestativa.

Meu lema é: a linguagem e a vida são uma coisa só. Quem não
fizer do idioma o espelho de sua personalidade não vive.
Guimarães Rosa (Entrevista a Günter Lorenz).

Nós não sabemos o que a linguagem é nem carecemos de saber, porque ela não é, dá-Se. E dando-se, é. Tudo que dizemos saber e não-saber o dizemos pela fala já sempre presente da linguagem: ela tanto nos fala e nos atrai quanto se retrai para o seu mistério. A nós cabe a escuta. Em sua essência e concretude, a linguagem é a identidade das línguas, assim como as línguas são a diferença de toda identidade. Não há identidade sem diferença nem diferença sem identidade.
A característica fundamental da linguagem poético-manifestativa é a ambigüidade poética. Esta acontece quando a realidade se constitui em mundo. Na ambigüidade poética é a própria realidade que se manifesta ambigüamente. Ela se dá enquanto se retrai, se oferece ambiguamente como dia e noite, vida e morte, linguagem (Logos) e natureza (Physis).
Toda obra de arte radica na ambigüidade poética e teríamos como exemplo, entre outros, a famosa tragédia de Sófocles Rei Édipo. No personagem Édipo, como imagem-questão, a realidade comparece em sua mais radical ambigüidade. Quanto mais ele se julga o mais inteligente dos homens tanto mais é paulatinamente diminuído, até reconhecer que é o que Nada sabe. E quando não mais vê, porque arrancou os olhos, então é quando mais sabe e “vê”. Como disse Hölderlin: adquiriu o terceiro olho. Inicialmente pensa que o homem é a solução do enigma (e disso se vangloria e por isso recebe o poder), para finalmente ficar sabendo que o homem não é a solução de nada, mergulhando no mais profundo e insondável abismo do mistério da realidade. Normalmente só se cita o enigma do homem em suas três diferentes fases de manifestação, mas há um outro enigma, complementar ao primeiro e normalmente não citado, que a esfinge lhe coloca, e onde a ambigüidade é a resposta. Diz ele: “São duas irmãs. Uma gera a outra. E a segunda, por seu turno, é gerada pela primeira. Quem são elas? “A luz e a escuridão”, diz Édipo. “A luz do dia, clareira aberta no céu, gera a escuridão da noite, que, por sua vez, precede a luz do dia” (Mitologia, 554). No homem, a realidade se dá ambiguamente como luz e escuridão, saber e não-saber, dia e noite, vida e morte, querer e não querer, verdade e não-verdade, ser e não-ser. Esta é a ambigüidade poética, é a realidade se dando e manifestando como linguagem no homem, em seu sentido mais radical.
Numa tentativa de pôr em evidência a questão que é a linguagem, vamos distinguir nela dois aspectos: instrumental e poético-manifestativo. É uma tentativa de levar o leitor a se abrir para o enigma e o vigor de toda obra de arte, para que abrindo-se para a escuta de toda fala da linguagem, no silêncio de sua fala, gere um diálogo de escuta fecundo, de que as diferentes e possíveis interpretações sejam o sinal efetivo. Interpretações não do leitor em sua pseudo-subjetividade, mas da verdade da obra de arte no vigor do seu operar manifestativo como linguagem poética. Só assim o homem se manifesta naquilo que lhe é próprio, porque abrindo-se e escutando o que se retrai em tudo o que o atrai, cada leitor se descobrirá apropriando-se do que lhe é próprio, onde radica a essência de sua liberdade. Porque a arte, enquanto obra, opera libertando. Ao distinguirmos linguagem instrumental e poética, tentamos levar o leitor a perceber os níveis de realização da linguagem e não a criar mais dicotomias.
Auscultemos o que nos diz a poesia:

A rosa
A rosa é sem por quê
Floresce por florescer
Não quer saber de si
Nem se alguém a vê

(Angelus Silesius)

Se a rosa é sem por quê, isso quer dizer que não há causa nem conseqüência, ou seja, não há uma funcionalidade nem uma finalidade. O poema da rosa e a rosa do poema não servem para nada no sentido de ter alguma utilidade. A rosa vale pelo que é simplesmente.
O que somos também não pode ser determinado pelo olhar dos outros nem pelo que está na moda ou pelo que predomina como demanda de consumo no contexto social. O outro, sempre presente no diálogo que todos somos, não é determinante para aquilo que somos e não somos, mas o sinal visível e externo da afirmação de nossa diferença. O outro não pode ser a minha medida, senão nos medimos por algo que nos é estranho. Mas ele deve compartilhar, pela com-paixão, a aventura de sermos no apelo abismal de todo diálogo. No diá-logo, o Logos, como linguagem, poética reúne o ser e não-ser que cada eu e cada tu é. A relação entre eu e tu se dá como compreensão e não como conhecimento racional e representacional (expresso numa pro-posição). O eu encontra no tu uma afirmação e negação: o eu não é o tu e por isso é o eu, mas, por sua vez, o tu se posiciona diante do eu como eu, tornando o eu também um tu, pelo qual o tu também se afirma e nega, afirma-se como eu diante de um outro eu que então se tornou um tu, ou seja, tanto o eu como o tu são e não são. Nesse jogo de referências se dá o diálogo intersubjetivo em que a relação eu e tu se torna o lugar de eclosão de ser e não ser em que consiste toda subjetividade (no sentido do que cada um é). No diálogo, a medida não é o eu nem o tu, e, sim, o Logos de todo dia-logo que reúne o ser e o não-ser de cada subjetividade e de cada identidade. O outro que é o tu nunca é o Outro que ainda não somos, mas somos sempre o Não-ser, num jogo de negação e afirmação, de identidade e diferença, de manifestação e velamento, de doação e retraimento. Só somos sendo, em permanente devir, por isso somos e não somos. Daí que a linguagem poética não é o consenso dialogal pelo qual o horizonte vivencial se reduz à anulação da tensão entre ser e não-ser, pela opção por uma identidade abstrata, consensual, comunicativa, circunstancial, contextual, onde se perde o sentido e fundamento de toda tradução possível e tradição historial, reduzindo o acontecer poético à linearidade discursiva de causas e conseqüências. A linguagem só pode ser entendida como social quando é reduzida à funcionalidade comunicativa e informativa. O ser é esférico e horizontalmente vertical. E todos nos vemos sendo no circular esférico e ao mesmo tempo vertical, porque ascensional e descensional. Não é isso o que faz a árvore na tensão de copa e raízes?
Por isso, ser poeticamente não é pro-curar ou achar um porquê, mas florescer e desabrochar cada um em plenitude. Nisto consiste o fim (telos) sem finalidade, porque telos quer dizer: consumar, levar à plenitude o que nos é próprio, ou seja, o que nos foi dado para ser. O telos é a própria verdade e sentido da realidade eclodindo, desvelando-se. Ao contrário, na linguagem instrumental, o fim não é a verdade, mas a persuasão medida e determinada por uma finalidade a ser atingida objetivamente e pré-estabelecida idealmente. Ela não liberta, anula as possibilidades de ser. A persuasão, não assimilada e adotada livremente, leva ao consumo desnecessário, à aparente satisfação, à mistificação, às opiniões, às crenças ideológicas, à possibilidade do domínio do olhar do outro. O outro se torna a nossa medida e isso nos aliena, nos afasta do que somos. Tal ocorre quando a pessoa não escolhe livremente, mas opta por alguma dessas de-cisões, motivada por algo que lhe é externo. Na sociedade da informação, a formação, em geral, passou a ser a aquisição de conhecimentos enquanto instrumento funcional. Na sociedade de consumo ser é só ter algo: conhecimentos (informações), emprego, profissão, dinheiro, bens, função nas relações do mundo constituído, objeto do código comunicativo. A linguagem instrumental está sempre em função de alguma coisa que lhe é externa, seja na relação do eu com o outro, seja na relação de cada um com o mundo e com os objetos que o constituem.
A sociedade de consumo ignora e esquece a sua origem: a linguagem poética. Tal esquecimento faz do homem pós-moderno um desenraizado, porque sem memória e sem país natal (todos nascemos por sermos e para sermos a nossa origem). Esse é o nosso grande drama: a dispersão, a falta de referências, a presa fácil no jogo dos interesses de mercado, da atração por uma hiper-realidade que nunca se realiza no simulacro das representações, da triste descoberta da mais profunda solidão na balbúrdia e falatório dominante da comunicação. E, no entanto, cada um anseia tão profundamente o viver simples, livre e feliz, porque a linguagem poética mora em nós e nos emite sinais permanentes de sua presença.
A linguagem poética nunca se dissocia nem das coisas nem das pessoas. Por isso diferencia-se da sócio-instrumental. Aquela sempre implica uma verdade que não é a opinião, mas a eclosão do que cada um é, do que é uma comunidade humano-histórica. A linguagem poética dá um sentido. O sentido é o caminho tanto pessoal como da comunidade histórica enquanto sentido do agir. Pelo agir gera-se um caminho que é o sentido e verdade da realidade.
A verdade se torna verdade na medida em que a ação eclode como linguagem poética. Esta manifesta, pois, a verdade e sentido de cada um inserido numa comunidade, à medida que ela produz as obras poéticas. São estas que se tornam a memória de um povo, pois não indicam um passado que passou, mas um passado que dá o sentido e verdade do futuro no presente, através das interpretações, enquanto novos e possíveis caminhos. Ao contrário do informar e do conhecer racional (científico), o compreender é o deixar-se surpreender pelo vigor de todo interpretar, apreendendo-se cada um enquanto fazendo parte de uma comunidade humano-histórica que tem seu vigor na memória da linguagem poética. É então que se dá o diálogo pleno, no qual o Logos do diá-logo se torna o lugar de afirmação e manifestação do que cada um é e não-é. A linguagem poética, por ser a fonte de todo sentido e verdade, torna-se o horiazonte no qual pode ocorrer e dar-se a linguagem sócio-instrumental.
A linguagem poética faz do leitor um intérprete. Este não é um consumidor, mas um agente que se liberta pela ausculta e correspondência ao apelo da linguagem poética das obras de arte. Com ela não se conhece algo. Nada lhe é externo nem interno. Nela, nunca há persuasão nem objetivos externos nem finalidades e mensagens, pois não é uma medição ou instrumento funcional ou sistema de signos. As coisas, as pessoas chegam a ser o que são na medida e na proporção em que se manifestam como linguagem. Por isso a linguagem poética não gera crenças ideológicas, opiniões, ideais. Nunca é passível de um ensino e aprendizado, só de aprendizagem. Leva cada um à experienciação da vida em sua tensão de ser nos limites os não-limites, de surpreender no ordinário o extraordinário e inesperado. Não gera o prazer medido dos consumidores dos produtos disponíveis e oferecidos pelo mercado, sejam estéticos, sejam materiais. Deixa cada um acontecer. O livre acontecer é a essência da linguagem poética. Ser, enquanto Linguagem poética, significa articular os três significados fundamentais que aparecem nas etimologias que formam o verbo ser: 1°.surgir; 2º. viver; 3º. permanecer. Ser significa lançar-se no círculo do vigor de surgir, viver e permanecer para se con-sumar. Con-sumar é levar ao sumo, à plenitude. A linguagem poética enquanto identidade concreta concretiza e funda o mundo das diferenças. Nestas vigora a memória poética, que dá a cada um a sua identidade, na medida em que faz eclodir cada um poeticamente como diferença. A linguagem poética é o vigor da comunidade humano-histórica, enquanto memória do ser, onde cada cultura e cada época encontra o seu sentido e verdade.
Ser e linguagem poética se co-pertencem e se auto re-ferenciam. A memória poética não diz de um recordar o passado, mas do vigorar do passado no presente como possibilidade de futuro. O futuro será o que desde sempre já se é. A memória do ser é o tempo se plenificando, pois nada há fora do tempo. Por sermos temporais, o tempo não pode nos ser externo, como se fosse possível viver fora do tempo. O tempo, a história e a memória só podem eclodir como linguagem poética. Ela é o tempo, a história e a memória eclodindo como sentido e verdade do ser.
Ser não é verbo de ligação, em que se liga um sujeito a um predicado. Ser também não é algum ente especial localizado fora do tempo e do espaço, a-temporal, abstrato, ideal. Viver é ser enquanto puro livre eclodir. A linguagem poética manifesta o mundo enquanto mundo. Mundo é o eclodir do ser (surgir, viver, permanecer) enquanto linguagem poética. Mundo como linguagem poética é o instituir a realidade como verdade e sentido. Linguagem poética e mundo são o ser (surgir, viver, permanecer) enquanto sentido e verdade da realidade. A realidade que se realiza como mundo é o livre jogo de manifestação da linguagem poética como sentido e verdade.


A linguagem instrumental

A interpretação do Logos como linguagem instrumental se torna mais clara no decorrer e eclosão da Modernidade, embora tal interpretação do lógos tenha começado já entre os gregos através dos sofistas, inventores da gramática. Com a predominância do conhecimento sobre o ser (Descartes, Kant), todos os ob-jetos do conhecimento para a Ciência passam a ser construções racionais (Logos=razão), através das pro-posições críticas. A linguagem instrumental encontra na Ciência a sua plenitude, pois a palavra instrumental provém do verbo latino struere que significa organizar e instituir os elementos num todo, numa ordem, numa sintaxe. Este todo surge como ob-jeto, na medida em que é lançado (jeto) diante do (ob) sujeito através da pro-posição crítico-racional. O ob-jeto é a o-posição ao sujeito gerada pela pro-posição como ex-posição do conhecimento do su-jeito (sub-jectum). O objeto é uma construção do sujeito crítico-racional através da linguagem, ou seja, o conjunto dos objetos (real) são o resultado instrumental do exercício da linguagem enquanto expressão do conhecimento crítico-racional (Logos). Falta à Razão (Logos) dar conta da dis-posição, que é a abertura constitutiva do homem para o ser. Hoje, este caráter instrumental e científico-racional de interpretação do Logos acabou por se impor a todas as percepções teóricas do real, contaminando toda a vida cultural nas suas mais diversas e diferenciadas versões da realidade. A linguagem instrumental é de tal maneira onipresente que, em geral, nada se faz sem que se pergunte de antemão: Para que serve isto, para que serve aquilo? Qual a intenção? Qual a mensagem? Nem sempre nos damos conta de que o querer achar utilidade em tudo provém da interpretação instrumental do Logos e da coisa, na medida em que reduzem as possibilidades da linguagem a essa funcionalidade.
O mais interessante de tudo isso é que a própria instrumentalidade acabou por penetrar na essência do conhecimento como um duplicar teórico, pois fruto de de-cisão que cindiu Ser e Razão, natureza e cultura. Disso resultou, em nossos dias, que os meios de comunicação são o grande poder de controle da sociedade. A produção e circulação de bens de informação chegam a ser mais importantes que as produções industriais. O conhecimento torna-se informação e esta não gera uma sabedoria, mas um produto de consumo banal e descartável (experimente ler um jornal de uma semana atrás para experimentar como é descartável). A informação torna-se uma mercadoria e como tal é determinado seu preço. O valor/preço é o de mercado. Mas este valor, determinado pelo mercado, é mascarado pelo valor de conhecimento ou valor cultural (achar-se superior, importante é ter muitos conhecimentos ou coleções de livros na sala, é soma quantitativa e desconexa das partes, faltando-lhe a compreensão).
A linguagem instrumental, desdobrada nos vários meios de informação, pois instrumento é meio, faz da socialização dos conhecimentos (necessária e fundamental) uma aparência onde predomina o comercial e quantitativo sobre o qualitativo. Veicula-se o que vende e não o que é necessário para a formação e desenvolvimento das pessoas. Em si, a veiculação não é negativa, o problema são os conteúdos. As informações e os conhecimentos tornam-se meios, instrumentos. Quando não são isso, não são reproduzidos porque não vendem.
A linguagem instrumental tornou-se um código, um sistema de relacionamento funcional das partes no todo, reduzindo cada pessoa a uma função. Temos então o círculo da comunicação e informação, onde a linguagem fica reduzida a um meio e canal de comunicação e informação. É a linguagem revestida das opiniões do senso comum e dos conteúdos ideológicos, onde ocorre um profundo esvaziamento das palavras. Mais paradoxal é querer substituir uma ideologia por outra, em nome da redução da realidade a uma verdade: a do sistema que se quer impor. A realidade que se torna sistma deixa de ser realidade em vigor de acontecer poeticamente. Passa a haver uma dicotomia entre linguagem e realidade, e esta só nos chega como conjunto de representações já estabelecidas e valendo por si. Não se vive no diálogo a realidade, mas a sua representação enquanto código lingüístico.
Entre o eu e o tu não se faz presente a linguagem com seu poder manifestador, mas só enquanto código comunicativo do mundo vivido e já representado. O código pré-existe ao eu e ao tu determinando-os, anulando toda força do diálogo. Há só diálogo aparente, porque não se faz presente a linguagem poética enquanto força manifestadora do eu e do tu nas suas identidades e diferenças, no drama vital de ser e não-ser. Na sociedade comunicativa não mais se pergunta o que cada um é, o que cada coisa é, mas “para que serve?”
A linguagem instrumental é conceitualmente denonimada código. O traço fundamental deste é se constituir numa identidade abstrata. Ele é a base de todas as relações num sistema, que são possíveis porque a linguagem fica reduzida à sua funcionaldiade e instrumentalidade abstrata. A instrumentalidade tem diferentes graus de manifestação na sua complexa relação com a realidade enquanto real constituído como mundo já dado. Eis alguns.

O equívoco. Na vida cotidiana de cada leitor, o uso corrente da linguagem em sua aparente transparência é o mais determinante. No entanto, o ato de comunicação ou informação mais simples dá margem a contínuos mal-entendidos ou equívocos. Esta palavra se forma do latim aequivocus (aequus, semelhante, voco, chamar): que tem significações semelhantes e, por isso, se presta a mais de uma interpretação. A nossa relação com a linguagem é complexa, porque a realidade que ela nomeia e manifesta é também complexa. Isso torna difícil o mais simples diá-logo e qualquer leitura pode ser problemática e equívoca. Nem é necessário apelar para o significado metafórico, o equívoco aparece freqüentemente na literalidade. Esta, por seu aspecto abstrato e universal, tende a ser tomada pela linguagem. Contudo, isto é ilusório. Mais importante que a literalidade é a ideologia, a qual, em parte, determina para que direção um sujeito/receptor vai encaminhar a sua interpretação/significação, havendo sempre vários caminhos possíveis. Só podemos estabelecer esta relação porque a linguagem não é o espaço da literalidade e da certeza, mas sim do equívoco. Neste se incluem os atos-falhos, de origem muitas vezes inconscientes. Entre linguagem literal e mundo também não se dá uma relação direta e precisa: há o campo do desejo, da imaginação, da ilusão, da emoção, do sentir e da razão. Mas o que nisso há de fundo sócio-ideológico e de apelo ontológico? Nessa multiplicidade de relações, em que o outro é sempre uma projeção do eu de cada um, a partir da sua conjuntura e da janela pela qual vê o mundo, se desenha o que chamamos imprecisamente de subjetividade. Onde começa e termina o eu? Qual a sua consistência? Qual a sua identidade? O que é subjetivamente o corpo? Quando o horizonte da subjetividade e do corpo é a linguagem? Como incorporamos a sua equivocidade? A aparente subjetividade encontra nas formações discursivas o lugar do que poderíamos chamar de ideologia, onde um imaginário social projeta o horizonte do que aparentemente somos, ou pior, deveríamos ou deveremos ser. É o jogo da linguagem e seus equívocos. Quando fazemos da leitura uma interpretação do que somos, é na questão da linguagem que se decide o sentido da leitura e nosso sentido e verdade.

A ambigüidade.

Ah, a dualidade das palavras! Guimarães Rosa.
(Entrevista a Günter Lorenz)

O equívoco tem como sinônimo o ambíguo. Mas a ambigüidade vai incorporar dimensões que vão mais além do equívoco. Ambigüidade compõe-se do prefixo latino ambi, que significa: de ambos os lados, ao redor de, no entre, e do verbo agere: agir, impelir. Formou-se então o verbo ambigere, que significa: tratar alguma coisa de ambos os lados, duvidar, hesitar, projetar criticamente num entre. A formação da palavra pressupõe uma oposição consistente e uma mediação, ou seja, um movimento de identidade (mediação) e diferença (oposição), na apropriação da realidade pela linguagem. A mediação é o âmabito do “entre”, de que se nutre toda ambigüidade. No circular do ir e vir surge a dúvida, a hesitação: é a ambigüidade como possibilidade de todo criticar. A ambigüidade é a dinâmica de manifestação e ocultamento de tudo que é e não é enquanto tempo e sentido na compreensão. A ambigüidade é a unidade sempre tensional de ser e não-ser, de língua e linguagem, de rito e mito, de caos e cosmos. A esse “E “ sempre presente corresponde o “entre” em seu vigor. As possibilidades do “entre” eclodem e movem o poder criticar, isto é, o discernir e diferenciar em que a realiade ambiguamente se dá.
O recurso à formação e etimologia das palavras quer realçar justamente o poder ambíguo das palavras em sua relação com a realidade. O sentido mais corrente de cada palavra, além de se prestar a equívocos, pode ocultar ambigüidades de que toda palavra é portadora. A mutabilidade da linguagem em sua aparente definição e estabilidade se torna um traço essencial de toda obra de arte. Se toda linguagem poética é ambígua nem toda ambigüidade é necessariamente poética. Isto nos leva a discernir e distinguir duas modalidades de ambigüidade.

1 – A ambigüidade semântica. Trata-se do simples fato de que as palavras podem apresentar mais de um significado. São polissêmicas. O contexto resolve algumas ambigüidades semânticas, ao menos numa primeira leitura. Muitas vezes, o texto poético articula mais de um significado, originando diferentes interpretações. As palavras, dentro de um texto, tendem também a se organizar em campos semânticos, possibilitando a escolha dentre os diferentes significados. Este fato delimita às vezes as possibilidades de interpretação, não se tornando, contudo, o traço decisivo para uma interpretação poética. Esta ambigüidade pode-se fazer presente nos diferentes textos, mesmo naqueles que se caracterizam pela claridade e objetividade dos conceitos e conhecimentos. Por isso também a linguagem instrumental se inscreve na amigüidade semântica.

2 – A ambigüidade retórica.

... descobri que a poesia profissional, tal como se deve mane-
já-la na elaboração de poemas, pode ser a morte da poesia
verdadeira. Guimarães Rosa (Entrevista a Günter Lorenz).

Aqui entram todas as figuras e demais recursos retóricos que vão do paradoxo à ironia. Como podemos ver, esta ambigüidade inclui a anterior. Em geral, o tratamento retórico da linguagem é confundido com o tratamento poético. O assunto é complexo, mas há uma distinção fundamental. A retórica tem por fim último a persuasão, ou seja, implicitamente esta ambigüidade tem um fim, inscrevendo-a na linguagem instrumental. Normalmente, sua finalidade é o envolvimento tanto emocional como racional do leitor/ouvinte, provocando o belo estético e o agradável, e assim possibilitando a quebra da sua resistência, para que a força da linguagem opere a realização dos fins que precedem toda elaboração retórica. Por isso, em geral, espera-se de toda obra de arte uma intenção, uma mensagem. Esta seria boa e bela, para distingui-la dos envolvimentos meramente retóricos que visam a um fim de antemão determinado. Por essa estratégia foi aberta a possibilidade de interpretação da obra de arte como algo que educa (forma para o bem, e transmite os valores e conhecimentos verdadeiros, bons) ou distrai (belo, divertimento). A obra de arte não tem mensagem nenhuma, ela desvela a realidade, mundifica. A linguagem poética é a própria realidade dando-se como linguagem. Na realidade, a ambigüidade retórica acaba por se sobrepor ao e reduzir o poético a um jogo retórico, onde as palavras perdem sua consistência e se tornam objeto de um jogo vazio de formas (determinadas pela funcionalidade e finalidade prévias). É a palavra esvaziada de todo o seu vigor e densidade poética.
Isto gerou ao longo da trajetória da cultura ocidental o entendimento formal e discursivo (embora ambíguo) da obra de arte, daí poder tratá-la como objeto, ainda que discursivo-lingüístico, e ser objeto de uma análise, determinando, ao mesmo tempo, o conhecimento das obras poéticas pelas formas, atreladas que estão sempre à idéia de utensílio ou instrumento. A classificação das obras em estilos de época e suas características, e o estudo das formas parte deste pressuposto. Achar e classificar as características retórico-formais acaba se tornando o caminho normal para a definição e distinção das obras de arte (e nisto, equivocadamente, consiste o ensino da arte). As histórias das artes partem destes pressupostos e, em geral, se resumem ao levantamento, classificação e diferenciação de tais recursos retórico-formais, numa seqüência linear e meramente historiográfica e até causal. No jogo temporal das formas, sejam formadas, sejam formantes, a linguagem poética fica reduzida a uma instrumentalidade e funcionalidade formais, ainda que se afirme que tais obras são objetos estéticos. A obra de arte passa a ser determinada pela funcionalidade estética.
Como tal a arte não tem história, só as obras em suas formas e datas de aparecimento, consideradas então equivocadamente como objetos da história. “Conhecer e interpretar” as obras de arte consiste nesse exercício retórico-formal. Isto é o tradicionalmente ensinado. Passa a dominar a conjuntura histórico-autoral. O lugar da conjuntura do leitor passa a ser simplesmente passiva e de memorização dos dados históricos, pseudamente objetivos. O leitor mesmo, com seu horizonte histórico e as questões que o absorvem, é simplesmente deixado de lado e desconsiderado. Podemos ver como, em tal circunstância, a obra de arte se torna mero objeto de uma análise e classificação retórico-formal, algo sem vida e sem vigor. Onde o operar de toda obra? Não opera. Onde o acontecer de toda obra? Não há.
Num outro sentido, o perigo está em deixar a obra de arte às intempéries e aleatoriedades do impressionismo dos leitores e suas subjetividades, onde toda dinâmica e vigor histórico inerente a toda obra se perde. De fato, cada um vê o mundo da sua janela. Ocorre que o mundo não é o que cada um vê, mas o que acontece. E só porque a realidade acontece é que pode ser vista. A linguagem é a realidade acontecendo como fala e visão. A linguagem fala, não o leitor. Este só interpreta como escuta do que já se ofertou como presença e retração.

A linguagem instrumental e o social
A conceituação de linguagem como um produto social está diretamente ligada ao círculo da reprodução e sua forte presença. Na velha e sempre presente dicotomia indivíduo/sociedade, esta sempre parece prevalecer. Um indivíduo sem uma sociedade e cultura que o identifique parece uma abstração, algo impossível de existir. O estudo das sociedades e culturas existentes ou já desaparecidas parece reforçar essa tese. Só se fala das pessoas na referência às suas culturas. As culturas e as sociedades que as encarnam se constituem em sistemas de identidade e valores ideológicos que se tornam o horizonte dentro do qual as pessoas se realizam. Como se a cultura, qualquer cultura, pudesse prescindir do humano, fundamento de toda cultura. Mas essa visão resulta da teoria positivista do século XIX, pela qual o homem seria um produto do meio, da raça e do momento. Daí ao determinismo histórico-ideológico foi um passo.
Nas artes resultou no Naturalismo e Realismo. A ciência se tornou o veículo do conhecimento e verdade de uma tal realidade, manifestados em princípios universais. Conhecer o indivíduo era conhecer o sistema do qual fazia parte. Mas um tal sistema só existe abstratamente. O modelo científico-positivista aplicado às línguas resultou na concepção da linguagem como códigos. O estudo da língua no seu funcionamento sincrônico enquanto sistema de signos de representações levou a um conceito estrutural e funcional-instrumental da linguagem. A concepção da realidade como o conjunto dos fatos dados, positivos, não levou em conta a dinâmica da realidade e seu processar-se histórico, enquanto memória e tradição histórica, enquanto permanente acontecer.
O século XX inaugura diversas tendências de superação do positivismo, pela problematização de funcionamento do sistema social, pois a relação concreta entre os socii e os sistemas é complexa e de maneira alguma redutível a uma relação totalmente passiva nas condutas sociais. Nestas, sempre se fazem presentes os valores. Mas como compatibilizar os valores já instituídos com as aspirações novas dos socii? O mundo vivido não dá conta do mundo das vivências comportamentais, tornando problemática toda teoria baseada em princípios universais abstratos. Contudo, a vivência comportamental de valores pressupõe a sua aceitação por parte do grupo, dos socii. Uma tal aceitação, tácita ou explícita, se move num consenso que só pode ser gerado onde existem relações intersubjetivas, pensa-se. O método científico aplicado aos fenômenos da natureza não pode ser o mesmo aplicado aos fenômenos sociais. Aqui interferem sempre os valores de vivências, experienciações e aprendizagens, e as relações intersubjetivas.
O conhecimento científico, baseado na consciência transcendental, não dá conta da intersubjetividade. Em conseqüência, é necessário ampliar o conhecimento do sistema social por meio de uma teoria das condições intersubjetivas de toda comunicação. A sociologia se vê na dependência de uma teoria da intersubjetividade, como possibilidade de toda investigação sociológica concreta. A razão tomou o centro de toda atividade de conhecimento na Modernidade, combatendo o mito, mas acabou por se tornar ela mesma um “mito”. A razão moderna, baseada no paradigma da filosofia da consciência, entra em crise, e com ela a subjetividade. Em lugar da razão e verdade como conteúdos e valores absolutos e universais, tornam-se procedimentos, resultante do jogo consensual na interação do indivíduo com o mundo dos objetos, com a vida interior e com os outros. É necessário levar em conta a intersubjetividade como base da razão e da verdade. Com isso o conhecimento racional dá lugar à compreensão. Mas a introdução desta só é possível fazendo-se uma crítica da consciência.
A razão e a subjetividade não têm sua base no sujeito epistêmico como o postulou Kant, mas sim na organização intersubjetiva dos falantes, na relação dialógica dos membros da sociedade, na ação concreta da procura de um sentido compreensivo do que cada um é e não é, do que a sociedade é e não é. Nesta perspectiva, só se pode falar em razão dialógica, pois resulta de um mundo cultural vivido pelos atores lingüisticamente competentes, expressando o que pode ser elaborado e querido por todos. A verdade e a razão deixam de ser valores absolutos e passam a depender do consenso vivido pelos falantes num determinado contexto, pensa-se. A vida social é o resultado de um consenso, onde a ação comunicativa pela linguagem é fundamental. A vida social é um jogo onde as regras são fixadas consensualmente pelas intersubjetividades enquanto possibilitadas pelo diálogo, pelo discurso. Na inter-subjetividade a grande questão está justamente na abertura que o “inter” já traz para as subjetividades. E não são estas que determinam o “inter”. O “inter” ou “entre” já constitui uma pré-compreensão que possibilita a inter-compreensão das subjetividades. Por isso, a linguagem não é um produto da sociedade, pelo contrário, a sociedade é que é um produto da linguagem, entendida como possibilidade compreensiva de dodo diálogo. É que em todo diálogo quem fala e reúne os falantes é o Logos (linguagem). A linguagem tem uma função mediadora na constituição do significado do mundo e dos eventos histórico-sociais, pois só há sentido dentro de uma relação intersubjetiva, pensa-se. Este entendimento da linguagem como razão dialógica, comunicativa não pode ser um consenso. Por um motivo muito simples: o diálogo leva ao consenso, mas para haver diálogo precisa haver a linguagem. Não é ele que funda a linguagem. Claro que há aí uma dobra dialogal.
Há outros modos de encaminhar o entendimento e compreensão da linguagem. Hoje, a filosofia da linguagem ocupa cada vez mais o centro da reflexão. Ela sucede, na modernidade, à questão do ser, do sujeito, da história, do inconsciente, da existência. Contudo, os encaminhamentos ainda se movem, em geral, dentro de um questionamento epistemológico, onde o saber precede o ser.
Nesse horizonte, a linguagem poética não tem vez. É necessário retomar uma reflexão ontológica onde conhecer o que é implica em ser o que se conhece. Para tanto é necessário repensar a dialética da intersubjetividade e suas possibilidades, onde o diálogo pode-se dá como pro-cura e afirmação da diferença e não como seu lugar de abandono e anulação pelo consensual. E mais essencial ainda é auscultar o logos que funda todo diá-logo. A escuta é muito mais importante do que geralmente se acredita. Nestas dimensões, continuar falando de linguagem social não passa de bem montadas racionalidades vazias e abstratas, a que nenhuma realidade social, em nenhum tempo e comunidade, corresponde.


A realidade, a linguagem e a língua

O ser humano é uma doação da linguagem. Sempre se movendo na linguagem em sua ânsia essencial de ser o não-ser, busca incessantemente o horizonte de seu mistério e presença como escuta de sua fala. A escuta exige de nós uma entrega e caminhada. Esta nos leva à fala da sua escuta para melhor escutá-la. É quando a palavra se torna o vigor de seu desvelamento e velamento como língua. Porque a palavra é o vigor desse “entre” que identifica e diferencia fala e silêncio, desvelamento e velamento. E assim surgem algumas das mais importantes reflexões dos pensadores. Transcrevo a seguir uma dessas reflexões, proposta em 12 de outubro de 1971, por Emmanuel Carneiro Leão. Nela, a linguagem aparece como questão frente à língua.

A linguagem é o mais concentrado modo de ser da realidade. Na linguagem o real se mostra em si mesmo com plenitude de liberdade. O real se realiza numa variedade infinda de modos, níveis e graus de mostrar-se. Há até a possibilidade de o real mostrar-se como algo que em si mesmo não é. Neste mostrar-se, o real aparece como se fosse. É o parecer e a aparência. A linguagem possui uma tal vitalidade que articula, ao mesmo tempo, tanto um sim como um não: o mostrar-se em si mesmo como sim e o mostrar-se em si mesmo como não. O Ente e a Essência são modalidades positivas, o parecer e a aparência são modalidades negativas de linguagem.
A linguagem, tanto no modo de manifestação positiva quanto no modo de manifestação negativa, nada tem a ver com os signos, indícios, indicação e denotação. O indício denota o que não se mostra em si mesmo, refere-se a algo que não é linguagem. Signo não diz o mostrar-se em si mesmo, mas um anunciar, um indicar uma coisa que não se mostra, nem como ela é, nem como ela não é, mediante outra que se mostra. Signo é, pois, o não mostrar-se. Mas este não do signo não se identifica com o não da linguagem, isto é, com o parecer e a aparência. Pois o que não se mostra também nunca poderá aparecer e, por conseguinte, parecer. Signos são metáforas, alegorias, sintomas, índices, indicações, embora cada um o seja à sua maneira.
Todo signo só pode indicar em razão do mostrar-se de alguma coisa. Este mostrar-se não é, em si mesmo, um signo. Todos os signos só são signos na dependência da linguagem. Quanto se diz, portanto, que a linguagem é um sistema de signos, não se define, mas se pressupõe a linguagem, e com a desvantagem de encobri-la, reduzindo-a à língua.

Esta ambigüidade poética de linguagem, língua e signo fica um pouco mais compreensível, mas não é redutível ao raciocínio lógico, pois exige a abertura para o vigor do pensamento e para o agir da póiesis, se nos lembrarmos do fragmento de Heráclito:

Physis kryptestai philei.
A natureza ama velar-se.
A excessividade poética apropria-se no velar-se

A natureza se diz em grego physis e esta vem do verbo phyo, que significa tudo que se nasce, se torna, aparece, se faz presente numa excessividade múltipla, diversa, contínua, enfim, poética. Porém, ela é ambígua porque tanto mais se dá nessa excessividade poética quanto mais ama velar-se no vazio e no nada, retrair-se no silêncio. Não podemos aí deixar de prestar atenção ao ama. Ele nos joga no jogo do amor, um entre em que sempre somos e não-somos, nos aproximamos e distanciamos, somos nós sendo o outro que nós mesmos somos e não somos. Nesse jogo do entre é que nos apropriarmos do que nos é próprio. Isso é amor. A ambigüidade da linguagem é, assim, a própria pro-cura em que o que pro-curamos é o amor, o cuidado de sermos em plenitude, mas esta só nos vem como morte, que não é o fim, mas a plenitude do princípio no silêncio do mistério.

Para melhor apreender a questão do aparecer e da aparência, da ambigüidade do real, confira os parágrafos: 106-112 e 129-133 de A origem da obra de arte, de Martin Heidegger.

21 setembro 2008

Por que Poética?


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Há um traço fundamental que diferencia a Poética em relação aoa conhecimento crítico de todas as artes. É certo que para o ser humano é sempre necessário conhecer. Porém, para a Poética não basta conhecer. É necessário ser o que se conhece. Ser é conhecer conhecendo-se. Para a Poética não basta um aprendizado. Originariamente é necessária também uma aprendizagem. Mas esta – como o ser – não vem de fora nem de dentro. Aprendizado é aprender o que não se é, mas se pode conhecerr. Aprendizagem é tomar posse do que já se é. Nisto consiste conhecer o que se é e ser o que se conhece, isto é, ser poético. Isto é a Poética.

Em meio à trajetória da travessia, essencial para cada um, toda aprendizagem vive de um paradoxo: aprender a desaprender o que já se sabe para no que já se sabe chegar a compreender e a aprender o não-saber de todo conhecer. Toda aprendizagem vive da vigência de uma renúncia, em que esta não tira, dá, presenteia. Na travessia de conhecer o que não se sabe e não-saber o que se conhece, dá-se o acontecer poético da Poética: o humano do ser humano. Pode haver presente maior?

Em sua essência originária, Poética é a aprendizagem do desaprender.

A acumulação de muitos conhecimentos não dá nem traz necessariamente o que em todo saber se deve conhecer: o ético de todo conhecer. Quando o ético é o valor de todo conhecer, o muito dá lugar ao simples: a simplicidade do que se é em tudo o que se conhece e não conhece. O simples é o sem dobra: a unidade, o originário em plenitude, repouso da fala plena do silêncio, ser o não-ser. Quando se dá e acontece a aprendizagem da simplicidade do que se é, então o muito saber da erudição se reduz à simplicidade do não-saber do muito conhecer. Na simplicidade do não-saber vigora o poético, o não-saber do muito e de todo conhecer. Este é o difícil mas não impossível percurso como travessia poética: apropriar-se do que é próprio, ser, para que sendo, chegue a ser o não-ser. São os oblíquos caminhos da Poética. É o seu por quê.

14 setembro 2008

Atitudes possíveis diante de uma prova

Manuel Antônio de Castro


Em nossa vida, muitas são as provas que temos de fazer. Como nos sairmos bem? Claro, primeiro estudar muito e com concentração. Mas e na hora da prova? Como desfazer a tensão e a ansiedade e começar a articular bem as respostas?

Eis algumas sugestões bastante simples e práticas:

Que procedimentos seguir?

Diante da questão dada ou a escolher deve, antes de responder, fazer o seguinte:
1º. Ler com muita atenção a questão como um todo;
2º. Em seguida sublinhar os VERBOS e SUBSTANTIVOS. Por quê? É que neles estão concentrados os significados principais, em torno dos quais gira o que se pergunta. Muitas vezes, por não atentarmos com exatidão para o que está sendo perguntado, respondemos de uma maneira vaga ou até o que não é o objeto principal da questão. Centrando a atenção nos verbos e substantivos, vamos saber com maior clareza o que se pede para responder. Quais são as QUESTÕES ou PROBLEMAS colocados pela pergunta;
3º. Antes ainda de responder, prestar atenção depois nos ADVÉRBIOS, pois estes é que indicam aspectos essenciais das ações dos verbos. Uma coisa é dizer FAZER, bem outra é NÃO FAZER, CONCORDAR e NÃO CONCORDAR;
4º. Pensar bem as relações entre essas palavras e os diferentes aspectos que elas implicam;
5º. Feito isso, anotar, se possível, no rascunho, em tópicos breves, as principais idéias que DEVEM SER DESENVOLVIDAS na resposta;
6º. Nunca fazer rascunho das respostas, pois CERTAMENTE não haverá tempo para fazer as duas coisas: redigir e depois passar a limpo. É melhor escrever direto e, na releitura, fazer as correções;
7º. Nunca entregue as respostas sem as RELER. Às vezes uma palavra que faltou leva a se afirmar o contrário do que se queria dizer;
8º. Deve ser bem CLARO no que expõe. Diante de uma redação confusa, o examinador passará por cima e perderá o fio do raciocínio da resposta, uma vez que tem que corrigir diversas provas. Julgará o candidato confuso. Procure não escrever períodos longos, onde o pensamento fica embaralhado e, portanto, possivelmente, difuso e sem consistência. Escolha com cuidado os verbos, nele se concentram a força e alcance do raciocínio e do pensamento.

Âmbito da resposta.

Dependendo do que se pergunta, dos autores implicados e da bibliografia em torno das questões ou problemas, três aspectos devem ser desenvolvidos:
1º. Aspectos positivos ou idéias defendidas pelo autor etc.;
2º. Aspectos negativos, isto é, críticas possíveis a essas idéias, com o auxílio de outros autores ou idéias contrárias;
3º. Procurar encaminhar as opiniões próprias em relação tanto aos aspectos positivos quanto aos aspectos negativos. É essencial sempre apresentar um lado CRIATIVO, onde mostrará a sua potencialidade crítica e de pensamento próprio. Expor como papagaio e de modo decorado o que outros dizem, embora pareça muito didático, é, no fundo, pobre. Deve mostrar sempre uma originalidade possível, mas com fundamento e com simplicidade, usando argumentos e nunca partindo para a adjetivação simplificadora;
4º. Mostrar que é capaz de pensar, procurando ver as QUESTÕES dentro de um todo coerente e nunca isolando uma ou outra palavra e contradizer o autor através dessas artimanhas. Isso demonstra visão parcial e curta. A visão do todo e o levar em conta o pensamento como um todo é MUITO IMPORTANTE, pois indica amadurecimento, respeito pelas idéias dos outros e a ausência de simplificações que só depõem contra quem não consegue ver as questões dentro de todo mais amplo.;
5º. É muito difícil haver uma banca que não leve em conta toda essa articulação. E, por isso, uma resposta fundada nesses caminhos tem, geralmente, o efeito de convencer quem examina, ainda que, às vezes, não concorde exatamente com aquilo que na resposta se defende.

10 setembro 2008

Ciência e arte

Prof. Manuel Antônio de Castro

A ciência quer chegar à realidade através do real, tendo por finalidade um relacionamento funcional e finalista pelo qual deseja obter e alcançar o seu controle. Para isso formula e usa os conceitos, que operam muito bem no saber formal e funcional. Já a arte se move nas questões. Para isso ela parte da realidade e não do real, procurando deixar as questões falarem para que a própria realidade nos abra dimensões de questionamento e experienciação. Sempre dentro de um "entre" abismal, onde acontece nossa liminaridade de limite e não-limite, ou seja, do que é a realidade do real em suas realizações.
Toda obra de arte para cada ser humano é um acontecer experiencial das questões que constituem o humano do homem. Só experienciando poeticamente as questões como questões é que podemos nas realizações apreender e compreender a integralidade e unidade da realidade do real.

03 setembro 2008

No princípio era a Poética


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Por que a Poética é sempre permanente e sempre atual? A resposta é muito simples por dois motivos que são uma dobra: Porque no princípio era a Poética, sendo, as obras poéticas, por isso mesmo, sempre permanentes e atuais. Por obras poéticas entendemos todas as diferentes manifestações poético-artísticas. E por que as obras poéticas têm esse poder? Porque elas vigoram na e a partir da essência do agir, ou em grego, de onde se forma poética: poiein. A essência do agir é consumar o que é, daí ser e tempo, tempo e ser. Mas que tempo? O da memória enquanto linguagem ou logos. Por sua vez, atual é o que se manifesta a partir da essência do agir, pois atual provém do verbo latino: agere, isto é, agir. Permanência é o per-durar no dar-se e retrair-se de tempo e ser. Poética é o morar e de-morar na mansão do ser. Mansão provém de manere, ou seja, é a morada. Per-manere, per-manecer, é morar a liminaridade do limite e do não-limite. É isto o que nos diz o prefixo per, onde está jogada a mansão, a nossa morada. Nela moramos como ser poéticos. A morada é morada do ser: o que permanece nas mudanças, porque poética.
A redução, em geral, da Poética à produção de poesia, em oposição, por exemplo, à prosa, e a outras realizações poéticas como a música, a dança etc., parte de um equívoco de tradução nas vicissitudes da passagem das palavras gregas para o latim. As reflexões de Aristóteles a respeito das produções poéticas, como um todo, recebeu em grego o seguinte título: Peri poietikes technés. A tradução literal seria: Em torno da técnica do poético. Há o poético e há o conhecimento que possibilita a realização das produções poéticas: a techné. O poético é mais fundamental, porque originário, do que a techné, isto é, o conhecimento específico para realizar cada produção poética. Ele é, portanto, específico e depende de um aprendizado e treinamento desse conhecimento segundo cada realização poética. Mas esses conhecimentos não são o poético. Os conhecimentos técnicos variam, mas a poética, o originário, é o que permanece e possibilita cada realização poética e também seus conhecimentos de realização. Na tradução para o latim, houve uma inversão, presente até hoje em nosso linguajar. Techné foi traduzido por ars, artis, de onde se originou o substantivo português: arte. Como vemos o que chamamos de arte e artes nada mais são do que os conhecimentos técnicos, onde o decisivo, o originário, não são eles, mas a Poética, o Poético. A Poética não trata, pois, de conhecimentos técnicos, de artes, mas do Poético, do originário de todas as artes. Os conhecimentos técnicos podem mudar com o tempo e circunstâncias, influindo nos desempenhos formais. Porém, o que é decisivo numa obra poética é o originário e não esses conhecimentos variáveis e passíveis de aprendizado. O Poético não se aprende, é uma doação do originário, isto é, do princípio. E só por vigorarem no princípio, no originário, e não por serem técnicas, é que as obras poéticas são sempre permanentes e atuais.
Estamos comemorando, neste ano, o centenário da morte de Machado de Assis e o cinqüentenário da publicação de Grande sertão: veredas, ou seja, de Guimarães Rosa. É claro que em 1908 morreram centenas de milhares de pessoas. Por que não celebrar o centenário de sua morte? Primeiro, porque nem todas escreveram; segundo, porque nem todas que escreveram deixaram uma obra tão significativa e essencial que seja poética. Disto já resulta uma conseqüência: não celebramos qualquer escrito, qualquer obra. O que é celebrar senão comemorar o que é digno de permanecer na memória. Mais importante ainda é que a celebração só aparentemente é do nome. Na realidade, não celebramos o nome Machado de Assis, e, sim, sua obra. O substituir o nome pela obra, achando que a obra é uma criação da imaginação criadora do autor, é um grande equívoco da modernidade. Qual a diferença entre celebrar o nome e celebrar a obra? Ela é fundamental. As obras poéticas é que são sempre permanentes e atuais. E me sirvo da autoridade inerente a toda obra poética, mostrando a diferença entre o nome e a obra. Quem o diz é Riobaldo, em Grande sertão: veredas. Refletindo sobre o duplo nome de Diadorim, dito em segredo só a Riobaldo, pois para os demais jagunços ele se chama Reinaldo. Revelado o outro nome, diz Riobaldo: “Era um nome, ver o que. Que é que é um nome? Nome não dá: recebe” (1968: 121). Mas quem dá o que o nome recebe? Só pode ser a realidade, porque realidade é o que acontece. Diante do enigma, do mistério do acontecer da realidade, noutra passagem vai afirmar: “...: eu não sentia nada. Só uma transformação, pesável. Muita coisa importante falta nome” (1968: 86). Para compreendermos o jogo poético-originário da obra de arte, temos ainda que citar uma terceira passagem, que abre horizontes de leitura e compreensão dialogal para as duas passagens já citadas: “E o que era para ser. O que é pra ser – são as palavras” (1968: 39).
Aproveito logo para fazer uma observação fundamental. Quando, como leitor, dialogo com a obra poética, já surpreendo na própria obra poética a sua poética. Não preciso vir com nenhuma teoria literária de fora, nenhuma corrente crítica externa à própria obra. Será isso possível? Sim. Toda grande obra poética já traz em si-mesma a sua poética enquanto horizonte de leitura dialogal. Em vista disso, podemos já fazer uma distinção: A poética é sempre permanente e atual porque a própria obra poética já se move numa poética implícita e numa poética explícita. As passagens que citei são implícitas ao próprio fazer poético da obra citada. Estão dentro da própria obra. Quando as destaco e estabeleço um diálogo com essas passagens, estarei certamente no diálogo manifestando a permanência e atualidade da poética. Uma tal leitura poética é sempre dialogal. Outros leitores farão outros diálogos. A obra enquanto o operar do poético é que provoca e convoca a leitura como escuta. Não é uma decisão do sujeito, pois tem de ser fundada na escuta da fala poética da linguagem, ou em grego, do lógos. Por isso, jamais poderá ser uma leitura subjetiva. A leitura só é do leitor a partir da escuta da fala poética da obra. É a permanência e atualidade das obras poéticas que fundam a leitura do leitor seja em que época for. E a poética explícita? Quando Homero e Hesíodo convocam as musas já nos jogam numa poética explícita. Já nos dizem explicitamente o que os funda ao escreverem as obras. O fundamento é o princípio, enquanto originário e não e jamais enquanto origem. E se os leitores não se abrirem também para as musas como poderão compreender o que só as musas criam? É difícil, senão impossível, haver uma grande obra poética em que não haja lugar para esse momento de reflexão e pensamento. Vamos a um exemplo mais recente, não que os mitos estejam ultrapassados, pois o mítico jamais deixa de vigorar como o permanente e sempre atual das obras poéticas. E é em Rosa que o encontramos. Seu livro Tutaméia – terceiras estórias (Rosa, 1967), ele o compõe de uma maneira insólita: É disposto em quatro partes. A cada uma precede-a um prefácio. Estes prefácios são a poética explícita. Vemos, portanto, que obra poética e poética nunca estão separados. Como poética explícita também podemos apontar as citações, se as houver. No caso há. São de Schopenhauer e a que se referem? Ao todo da obra e à leitura. Também o título se torna parte essencial da poética da obra. No caso de Rosa, é emblemático. Grande sertão: veredas é de 1958. Em 1962 publicou Primeiras estórias. Parece um título banal, mas não é. Por quê? Cada detalhe mínimo nas grandes obras poéticas é essencial. Em 1967, publicou Tutaméia – terceiras estórias. Acontece que não há segundas estórias. Só primeiras e terceiras. Isso faz pensar, mas pensar em profundidade. Na entrevista que concedeu ao crítico alemão Günter Lorenz, e essa entrevista é uma verdadeira poética explícita também, ele declara: “E também choco meus livros. Uma palavra, uma única palavra ou frase podem me manter ocupado durante horas ou dias...Os livros nascem quando a pessoa pensa; O ato de escrever já é a técnica e a alegria do jogo com as palavras” (Rosa, 1991:79-80). O não haver um livro com segundas estórias é intencional. Acostumados ao cronológico, só vemos no tempo a corrente, a ordem e a sucessividade. Acontece que primeiras não indicam aí ordem e, sim, uma profunda tematização do que é o primeiro, as origens, o originário, ou seja, o poético permanente e sempre atual. A esse originário é que os gregos chamaram de arché. Todos os mitos, todos as obras poéticas e de pensamento se tecem em torno e a partir da arché, como a memória originária em que se funda a permanência e atualidade da poética. O primeiro é o princípio. A pro-cura do princípio é o que move todas as nossas pro-curas e não apenas as dos poetas e pensadores. E isso em todos os planos e dimensões da vida. Por isso, nos revela São João no princípio de seu evangelho: “´En archéi ´en ho logos...” (“No originário vigora o Logos”). O que é isto – o lógos? Este ora é traduzido por verbo, ora por palavra. Neste horizonte talvez possamos agora compreender melhor porque a poética é sempre permanente e atual. A poética vigora no logos enquanto este inscreve e circunscreve os princípios, as primeiras estórias. Todo princípio só é princípio poético porque vigora no originário. Penso a referência de Poética e originário, enquanto arché, no ensaio: “Poética: permanência e atualidade”, publicado na revista Tempo Brasileiro, 171.
Mas se atentarmos agora para a passagem de Grande sertão: veredas, acima citada quando falamos da poética implícita: “O que é para ser são as palavras” (1967: 39), veremos que o ser nos advém sempre como princípio E como lógos. Daí se traduzir também o lógos como verbo. Mas não indica este ação? E não se diz ação em grego poiésis? No princípio era, pois, a poética. Dessa poética originária nos fala a obra poética Primeiras estórias.
E a primeira afirmação poética, segundo a própria obra citada, é de que o nome não dá, recebe. O que é para ser são as palavras. É com as palavras que as obras poéticas se constituem e não com os nomes dos autores. Mas não é a mesma coisa? Riobaldo diz que não. Para além da tensão entre Nome e palavra, há uma terceira citação que escolhi, onde Riobaldo diz: “Muita coisa importante falta nome” (1968: 86). Qualquer leitor mais atento, vai notar que a questão aqui se dá entre “coisa” e “nome”. Coisa é em grego “on”, o sendo. Ser e coisa são um e o mesmo. Coisa diz-se em latim res, de onde se originaram nossas palavras: real, realidade, realização. Não fica bem claro na poética de Grande sertão: veredas que não há autor sem palavra, mas que na referência do autor ao sendo, à coisa, ao real, faltam muitos nomes? Isso é evidente. Já podemos concluir que em relação à poética das obras poéticas, a palavra ocupa um lugar inter-mediário entre nome E coisa. Pensar a poética é, portanto, pensar a palavra como lugar inter-mediário, pois palavra, em sua formação, provém do grego: Pará-ballein, ou seja, jogar no entre. A palavra, a coisa e o lugar inter-mediário não são redutíveis a conceitos, pois a coisa não cabe nos nomes. O que cabe nos nomes são os conceitos, as definições. O que não cabe são as questões.
Pensar a permanência e atualidade da Poética é pensar as questões, as questões que a própria obra poética nos coloca. Questão não é um problema que se possa resolver, não é algo que eu, cada um de vocês, cada leitor, posso ter ou não ter. Todos nós já estamos lançados nas questões. Será, portanto, como questões que aqui e agora pensaremos a permanência e atualidade da poética. Permanência e atualidade não são só questões da poética. Só são da poética porque elas já são radicalmente as questões onde nós fomos lançados desde que nascemos e com as quais temos que nos defrontar. Não é uma questão enigmática e misteriosa o viver e morrer desde que nascemos? Viver e morrer não são sempre atuais? Viver e morrer são questões.
Se, como afirma, Riobaldo, o que é para ser são as palavras, toda obra de pensamento, toda obra poética suscita questões que nos advêm na luta com as palavras. E como nos diz Drummond no poema “O lutador”:

Lutar com palavras
É a luta mais vã.
Entanto lutamos
Mal rompe a manhã...
..................................
O ciclo do dia
Ora se conclui
E o inútil duelo
Jamais se resolve.
............................
Cerradas as portas,
A luta prossegue
Nas ruas do sono.

Disto resulta uma questão poética: São os poetas que fazem os poemas ou são os poemas que fazem os poetas? Defrontar-se com esta questão é pensar a permanência e atualidade da poética. Para encaminhar melhor esta questão, proponho agora uma auto-reflexão, em que me surpreendo já sempre me debatendo em meio às questões da permanência e da mudança, de onde surgem as questões da atualidade e da Poética. Esta, no horizonte das questões, tem, portanto, um sentido de realizar a vida poeticamente, no seu sentido originário, isto é: fazer, criar, desdobrar, realizar, manifestar, poietizar. Acontece que não se pode pensar a permanência sem nos defrontarmos com a mudança. Nos interstícios da permanência e da mudança é que se dá a atualidade. Dada a transitoriedade da vida, pois somos transeuntes, ao longo do percurso do humano, que será sempre um humano poético, e a essência do poético está em realizar a essência do humano, muitas foram as respostas ao que é a morte. Porém, como pensar a morte senão pensando a vida? Na vida a morte e na morte a vida. Mas pode haver depois sem antes, se vida e morte são simultâneos, sempre atuais? O que é o tempo? Rosa, sempre genial, assim começa o conto Reminisção, cujo radical nos remete para reminiscência, ou seja, memória e tempo: “Vai-se falar de vida de um homem; de cuja morte, portanto” (1967: 81). A vida é morte, simultaneamente e não pode haver aí causa e conseqüência. Só permanência e atualidade. Toda atualidade pressupõe a mudança no que permanece e o permanecer na mudança. Essa é a essência originária do atual, isto é, do poético.
Podemos dizer que a morte é vida assim como dizer poeticamente: A noite é luz. Isso o princípio da contradição lógica e racional não aceita. É que o poético não cabe na mistificação racionalista do real, da “coisa”, como já nos disse Riobaldo. Não será esse o fio da meada para as questões de permanência e atualidade da Poética? A questão do tempo sempre foi questão em todas as épocas e culturas. A sua compreensão é que variou de cultura para cultura, mas de maneira alguma o tempo depende da cultura, assim como a sentença poética não se prende à proposição crítica e racional em que se funda toda identidade e princípio da contradição, toda causalidade e funcionalidade, toda compreensão do tempo como linearidade, corrente e progresso. Por exemplo, a cultura grega experienciou o tempo como memória e como memória falou de quatro modalidades de tempo: o kronos, o kairós, o aion, as horai. O que as une? A memória. Como unidade, a memória é o tempo poético originário, de que nenhuma razão ou consciência crítica dá conta, até porque o alcance da consciência crítica se defronta já desde sempre em-si e para-si com a necessidade da própria crítica da consciência. E aí a consciência e razão se vêem em aporia.
Quando desenvolvemos isto já estamos pensando no alcance da Teoria Literária e das Correntes críticas. Pois, historiograficamente, não foram estas que substituíram a Poética, dando-a como ultrapassada? Mas será que Dom Quixote ultrapassa Rei Édipo? À procura do tempo perdido ultrapassa Dom Quixote? Grande sertão: veredas ultrapassa Dom Casmurro? Em relação às obras poéticas podemos falar em ultrapassagem? Não se dá ultrapassagem só nos produtos culturais enquanto utensílios. O navio atômico não superou a caravela? Só podemos falar em superação no que diz respeito aos utensílios, jamais em relação às obras poéticas. Estas são sempre permanentes e atuais. Por isso mesmo elas não se restringem a uma determinada cultura e sua identidade. Elas pertencem ao humano, que está para além de todas as culturas, e à sua identidade. Para Freud não era o mito de Édipo, o Rei Édipo, de Sófocles, ainda atual? E por acaso ele se restringiu à cultura e identidade gregas? Por acaso ficou ele preso e dependente do tempo cronológico e da historiografia causal e finalista? Mas claro que não, porque a obra poética como algo vivo é sempre permanente e atual.
As questões da mudança e da permanência me lançaram, desde jovem, na reflexão sobre o sentido da vida tendo como interface a presença constante da morte. E isso significou para mim pensar a questão do tempo. Foi este ser tomado pelas questões que orientou minhas escolhas de vida, fazendo-se presente nas escolhas profissionais. Elas sempre constituíram para mim uma dobra e jamais um duplo, uma dicotomia.
E agora me refiro a minha experiência de formação e vida profissional. Ao estudar filosofia, tive a sorte de ter um professor de História da filosofia, onde o nome do autor e sua vida não tinham importância nenhuma. O que contava eram as obras e as questões em torno das quais toda obra de pensamento se move. Por isso, a história da filosofia que eu estudei, sempre se desenvolveu em torno das questões da referência do humano ao real, do ser do homem ao ser. O estudo de cada nova obra de um pensador consistia em pensar no pensado o que não tinha sido pensado pelo anterior. Se bem notarem, quando o estudo e a aprendizagem se guiam pelas questões, eles consistem em pensar na vida a morte, no desvelado o velado, na obra poética a poesia.
Depois da filosofia fui estudar Letras. E o ensino da história da literatura, em que se baseia todo curso de letras, seguiu outro rumo, que me causou muita estranheza. A memória poética ficou reduzida à historiografia e o tempo à cronologia, onde sempre se falava de nomes de autores e obras, mas onde também as obras eram pretextos para usar classificações numa sucessividade aparentemente lógica de formas ou estilos e de gêneros. Tal classificação é muito útil para o estudo classificatório e funcional, mas onde também da poética das obras nada se pensa e nada se fala, como se as obras fossem objetos de museus, esperando os rótulos formais ou ideológicos classificatórios, como virgens pudicas temendo ser violentadas. Mas não é verdade que não se pode fazer homelete sem quebrar o ovo? A mulher, como verdadeira obra poética criativa, precisa para procriar ser desvirginizada. Diante do milagre e do mistério extraordinário que é criar e procriar é algo originariamente necessário. A pura possibilidade que a vrigindade como velamento contém em-si pode tornar a mulher a mãe de muitos filhos, continuando o milagre da vida como permanência da vida diante da permanência da morte. Todo nascimento de uma criança reinaugura o mundo diante da morte. E em relação à obra de arte, como torná-la permanente e atual: fazendo dela leituras originárias. Fazer da obra poética uma leitura originária é levar a obra a procriar. Isso não era ensinado.
Meu primeiro curso de teoria literária, em 1966, tratou da leitura das obras poéticas através da estilística. Mas quando em 1969 terminei meu curso, a corrente crítica da moda, que fazia furor em muitas áreas de conhecimento, passando pela teoria literária e pela lingüística, e se espraiando pela antropologia etc. era o estruturalismo. Como sempre me vi possuído pelas questões, estranhava aqueles modelos, aqueles suportes externos e prévios para ler, catologar e classificar as obras, reduzindo toda leitura a fórmulas formais, que eu via como esqueletos inertes. Mas havia outras correntes críticas. Era também o tempo da literatura engajada, com Sartre, e do Realismo Crítico de Lukacs.
Porém, para mim, como esquecer a sábia lição do aprendizado da história da filosofia, voltado para as obras e nas obras enfrentar o desafio de pensar as questões, que sempre permanecem e são atuais? Pretender isso seria pensar a poética num diálogo desafiante e amoroso com as obras poéticas. Sempre me causou desconforto ficar falando sobre as obras através de análises, onde primeiro se mata a obra como no laboratório se mata o animal, para depois proceder à análise anatômico-formal, ao desmonte das partes e do levantamento temático para achar o que o autor quis dizer. Isso nada acrescenta ao leitor nem à obra. Não há nada mais anti-poético. Pois Poética é vida, é lançar-se afoita e amorosamente no elemento da vida, no diálogo com as questões da vida.
Já faz alguns anos, vi e revejo um filme chamado: Samsara. Não vou contar aqui o enredo, mas apreender no filme, como obra poética, a questão em torno da qual ele acontece: a experienciação do amor. Porém, como toda obra de arte, ele está sintetizado numa pergunta. É que ex-perienciar é sair dos limites para voltar ao originário dos limites: o não-limite. No caminho circular de ir e vir para chegar aonde desde já sempre estava, o personagem-questão central encontra no caminho de sua pro-cura uma pedra em cima de um muro, em que estava escrita uma pergunta. No ir, ele pega a pedra e leu a pergunta: “O que fazer para que uma gota de água não evapore ao sol?” Como no ir, a pro-cura era mais importante do que a cura da vida, ele nem se deu ao trabalho de tentar apreender e compreender o que tal questão lhe tinha a dizer. Depõe a pedra e continua. A procura o projetava nas mudanças e o opunha à permanência, ao cultivo do que permanece no fluxo das mudanças, enfim, ao poético. Isso é natural. Só no empenho de nossas procuras é que poderemos ou não encontrar o penhor de nossos desempenhos e empenhos. Depois de muitas experiências e desenganos, inerentes às procuras sem o cuidado do cuidar do permanente, ele volta para o lugar de origem, para o originário. E passa no mesmo lugar e vê a mesma pedra. Torna a pegar a pedra e relê a pergunta: “O que fazer para que uma gota de água não evapore ao sol?” E então algo acontece: ele resolve encarar a questão e vira a pedra e lê o que estava escrito atrás, tornando o velado desvelado. E o que o velado desvelado dizia? “Jogue-a no mar”. O mar. A água é certamente o elemento da mar, assim como a poesia é o elemento do poético. O permanente e atual é sempre a poesia, o elemento do poético. Permanente viver como vida poética é deixar-se tomar pelo elemento da vida, a poesia. Mas tem de ser um acontecer poético, onde permanentemente se experiencia a atualidade do poético. Quando acima perguntamos: O poeta é poeta porque faz poemas ou faz poemas porque é poeta?, deixamos sem resposta. Agora já podemos responder. Nem um nem outro: é a poesia. É na e pela poesia que a poética é sempre permanente e atual, o poeta é poeta e o poema é poema.
Em 1973 escrevi minha dissertação de mestrado, uma leitura poético-dialogal de Grande sertão: veredas, a que dei o título: O homem provisório no grande ser-tão. O ser é tão grande que nossa vida em meio à sua excessividade poética não pode senão ser provisória, enfim, uma travessia, a travessia do nada para o tudo, como nos diz Rosa. Começamos no Nada e somos projetados no não-finito. No entre-ser: a permanente e sempre atual travessia da liminaridade onde se dá o limite e o não-limite, a única possibilidade de conquista do humano. Estas palavras fazem parte da poética Roseana. Não disse Riobaldo que o que é para ser são as palavras? Na Área de Poética já se desenvolvia a Leitura Poética e uma reflexão profunda em torno da obra, diferenciando-a do utensílio e do objeto.
Em 1977, publiquei minha dissertação e um pequeno livro de ensaios intitulado: Travessia poética. Como vêem a minha experiência de vida de estudos sempre se desdobrava na juntura e conjuntura de minha formação profissional e do meu construir poético pessoal. É minha vida como uma dobra se desdobrando. O ser assediado pelas questões me levava a uma distância renitente em relação aos conceitos, porque amava e amo apaixonadamente a liberdade. Diante da Moira, do destino entre morte e vida, que uma Parca pacientemente tece e um dia vai cortar, só podemos amar e concretizar a liberdade fazendo de nossas procuras um acontecer poético, onde o social é o pessoal e o pessoal é o social como construção utópica permanente e sempre atual. Não há, não houve e nunca haverá qualquer modelo, qualquer arquétipo, qualquer suporte, qualquer paradigma, qualquer teoria que consiga enclausurar a experiência amorosa que é viver e viver a liberdade de viver, tendo como horizonte de sentido permanente a morte. Viver é tornar-se, construir-se livre, ser livre poeticamente, mas uma liberdade que encontra seu vigor e sentido na morte, não na pretensa liberdade da vontade e do querer subjetivo. Como exercer a razão crítica em relação ao que não se sabe nem pode caber na consciêncica? Não há identidades culturais, ideológicas, formais, religiosas, políticas que possam prescrever o que só cuidando livremente podemos realizar sempre inauguralmente como atualidade e permanência do poético, da poética: apropriar-nos do que nos é próprio. Isto é a essência originária do humano. E não só criar as condições sociais, mas também conjunturalmente desformatar as mentes e os corações. Isto é uma conquista sempre atual e permanente, isso é sempre uma conquista poética, porque cada ser humano, independentemente de cor, religião, partido, cultura, sexo é um “sendo” absolutamente inaugural, único: uma autopoiese dentro da rede social de relações, como hoje a genética nos propõe, mas que foi sempre o que os grandes poetas e pensadores já sempre defenderam. Porém, não somos o produto de um código genético, porque para além deste nosso destino, ou o quinhão (moira) que nos cabe no genos, somos um projeto da Cura, do cuidar, que poderemos realizar ou não em nossas pro-curas poéticas ou não poéticas. A liberdade do cuidar e do discernir, do criticar, pode-nos conduzir aos caminhos da errância na pro-cura da verdade. A permanência e atualidade da poética advém e só pode advir no e pelo cuidar do que nos é próprio, do que é próprio em cada um, pessoal e socialmente: nisso consiste a essência originária da identidade, da liberdade, do amar. Isso é a Poética.
Em 1979, defendi minha tese de doutorado. O tema era: O acontecer poético – a história literária. Como vêem, o poético, a poética não é algo acidental em minha vida., como não é na vida de cada leitor.
Porém, desde 1970 me tornara professor da Faculdade de Letras. Na realidade minha estadia na Universidade começou em 1965, quando fiz um ano de Sociologia. O social sempre me pré-ocupou, mas não e jamais como sistema ou ideologia. Assedia-me um social poético inaugural, utópico, fraternal, livre. Como professor, eis a ironia do destino, o que eu tinha de ensinar? Teoria literária. Afinal eu ensinava teoria literária ou poética? Eu formatava as mentes dos alunos nos suportes conceituais ou dialogava para que juntos falássemos com as obras? A tal diálogo chamávamos Leitura Poética, como está na minha tese de doutorado, publicada em 1982. Claro que as obras poéticas e o poético das obras sempre foram o mais importante, porque não exige nem permite que se parta de um suporte, de qualquer teoria. Mas não será isso impossível, segundo a teoria crítica moderna? Como fugir da subjetividade e do perspectivismo, da razão e da consciência crítica, do científico e objetivo como o único verdadeiro? Não me espreita o abismo do misticismo e da mistificação irracionalista? Do falar de Nada, fugindo da prisão obrigatória e obsessiva da razão? Quem pode em sã consciência afirmar só o querer da razão, diante do paradoxo poético de vida e morte, de noite e de luz? Do que vemos e sabemos vemos e sabemos tão pouco que nem vemos e nem sabemos o que nos está tão próximo, mas tão próximo que nem o podemos ver: nosso olho que vê. Nossa consciência pode tão pouco, tão pouco que nem pode sonhar os sonhos que quer nem na ordem lógica e consciente que a consciência quer, entregues interiormente, no nosso mais profundo íntimo ao inconsciente. Não será este o abismo sobre o qual já desde sempre pairamos, mas poeticamente? No conto “O espelho”, o personagem-questão, ao final de sua descida ao interior do que é, para continuar a ser radical, conseqüente e lógico, na descida, depara-se como uma situação extraordinária e enigmática para continuar o jogo do especular do espelho: o ter de se jogar no abismo, dar o “salto mortale” (1967: 78) e ainda ter de se perguntar: “Você chegou a existir?” (1967: 78). Nós chegamos, ao final, a existir? Na permanência e atualidade como diferenciar vida e morte? Mas há o poético e não apenas a medida cronológica ou científica da vida, numa definição biológica. Mas há o poético enquanto vida poética que nenhuma biologia nem nenhuma antropologia com seus suportes crítico-conceituais podem apreender. O conceito de vida da biologia nem de longe consegue apreender o que no mais amplo plano e no mais profundo e íntimo de nós mesmo cada um experiencia como vida. Dependendo da campo de conhecimento que trata da vida, biologia, psicologia etc., o que é vida muda completamente. Só não muda o ser medido por um suporte e paradigma. Mas será que a vida tem medida? O elemento da gota sendo o mar, o elemento do ser sendo Nada, que é tudo, não será essa a medida sem medida, porque a vida se quer e acontece sempre poeticamente? Como medir o poético com qualquer paradigma ou suporte?
Contudo, em meu percurso profissional experienciei uma outra realidade, bem diferente da Leitura poética, na qual o diálogo substitui a análise e aberta à escuta do logos. Com o passar dos anos, constatei que as Correntes críticas se sucediam e ainda se sucedem. Sempre há uma Corrente crítica nova. De certo, vocês podem argumentar: o conhecimento evolui, muda, se renova. É a vida. Pensar a mudança sem a permanência, é abandonar a possibilidade do atual. O atual é sempre concreto, porque vigora no originário, no poético. As novas obras poéticas não são repetição das anteriores, mas também não são evolução. As questões não evoluem, não progridem. Contudo, a cada obra poética nova elas são experienciadas inaugural e originariamente. A vida é sempre experienciação originária, porque é poética.
Depois de trinta e oito anos de vida profissional, constato a enorme variedade e sucessividade das Correntes críticas. Num levantamento não exaustivo, constatei vinte e seis. Claro que de algumas vocês nem mais ouvem falar. E até quando se falarão destas de hoje? Eis os nomes, sem preocupação com sua sucessão historiográfica:
1 – Fenomenologia da obra de arte.
2 – Desconstrucionismo.
3 – Estudos culturais.
4 – Realismo crítico.
5 – Estética da recepção e do efeito.
6 – Psicanálise.
7 – Teoria crítica ou Escola de Frankfurt.
8 – Crítica feminista.
9 – Formalismo russo.
10 – Estruturalismo.
11 – Nova crítica.
12 – Sociologia da literatura.
13 – Impressionismo.
14 – Biografismo.
15 – Estilística.
16 – Semiologia.
17 – Estudos neocoloniais e pós-coloniais.
18 – Estudos de gênero e etnia.
19 – Pós-estruturalismo.
20 – Pragmática.
21 – Teoria empírica.
22 – Teoria dos polissistemas.
23 – Poética lingüística.
24 – Estética.
25 – Hermenêutica.
26 – Gêneros discursivos e textuais.
É ainda necessário incluir dois modelos de analisar as obras e classificá-las, que não são tratados como correntes críticas, mas que se movem nos mesmos princípios da epistemologia crítica da Modernidade:
26 – Estilos de época.
27 – Gêneros literários.
Diante de uma diversidade tão grande, que não pára de crescer, o que fazer? Esclareça-se ainda que essas posições não são uniformes. Em torno de cada uma há uma diversidade de autores com pontos de vista bastante variados. É claro que essas diversas e aparentemente contraditórias posições têm um fundo comum. Todas elas são filhas da metafísica, consubstanciada na epistemologia crítica da Modernidade. Em última instância, são desdobramentos da filosofia cartesiana, kantiana e hegeliana. Nestes há dois traços comuns: a epistemologia crítica. Mas esta não permeia só os estudos das artes. No dizer de Octávio Paz, ela atingiu todas as instâncias do real:
A modernidade começa como uma crítica da religião, da filosofia, da moral, do direito, da história, da economia e da política... Crítica do mundo, do presente e do passado; crítica das certezas e valores tradicionais; crítica das instituições e das crenças, o Trono e o Altar; crítica dos costumes, reflexão sobre as paixões, a sensibilidade e a sexualidade... (Paz, 2001: 34, 35).

Essa crítica que tudo abrange, tinha em mente um abandono do passado e a construção de uma nova realidade utópica, baseada na liberdade crítica da razão. É nesse horizonte que os movimentos artísticos se sucedem e também as Correntes críticas. Há uma oposição entre passado e futuro, que hoje se esvai na fluidez de um presente imediato e técnico, onde técnica e capital fazem os jogos das metas como progresso e desenvolvimento, gerando um sistema abrangente, que a tudo quer transformar em recursos humanos e naturais. Toda a realidade continua crítica, agora no sentido de ser criticamente sistematizada, controlada e anestesiada pela estética do consumo. A esta nada escapa. O grande aliado são os recursos técnicos, cada vez mais amplos e potentes. E quem os promove são as universidades e os centros de pesquisa. Tudo hoje é objeto de pesquisa, aplicada ou teórica. Destrói-se o conhecimento para se reconstruir com mais sofisticação e abrangência. O real é a medida do real, isto é, o real é o calculável.
E em meio a tudo isso onde fica a Poética? Não será ela também uma Corrente crítica entre outras? Podemos falar de duas Poéticas. Para apreendê-las é necessário trazer para reflexão a questão da verdade. A história do Ocidente é a história da variação da essência da verdade. Podemos falar, basicamente, em duas essências: a conceitual e a originária. Portanto, também em duas verdades e em dois reais: o real e verdade conceitual e o real e verdade originária. Em si, uma não se opõe à outra. A grande questão é a verdade conceitual tender a reduzir o real ao seu modelo, pela globalização da técnica. Esta tendência é tão forte que gera as próprias Correntes críticas, através das quais até as criações poéticas ficam delimitadas pelo alcance de sua verdade. No âmbito desta verdade todo o real torna-se uma representação e dependente do conhecimento causal, funcional, cronológico e útil. O real é concebido como sendo constituído por leis, que as diferentes teorias das disciplinas tratam de explicitar e dominar através das pesquisas. Hoje tudo tem que ser objeto de pesquisa, caso contrário não receberá financiamento nem apoio. E tudo é regido por metas. Os próprios cursos de pós-graduação são estruturados dentro desta teoria e visão de mundo. Em tudo se busca a lei da coesão e coerência. É uma busca desenfreada para determinar quem é primeiro: a galinha ou o ovo? É questão de achar a causa e estabelecer a finalidade. A esta finalidade não fogem algumas criações ditas artísticas. Elas têm que trazer impacto, causar prazer estético, levar as pessoas a participar, a agir, isto é, a se agitarem. Acabou-se a contemplação. Em boa hora seria, se por contemplação se entendesse uma teoria como modelo a ser alcançado. Não é o caso. Tudo isso apenas quer reforçar esse modelo ideal e metafísico. E dentro desse modelo foram também surgindo algumas poéticas: a dos gêneros, numa leitura equivocada e metafísica de Aristóteles, a moralista do renascimento, a semiótico-estrutural. Aqui sempre se trabalha com modelos ou arquétipos, idealmente estabelecidos, que servem de guia para realizar as obras poéticas, mas sobretudo para classificá-las. São, pois, modelos funcionais que, em seus fundamentos metafísicos, em nada diferem dos modelos funcionais das Correntes críticas e de toda a construção do real: causal, funcional, objetivo, finalista. Claro que tais poéticas não são permanentes nem atuais.
A Poética das obras poéticas é sem por quê como as próprias obras poéticas. Não quer estabelecer nenhuma finalidade seja, estética, seja ideológica, seja prática. Nela vigora a verdade manifestativa do real, um real concreto do acontecer poético, onde todas as dimensões do real se fazem presentes, no ambíguo sentido que esta palavra tem: o que é o ser é ser presente, fazer-se presente, manifestar-se, doar-se, e neste doar-se oferecer-se como presente, doação ao ser humano, para que este, poeticamente, se realize em sua essência poético-originária: alcançar na travessia o humano. Num tal real não é só real o que se manifesta, mas também o que se vela, não é apenas real o que se fala, mas também o silêncio. Não é apenas o que se vê, mas também o que não se vê. Se vemos tão pouco que nem podemos ver o fundo de nossas retinas, tão próximo, como ainda querer trazer para o saber epistemológico a coesão e coerência do silêncio, a dobra de vida e morte? Feitos por Cura, temos que fazer de nossas pro-curas o cuidar poético do que somos e não somos. Mas só seremos radicalmente poéticos se ao cuidar do que nos é próprio, este cuidar não for qualquer cuidar, mas um cuidar poético, onde o que o move como permanência e atualidade é o Amor. E há algo mais poético, permanente e atual que o Amor?

Bibliogafia:
ROSA, João Guimarães. Diálogo com Guimarães Rosa. In: Fortuna crítica. 2. e. Rio, Civilização Brasileira, 1991, pp. 62-97.
-----------------------------. Grande sertão: veredas. 6. e. Rio de Janeiro, José Olympio: 1968.
-----------------------------. Primeiras estórias. 3. e. Rio de Janeiro, José Olympio: 1967.
-----------------------------. Tutaméia. Rio de Janeiro, José Olympio: 1967.
DOLEZEL, Lubomir. A poética ocidental – tradição e inovação. Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1990.
WELLEK, René. História da crítica moderna. São Paulo, Herder, 1967, IV volumes.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião. 4. e. Rio de Janeiro, José Olympio: 1973.
PAZ, Octávio. A outra voz. São Paulo, Siciliano, 2001.