05 novembro 2010

O contemporâneo e o enigma da paideia poética


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Reunidos em si, coincidem princípio e fim na periferia do círculo. (Heráclito, frag. 103)


Neste pequeno ensaio fazemos um incurso e percurso pelo famoso ensaio de Heidegger a propósito da obra de arte: A origem da obra de arte. A palavra origem não diz aí algo linear, progressivo, cronológico, historiográfico, diz o sentido originário do acontecer poético da realidade, do tempo. E aproveitamos para mostrar como ele quer assinalar nas obras de arte algo sempre contemporâneo, na medida em que propõe uma Paidéia poética. E há algo mais contemporâneo do que a essência do ser humano em sua referência ao ser realizando-se, acontecendo no e como tempo? Trata-se, portanto, não de mais uma teoria, mas do mergulhar na eclosão do poético do humano, independente das determinações de cultura, povo, época e espaço. Será sempre um erro banal tentar compreender e dizer o que é o contemporâneo sem se deixar tomar pela questão do tempo e não das épocas em sua sucessão, pois elas só acontecem no e pelo vigorar do tempo. Tempo é princípio e este nunca é estático, é dinâmico, nunca é linear, é circular, nunca é finito, é infinito, nunca é de exclusão é sempre de inclusão. Tempo, portanto, sempre se dá no vigorar de uma unidade. Que unidade? Sabe-se pela Física que o tempo se dá em quatro dimensões: passado, presente e futuro. E a quarta? É a que as reúne e lhes dá sentido: a linguagem. Linguagem é unidade porque é memória. O princípio de todas as diferentes obras poéticas não são as matérias, enquanto princípio de sua elaboração, mas a linguagem ou sentido irrompendo em mundo e presença. Na medida em que toda obra de arte se funda na e com a linguagem, toda obra de arte é sempre contemporânea, pois não há obra de arte sem o seu operar no e pelo princípio, ou seja: o tempo enquanto linguagem. Isso de maneira alguma quer dizer a-temporal. Pelo contrário, é o mergulhar na essência do tempo, o contemporâneo como o seu acontecer poético apropriante. Será míope e desfocado toda proposta que não pense o contemporâneo pelo princípio das obras de arte: o tempo enquanto linguagem.

Por Paidéia poética não se entende de maneira alguma uma teoria educativa. Estas propõem o enquadramento do ser humano em sua absoluta singularidade e identidade num modelo geral. A Paidéia poética, pelo contrário, orienta-se por um famoso verso de Píndaro: Torna-te o que és: aprendendo. Chegar a ser o que já desde sempre se é a única tarefa do pensamento e, portanto, do aprender. Aprender é pensar, pois pensar é amar. Em sua essência a Paidéia poética é uma travessia amorosa.

No posfácio ao seu ensaio A origem da obra de arte, Heidegger faz uma observação que, em geral, não é levada em conta: “As reflexões precedentes dizem respeito ao enigma da arte, ao enigma que é a própria arte. Está longe de nós a pretensão de resolver enigma. Permanece a tarefa de ver o enigma” § 187 (Castro e Silva: 2010, 201). Este enigma da arte vem nos desafiando ao longo do percurso da cultura ocidental. Tal percurso é muitas vezes identificado com a sua opção metafísica. E, aparentemente, esta palavra passou a denominar algo extremamente simples e transparente. Não é o caso. O principal problema da metafísica não é o que sabemos dela, mas o que não sabemos.

Em geral, nos pautamos pela última tomada de posição metafísica, aquela que mais nos envolve pela proximidade histórica, e nela passamos a identificar a resposta verdadeira. Mal sabemos que essa resposta se edifica em cima de um questionamento que não cessa de se renovar. Tal questionamento se alimenta do que não sabe e procura sempre saber, senão não seria questionamento. Esse não do saber não é, pois, negativo, mas o próprio vigor e motivo de todo questionamento. É dele que se alimentam os poetas e pensadores. Mas preferimos a tranqüilidade do saber ao desafio do não-saber. Aquele nos dá tantas certezas, tantas vias de acesso que, aparentemente, novas teorias não cessam de enriquecê-lo. Definem-se novas disciplinas e interdisciplinas com novos objetos e inter-objetos, na afirmação cada vez maior do sujeito. Porque não pode haver sujeito sem objeto. Multiplicam-se as nomenclaturas e as análises. Decifram-se os mecanismos de construção e criação.

Esmiuçam-se as formas e os estilos, assinala-se a renovação dos gêneros. Mostra-se objetivamente a linguagem como uma construção social ou então como manifestação do inconsciente. O acervo do saber não cessa de crescer e isso só prova a riqueza da cultura ocidental. É temeridade e irresponsabilidade pôr em dúvida tal saber. Um saber que não só classifica, ordena e julga o saber ocidental, mas também se torna o instrumento e paradigma de classificação, ordenação e julgamento de todas as demais culturas. É um saber que a tudo identifica, a tudo dá uma medida, a tudo representa. Esse é o lado visível e superficial da metafísica. A sua outra face preferimos ignorá-la como se ela fosse o seu lado já superado e desprezível. Esta outra face é o vigor da própria metafísica e que nos desafia permanentemente como uma esfinge enigmática. O que não sabemos da metafísica é muito mais complexo e profundo, e não é acessível ao saber apressado e bem estruturado em resposta precisas e análises previsíveis. As discussões ficam por conta dos detalhes, das nuances, dos jogos de bastidores, da ambigüidade retórica e da luta pelo poder. No todo não há o todo como questão. Não há aquela simplicidade aparentemente ingênua e sempre renovada da admiração. Não foi assim que os gregos começaram? Não é este o vigor da riqueza da cultura ocidental metafísica? Por detrás de toda resposta metafísica há uma questão, há a questão. Mas quem se importa com ela?
O pai da Modernidade, Descartes, nos mostra o caminho e faz até dele um método. Por que as pessoas esquecem tão facilmente que método é a palavra grega para caminho? Ele nos diz na Quarta parte do Discurso do método:


Não sei se deva falar-vos das primeiras meditações que aí realizei (num acampamento militar, durante o inverno, na Alemanha); pois são tão metafísicas e tão pouco comuns, que não serão, talvez, do gosto de todo mundo. E, todavia, a fim de que possa julgar se os fundamentos que escolhi são bastante firmes, vejo-me, de alguma forma, compelido a falar-vos delas. De há muito observara que, quanto aos costumes, é necessário às vezes seguir opiniões, que sabemos serem muito incertas, tal como se fossem indubitáveis, como já foi dito acima; mas, por desejar então ocupar-me somente com a pesquisa da VERDADE, pensei que era necessário agir exatamente ao contrário, e REJEITAR como absolutamente FALSO tudo aquilo em que pudesse imaginar a menor dúvida, a fim de ver se, após isso, não restaria algo em meu crédito, que fosse inteiramente indubitável... Mas, logo em seguida, adverti que, enquanto eu queria assim pensar que TUDO ERA FALSO, cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade: eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulos, como O PRIMEIRO PRINCÍPIO DA FILOSOFIA QUE PROCURAVA” (Destaques meus) (Descartes, 1994, 66).


Como toda obra de grande pensador (ou poeta/artista) esta pequena passagem dá ensejo a muitos comentários, tão densa e simples é a sua pro-vocação ao pensar. Hoje a pós-modernidade nos indica de alguma maneira a modernidade em crise. Não era esta a situação de Descartes em relação à Idade Média e às certezas e ao saber que dela advinham? Duvidar e buscar a verdade foi uma atitude negativa em relação ao rico legado metafísico? O que devemos estranhar na atitude de Descartes? Não é a busca do estranho e do extra-ordinário num mundo de certezas? Não é esta a maior riqueza da metafísica: a busca da verdade e de novos caminhos? E ao deixar de lado, pelo exercício questionante da dúvida, os princípios tradicionais já cultivados e estabelecidos, tornou ele menos vigoroso e válido o percurso metafísico da cultura ocidental?

O título da obra de Descartes onde se localiza a passagem chama-se Discurso do método. Mas o que aí é mais importante: a procura da verdade ou o caminho para ela? O que é mais importante: a busca do princípio ou o estabelecimento de um princípio? Ou será que uma coisa pode ser separada da outra? De que metafísica falar: a dos princípios ou da atitude de questionamento? Por que se deve sempre cair numa estrutura questionante de ou ou? Por que não “e e”? É neste sentido que podemos voltar ao ensaio de Heidegger e ver o que o move: “A tarefa consiste em ver o enigma.” Como tentar ver o enigma sem negar o já visto? Mais: sem questionar o já visto, sem ir além das respostas da metafísica? Mas todo ir além é mergulhar ainda mais no visto e já respondido para lá apreender o não-visto e não-conhecido. O futuro está no passado. Dialogar não é falar com o vazio oposto ao dito, é mergulhar no dito para deixar-se tomar nele pelo que o constitui e faz aparecer e ser dito. Todo diálogo para os dialogantes supõe o não-saber, pois se ambos se agarrarem ao já sabido como já sabido, não haverá a dúvida do não-saber. É este e são este que nos une a todos. Mas não é um não-saber negativo, como o silêncio não é a negação das falas, é sua origem, é sua fonte inesgotável. Ser e estar sendo é deixar-se tomar pelo vigorar do silêncio, à fonte de todo estar sendo na medida do iluminar-se pela energia irradiante de tudo poder ser e não-ser.

Com o Ulisses de James Joyce, Homero se torna mais nosso contemporâneo. Por que a arte nunca deixa de ser contemporânea? É uma questão de forma, de estilo, de gênero? Mas os dois Ulisses por serem idênticos não quer dizer que sejam a mesma coisa nem que tenham a mesma forma, estilo e gênero. O que eles trazem é algo mais, aquilo que nos trai e por isso mesmo é digno de ser pensado tanto mais quanto se retrai. Este é a força de sua contemporaneidade e vigor da sua ambigüidade. Mas o que é esse “algo mais” para além das definições e análises? Não é esta a questão a que os princípios procuram dar resposta, que os pensadores pensam, que os poetas habitam? Não é esta a nossa tarefa: a procura da verdade? Ou não seremos com-panheiros dos pensadores e poetas? Não dividiremos com eles o pão com que nos alimentamos (cum-panis)?
E por que esta nova tentativa não significaria necessariamente uma nova atitude metafísica, não seria mais uma teoria entre outras? Este é o vigor e o desafio do pensamento de Martin Heidegger. Mas lá onde o leitor for procurar uma resposta só vai achar perguntas, perguntas que só se tornarão questões quando se nos tornarem próprias. Não foi por lazer que escreveu Der Feldweg (O caminho do campo). Não foi por certezas metafísicas que deu como subtítulo a suas publicações: Wege nicht Werke (Caminhos não obras).

O desafio do seu pensamento não consiste na negação e na conquista de opositores à metafísica. Pelo contrário, convida-os a pensar a metafísica, repensando os seus caminhos. E só se pode re-pensar a metafísica, não partindo do acervo das suas certezas e das questões e princípios que as produziram, mas de as ler e acessá-las na luz do vigor de seu questionamento. Este vigor é que é digno de ser pensado. Mas como fazê-lo a não ser re-fazendo o percurso da metafísica?
No ensaio O caminho do campo, nos diz a propósito do caminho da procura:


De passagem pela orla, saúda [o caminho do campo] um alto carvalho, em cuja sombra está um banco talhado a cru.
Nele repousava às vezes um ou outro texto dos GRANDES PENSADORES, que o desajeito de um novato tentava decifrar. Quando os enigmas se acumulavam e nenhuma saída se apresentava, servia de ajuda o Caminho do campo. Pois em silêncio conduz os passos por via sinuosa através da amplidão da terra agreste.
Pensando, de quando em vez, com os mesmos textos ou, em tentativas próprias, o pensamento, sempre de novo, anda na via que o Caminho do campo traça pela campina.


Os grandes pensadores e as questões são a companhia que acompanham o pensador em seu per-curso pelo caminho. O pensador tem que se abrir ao apelo do pensamento, pois é ele que “...sempre de novo, anda na via que o Caminho do campo traça pela campina.”
O percurso não se faz só. É preciso pensar as questões dos grandes pensadores. Este é o caminho do campo. Não foi esse o caminho do campo de Descartes? De Tomás de Aquino? De Agostinho? De Aristóteles? De Platão? De Parmênides? De Heráclito? E de todos os outros? Dos poetas? Pensar é sempre pensar com, mas não simplesmente reproduzir. Pensar-com é exercer o desvelo amoroso, mas nunca falar por. Para tal é necessário dialogar, que é o exercício da escuta, onde se fala para escutar e se escuta para falar. Onde há simplesmente a fala não há diálogo. Mas o que é a fala? O que nos fala na obra? As formas? Os estilos? Os gêneros? Mas o que é isto: formas, estilos, gêneros? Quem definiu o seu alcance e conteúdo? Dão eles conta do que de-finem? Ou não serão essas as respostas metafísicas que pretendem dar conta do enigma da arte? Mas então será a fala da arte? Como pode haver fala sem Linguagem? Mas qual será a fala da forma e a fala da Linguagem? Onde está a ambigüidade da fala? Na forma ou na própria Linguagem? O que tanto nos atrai na arte e que ao mesmo tempo tanto se retrai? Não é esta atração e retração a ambigüidade radical do enigma da arte, o que a torna permanentemente contemporânea? O que é mais importante acumular e classificar o dito ou pro-vocar o não-dito a partir do dito?



O círculo poético do ensaio


O ensaio A origem da obra de arte não pode ser lida sem atentar para o vigor e rigor da sua articulação. Ela se constitui num círculo virtuoso. Há aí um jogo sutil de identidade e diferença que vai do um como princípio ao dois como unidade. Princípio e telos se incluem e se excluem: este é o vigor virtuoso do círculo, este é o vigor ambíguo do enigma da arte, pois princípio diz o vigorar do dinâmico no estático, do circular no linear, do infinito no finito, da inclusão na exclusão. Telos dentro do vigorar do princípio diz o próprio agir que leva à consumação, à plenitude de realização, ao não-limite de todo limite.

O ensaio Heidegger a propósito da origem da obra da arte consta de uma introdução, três partes intituladas:
1a. A coisa e a obra.
2a. A obra e a verdade.
3a. A verdade e a arte.
E um posfácio.

A introdução e o posfácio se esclarecem a partir do próprio vigor que articula circularmente as três partes. Não são, pois, propriamente, uma introdução e uma conclusão, num sentido linear e tradicional, num sistema de causa e efeito, em que a conclusão esclarece e conclui o que se pro-pôs na intro-dução. O que se diz na intro-dução e o que se diz na conclusão (Heidegger não usa estes nomes tradicionais, e isso já é significativo, mas preferimos ficar com esses nomes como meio de dialogar com a postura metafísica) só são compreendidos a partir do vigor que move e articula as três partes. Por isso não é uma introdução que de fora nos levasse para dentro. Ou bem já nos localizamos no vigor do círculo ou bem jamais conseguiremos nos introduzir como se fosse possível ir de um fora para um dentro, como se pudéssemos estar de fora do que somos e pelo que somos para, numa de-cisão de um sujeito, acessarmos o círculo do que é, da “realidade”, da “coisa”. No círculo do que é já sempre nos encontramos. Podemos ou não nos deixar atrair pela sua retração, pelo vigor da sua ambigüidade, pela tração do seu agir não-causal, onde somos espectadores e atores ao mesmo tempo. É essa retração que vigora em todo sendo, em todo telos. E se compreende isso facilmente. Se, de um lado, o sendo no seu consumar-se tende sempre para o limite do não-limite, pois vigora numa liminaridade, num entre, de outro, a arché que é seu vigor de consumação não pode ficar dependente do limite. Dando o limite retrai-se como incessante vigorar. E é justamente este incessante vigorar que em todo limite do sendo se retrai que será a força que faz da obra de arte ser contemporânea, porque nela vigora o princípio da luz irradiante.
O círculo gira em torno de três núcleos:

1º A coisa.
2º A obra/verdade.
3º A arte.
Nesse sentido, a introdução nos faz uma apresentação desses três núcleos no sentido metafísico já estabelecido e inquestionado, onde a coisa aparece como suporte de algo que se nos dá como simbólico, que é a obra/verdade que constitui a arte. As três partes retomam esse círculo deixando vigorar o questiona e passam a originar um dialogo a partir de cada parte como questão. E já vai questionando essa postura metafísica, que só ficará completa no final do ensaio, sem, evidente, dar uma resposta ou propor uma nova teoria crítica, tanto ao gosto da modernidade.
Normalmente encaramos a obra a partir do seu aspecto coisal/material, de como ela nos aparece no sistema mundo. Aspecto diz o modo como a vemos dentro do sistema em que estamos inseridos. Numa outra cultura (sistema) a mesma “coisa” aparecerá de outro modo. Porém, mal nos damos conta de que não indagamos por que aceitamos a de-finição tradicional metafísica de coisa. Ela é tão evidente e prática que qualquer questionamento pode soar como uma “destruição” de um saber acumulado e científico em torno do aspecto/forma coisal/material/objetual da obra. Mas viver não é o necessário, indagar é o necessário. Questionar sempre questionar.
A investigação de Heidegger no ensaio vai procurar os vestígios da “coisa”. Para tanto examina as pro-postas metafísicas e os claros das de-finições deixando-se guiar pelo vigorar da clareira em seu acontecer apropriante. Como meio didático de apresentação da questão põe em cena a tensão da coisa com a obra ao con-vocar para reflexão a contra-posição de obra e utensílio. É na reflexão que a luz irrompe, mas não a luz da crítica racionalisa, mas da poiesis (entende-se por poeisis todo passar do não ser ao ser). Como fica a “coisa” nesta contra-posição? Como nos aparece a “matéria” na forma? O que entender por “matéria”? Notemos que há a forma da “matéria” (enquanto algo dado pela physis/natureza) e “forma” tanto da obra quanto de qualquer utensílio, que usa as matérias para lhe dar outras “formas”. A “coisa” propriamente não se faz presente na utilidade do utensílio, porque tal utilidade já se dá dentro de uma determinação da “coisa” pela funcionalidade causal, ou seja, a função que o utensílio exerce no sistema ao qual serve e para o qual foi feito. A “coisa” na contra-posição utensílio/obra remete para uma outra instância: a obra e a verdade. É na luz desta que a “coisa” aparece como “coisa”, pois é na luz que irradia do templo que a paisagem se torna paisagem. É na pintura de Van Gogh que a “coisa” tinta se torna cor. A “coisa” para chegar a ser coisa deve ser tomada por um princípio que lhe vem de fora, está em outro, para além e aquém da forma que recebe da própria physis, enquanto esta e aquela matéria: o mármore, a madeira, a tinta, a sonoridade, o movimento e gesto, a palavra etc. Porém, tal princípio não está ao lado da physis, integra-a essencialmente, pois seria um absurdo pensar algo que a própria physis já não contivesse. O princípio que a coisa matéria recebe de outro e a leva a ser tanto obra quanto utensílio é o advir à verdade na unidade da linguagem que lhe dá a dimensão de sentido e verdade. Sem linguagem não há verdade. Sem verdade não há linguagem. Verdade é sentido vigorando. Sentido é a linguagem se fazendo verdade. Na obra de arte a “coisa” chega à sua verdade, à manifestação de sua plenitude, àquilo que é. Todo é só é na unidade da linguagem ao trazê-lo ao sentido. É a linguagem que reúne a matéria e o sentido que tanto o utensílio quanto a obra de arte manifestam e manifestam pelo poder da luz enquanto energia irradiante. Nós não vemos “coisas”, vemos o sentido em que elas acontecem. Quando elas são reduzidas, pela causalidade, a mera disponibilidade funcional, então a coisa se retrai naquilo que é e se nega a nos acompanhar e fazer presença em sua riqueza. Dessa maneira, o ser humano se isola em si, em meio a um mundo de objetos, onde ele mesmo tende a se reduzir a algo também disponível dentro do sistema funcional e finalista, a que se reduziu a realidade. Eis a questão da pós-modernidade, que não pode ser a pós-metafísica, mas um dos seus desdobramentos.
A globalização não é algo que possamos renegar e dizer que não existe. A questão é o que fazermos com seu vigorar histórico para que saibamos o que ela pode ou não fazer conosco. Os caminhos da dominante funcionalidade devem encontrar no pensar a sua mais forte resistência e questionamento, afirmação do que não cessa de vigorar como o próprio do pensar e do ser. Diante de um pensamento que calcula só nos resta contrapor-lhe de dentro da próprio domínio do cálculo a abertura que nega o domínio único da funcionalidade, a proclamação poética da não-função. Só assim a pós-modernidade encontra o seu caminho de possibilidade de mais uma dimensão de sua realização. Metafísica, compreendida em seu sentido originário, é dobra e jamais um jogo excludente do duplo.

A verdade da utilidade do utensílio é facilmente apreensível, tanto mais quanto a coisa nela desaparece e tanto mais quanto menos se faz presente. Para “saber” (a coisa enquanto sabor) a coisa temos que diferenciar utensílio e obra. Mas esta se diferencia pela sua verdade, que é, afinal, a verdade da “coisa”. O utensílio se torna utensílio já dentro das possibilidades que a obra de arte abriu para a “coisa”, mas então tais possibilidades são reduzidas à funcionalidade, à verdade causal, onde esta verdade é determinada pelo verdadeiro dentro dos parâmetros que o sistema impõe como realidade. É a verdade por adequação a uma idéia prévia que não deixa a coisa ser o que é. Então a coisa se retrai para deixar aparecer a verdade causal. É nesse retrair-se que advém na obra de arte toda a sua possibilidade de ser sempre contemporânea. É isso que a distingue do utensílio e da obra voltada simplesmente para uma utilidade, seja ideológica, seja estética. Ideologias mudam e, como hoje, caminham para um ocaso irreversível. Gostos estéticos são como moda, mudam, pois são modos de a mudança pela mudança ter a sua hora e vez. Se a mudança é o próprio de toda realidade, a fonte de sua mudança não pode se reduzir a uma mudança. A mudança para poder ser mudança tem de vigorar no não-causal, assim como toda fala tem de vigorar no silêncio, assim como todo vivente (bios) tem de vigorar na vida (zoé). Esta é a dobra poética. Toda dobra é um acontecer apropriante da unidade, da linguagem.

Mas o que é a verdade para que a coisa se manifeste na obra?
O segundo núcleo do ensaio vai pensar a obra enquanto verdade. De novo as variações das definições metafísicas se dão na medida e na proporção em que lhe são inerentes uma figura de verdade: a da metafísica. Estudar esta tensão entre verdade metafísica e verdade não metafísica não é uma maneira de conhecer a própria metafísica e o que lhe é próprio? A obra vai aparecer como manifestação da verdade na medida em que o próprio da verdade é a manifestação. Não há, pois, a obra e a manifestação, mas a obra como verdade manifestativa. Comparece a coisa não mais como forma, mas como Gestalt manifestativa. Nesta Gerstalt se articulam não mais tensionalmente matéria e forma, mas Terra e Mundo como Streit, combate ou diálogo tensional, criativo e ambíguo.

A obra não é algo em si. Ela aparece na tensão “coisa”/arte. Mas o que pensar aqui como arte? A tradução ocidental metafísica esqueceu o vigor da sua origem nos seus enquadramentos. Traduziu e traiu sem atrair o que se retrai. Arte traduz a techné grega. Mas o que é techné? Esta na tradição e na tradução passou a ser definida pela verdade. Mas que verdade? O terceiro momento do círculo traz para cena a questão da verdade como surgindo do agir. Poiesis e techné aí comparecem interligados. A techné não é um saber técnico produtor de formas e objetos. Poiesis e techné trazem para cena o artista e o intérprete agenciados pelo operar da verdade da arte na obra. Nesse agenciar, o artista e o pensador aparecem e se manifestam no que são como vigias do ser da arte na obra como verdade. A obra não é uma coisa, um objeto, um organismo, passível de uma análise como telos de um princípio, pois análise só pode atingir e explicar finalidades causais de algo dentro de um sistema, em virtude do qual o objeto realiza a causa final. Esta é prévia à própria escolha do material, porém é dentro do princípio causal como verdade da realidade que se estabelece e determina a finalidade. A arte não depende jamais do princípio causal, ela é a própria realidade se dando e acontecendo em sua verdade. Isto é o mais difícil de compreender e aceitar para quem se calca e decalca na metafísica causal como sendo a realidade. Essa dificuldade é de quem se encasula no estreito princípio metafísico da causalidade, não da arte, não da realidade, não do poeta pensador e do pensador poeta. Os que se guiam pelo princípio causal ficam aprisionados em virtude dessa mesma causalidade no campo dos entes, onde agir é produzir entes e relações entre entes ou na língua em suas relações causais de emissor e receptor, num jogo sempre complementar. Por isso mesmo, a não ser retoricamente, jamais podem deixar o silêncio vigorar. Em relação ao silêncio não pode haver complementaridade nem relações causais e funcionais. Não se pode determinar coesão e coerência. O Silêncio é sem causa, sem finalidade e sem complementaridade. Por isso mesmo o silêncio é a mãe de todas as línguas, ou seja, a linguagem é a mãe de todas as línguas. Em relação às manifestações artísticas nunca há linguagens artísticas, pois todas vigoram no operar da linguagem. Há, sim, diferentes matérias como princípio de criação sendo inseminadas pela luz que é a linguagem e agenciadas pela techne. A matéria (e suas propriedades) nunca traz em si esse princípio, está em outro. Um bloco de mármore ainda não é uma estátua de um grande artista. Um outro princípio realiza a estátua, passando a ter propriedades próprias e diferentes das propriedades do mármore. Esse outro princípio de constituição das obras de arte vigem na obra e a iluminam. Todas as obras de arte partem da luz e chegam à luz quando são obras de arte. Daí o seu poder de iluminação. Por luz não se entende apenas a claridade nem a luminosidade, mas também a própria sombra e escuridão. Aqui, sim, noite e dia respiram a vida complementar, mas não há dia e noite sem o vigorar da luz. Portanto, a linguagem ou luz é a energia irradiante e acontecente em que a realidade se dá a ver, a conhecer, a experienciar, em dimensões que a matéria mármore por si mesma não realiza.

Porém, esse dar-se é um resguardar-se e retrair-se em seu poder e querer iluminante. O dia e a noite mostram a face complementar do tempo-luz em sua cronologia, mas esta não acontece senão no retrair-se da noite no dia e do dia na noite, onde sempre vigora no fenomenolizar-se o resguardar-se no velado do silêncio fundante. Só a arte, só a luz liberta porque é o próprio acontecer na verdade da não-verdade. A não-verdade é aquela manifestação da realidade (silêncio) jamais redutível à causalidade. Contudo, é importante agora afirmar algo não muito simples: a verdade de cada coisa e de cada explicação causal só é possível porque de antemão a “coisa” já apareceu como coisa na luz da não-verdade, da não-causalidade. É que não há nem pode haver uma realidade dividida em duas, num duplo: a não-causal e a causal. Há e sempre houve uma dobra, onde se desdobra sempre inauguralmente a realidade num manifestar-se e num velar-se. Acontece que podemos só ter olhos para o que se vê, que é sempre de uma grande riqueza. E podemos ficar encantados com as relações possíveis entre tudo que já está aí manifesto. A grande questão que se coloca é o ficar restrito e preso a essas relações, isto é, à causalidade. Isso ainda é facilitado porque a realidade se dá a conhecer de muitas maneiras, porque o sendo do ser se diz de muitas maneiras. E podemos ficar restrito a esse conhecer. São os perigos inerentes á nossa condição de seres finitos e não-finitos. Nem todo olhar nos dá a ver tudo que se dá a ver. Então o limite não é da realidade, é de quem olha e não vê, de quem conceitua e não se abre para as questões. Até porque esse abrir-se não é causal, é não-causal. E seu acontecer está inscrito na Lei que nos rege: nossa moira, nosso destino, que é nossa identidade. Como Lei e moira somos regidos pela necessidade. Por isso afirmou Ésquilo: “A necessidade pode mais do que o conhecer”. E ainda bem, caso contrário ficaríamos dependentes de uma época, de um sistema, de um ideal, de uma religião, de uma ideologia, de uma cultura, de um líder, de um deus. Todo horizonte de possibilidades enquanto a necessidade e a medida fundam-se no mistério que é a realidade. E o que é o mistério? “Mistério remete, em toda experiência, para o que se diz e reconhece fora das possibilidades de ser, conhecer e dizer. Para se dar e acontecer mistério é indispensável morar e descobrir-se no âmbito da Linguagem” (Leão: 2007, 33).

A verdade só opera como obra na medida em que artistas e pensadores e intérpretes e leitores desvelam amorosamente o operar da verdade da obra. Nisso consiste a arte como poiesis e techné. Mas o que se desvela no operar do pensador e do artista e no interpretar do intérprete e do leitor? A “coisa”, mas não mais a coisa/suporte metafísico. A “coisa” se manifesta na medida em que se desvela como arte na verdade do ser da obra. Não há uma definição, mas o circular do círculo. Com isto voltamos ao início e se conclui e inicia o círculo. O ensaio de Heidegger se finda como começou. E o que faz vigorar este círculo? O pensar originário, onde pensar não é algo que vem de fora do próprio vigorar do princípio, mas a referência de essência do ser humano e ser. Em tal referência o ser se torna linguagem e a referenciação é referenciação pelo princípio da poiesis, pelo qual todo não ser advém ao ser, mas é advir poético onde a própria referência de essência do ser humano e ser advêm e se manifestam enquanto linguagem. Advir à linguagem é advir ao sentido.

A conclusão do ensaio de Heidegger vai fazer uma reflexão sobre o círculo para concluir/abrir que a arte é um enigma (mistério) de que as reflexões assim como as obras são um indicar e operar de tal enigma. O enigma da arte ao mesmo tempo que se dá se retira, nos trai enquanto se retrai. Este é o vigor do círculo, do princípio originário (Ursprung). Este é o vigor da História (não linear nem causal). Este é o vigor da arte. O tema da morte da arte só pode aparecer numa teleologia causal e linear, seja cronológica, seja dialética, porque o telos parte de uma definição de coisa e verdade onde a obra opera a sua representação como manifestação da idéia absoluta ou outro qualquer telos, inclusive o da morte. Por que o século da ciência levou a uma postura niilista e amoral, melhor, a-ética? Por que a pós-modernidade aparece como o vazio da falta de posição, do fim das grandes narrativas e, no entanto, da abundância de saberes banais e descartáveis, onde a arte tem sua crise, não porque deixe de ser feita, mas porque é tão descartável quanto qualquer outro pro-duto? Esse pós- não pode simplesmente continuar a indicar o fim da arte como a arte do fim da modernidade. Será apenas mais um passo do descompasso da metafísica, e não do vigor que deu origem à metafísica. A conclusão não conclui, pelo contrário procura re-instalar a abertura do que a vida nos convida a viver, não como uma opção nossa, mas como necessidade. Só se vive se este viver for dimensionado pela necessidade de criar, de não cessar de fazer travessias, enfim, navegar. A arte como vivência pode nos manter tão afastados do vigor da questão da arte como o seu lado in-verso, a morte da arte. Neste per-curso paira como desafio o ser da paidéia. Ou qual novos quixotes continuaremos a combater os moinhos de vento da literatura engajada ou a nos engajar na estetização da arte? Ou sociais ou individuais? Caras alternativas metafísicas? Qual a paidéia apropriada ao próprio do homem? Qual a paidéia do ser do homem? Nesta questão se identifica a questão do ser da arte. Se chegou ao fim a Bildung iluminista e com ela o fim das ideologias, isso não quer dizer que não há mais alternativa para uma Paidéia. Há, mas que liberte para o essencial, longe e avessa a toda e qualquer causalidade e finalidade, de onde surge a redução da educação do ser humano à funcionalidade. Esta funcionalidade domina de tal maneira os estudos culturais que eles, na ansiedade pelo conhecimento aplicado tornam-se formatadores de mentes e corações. Caeiro já disse: são as tintas com que nos pintam os sentidos. Na ansiedade de intervirem e formatarem a realidade não notam que é ela que nos plasma desde que saibamos responder e corresponder àquilo que ela é no não cessar de se dar. Como? Deixando acontecer a libertação. Realizar-se é libertar-se, não para um sistema e dentro de um sistema, mas para aquilo que somos.

A arte nos instala na própria de-cisão da paidéia e não como uma via de acesso semelhante a outras de que de vez em quando se pode lançar mão. Nunca um pensamento desceu tão fundo no enigma da arte, porque nunca um pensamento desceu tão fundo no enigma do homem como Linguagem do ser. Esse descer fundo não é nem se pode tornar um modelo. No pensar nunca pode haver modelos nem cânones, nem paradigmas, nem sistemas ideais, nem ideologias salvacionistas. Há e sempre haverá o desafio e a disciplina de pensar, de não cessar de aprender a pensar. Como disse Caeiro “pensar é amar” e é amar porque só o Amor liberta.

As grandes obras dos grandes poetas e dos grandes pensadores estão aí para serem desveladas com desvelo maternal. Não é este o melhor modo de preservar a riquíssima tradição e acervo do cultura ocidental? Não estudá-las como passado de formas ou coisa semelhante, mas como a vida experienciada como Linguagem do Ser e seus autores como atores nossos contemporâneos. Quando os intérpretes deixarão simplesmente de ser “visitadores” de museus como depósito de obras? Quando os “museus” levarão a sério a palavra poética da música, para que se levem a sério como museu? O problema não é do museu nem das musas. Onde está o problema? As vias de acesso não estão nas falas das teorias como protótipos de falsas práticas. As correntes críticas se sucedem umas às outras e esquecem o essencial: na obra a fala da obra. O alarido e falatório das teorias se sobre-põem à fala das obras, em novas e contínuas falas. E a obra se retrai e contrai esperando que sejamos atraídos pelo que nos fala e não pelo que queremos e podemos sempre falar. É preciso escutar as obras. Este apelo à escuta nos vem não de mais uma teoria, mas tem que nos advir do próprio operar da verdade da obra de arte. Cada dia e cada noite é a oportunidade única e sempre igual de re-inventar o mundo. Há um velho e sábio adágio que diz: mostra-me com quem andas e dir-te-ei quem és. Isso ocorre com a interpretação. Esta pode ser entendida e praticada como análise ou, num abrir-se para a obra, como com-preensão, onde o com-preender é um deixar-se prender no diálogo pelo que prende e agarra: o princípio. Prender diz deixar-se tomar pelo afeto, pelo que é nossa energia de realização. Num procedimento dominado pelas análises, a fortuna crítica de um autor ou de uma obra ainda parece o melhor caminho para o seu conhecimento. Nesse sentido, é necessário em primeiro lugar dominar a bibliografia principal, pensa-se, ensina-se, exige-se. Este exercício crítico nem sempre é escolhido e acolhido pelos próprios poetas. A distância que impera hoje na academia entre as teorias críticas (pseudo) e as obras poéticas é alarmante. O domínio da epistemologia é quase absoluto e o poético é quase como regra ignorado e incompreendido. Por isso, a boa companhia de um Jorge Luis Borges me ajuda a valorizar mais a interpretação como desvelo afetuoso, como a escuta da fala do silêncio da obra, do que como o conhecimento das análises feitas pelas correntes críticas, formais e ideológicas.

Diz ele no seu ensaio “Poesia”, do livro Sete noites:

Podemos chegar ao conceito de que a poesia é a experiência estética [poética]: algo assim como uma revolução no ensino da poesia.
Fui professor de literatura inglesa na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires e tentei prescindir, na medida do possível, da história da literatura. Quando meus alunos me pediam bibliografia, eu lhes dizia: “A bibliografia não importa; afinal, Shakespeare não soube nada de bibliografia shakespeariana”. Johnson não pôde prever os livros que seriam escritos sobre ele. “Por que não estudam diretamente os textos? Se esses textos lhes agradam, muito que bem; e se não lhes agradam, abandonem a leitura, já que a idéia de leitura obrigatória é uma idéia absurda: seria o mesmo que falar em felicidade obrigatória...
Lecionei assim, atendo-me ao fato estético [poético, pois ele é poeta e não esteta], que não requer definição. O fato estético [poético] é algo tão evidente, tão imediato, tão indefinível quanto o amor, o saber da fruta, a água. Sentimos a poesia como sentimos a proximidade de uma mulher, ou como sentimos uma montanha ou uma baía.” (p. 288).

Compreendamos o que o poeta nos leva a pensar. Sentir proximidade não é necessariamente tocar pelos sentidos e advir alguma sensação. Sentir proximidade advém muito mais pela presença. Sentimos, sem dúvida, a presença de uma mulher, de um por de sol, de uma montanha num lusco-fusco de final de tarde ou no amanhecer fulgurante da vida acordando e acordando-se em nós. Isso é o ritmo em que se nos dá a a ver e sentir a realidade, na luz irradiante das obras de arte. Em realidade as obras da realidade na luz das obras de arte não têm formas. São presença.

A boa companhia ajuda a pensar melhor o afeto que há em todo desvelo. Disso não se conclui que a bibliografia shakespeariana seja inútil. Aqui acrescentaria aos comentários do poeta que a obra de Shakespeare (e Shakespeare é Shakespeare pela obra) está à espera do desvelo dos leitores e intérpretes, não para se repetirem uns aos outros nem para mostrar a “riqueza” da fortuna crítica, mas para pro-vocar o operar da verdade da fala da obra em novas manifestações, fazendo dos intérpretes o que eles são: seres da verdade da obra. A verdade da manifestação interpretativa é co-irmã da verdade manifestativa da própria obra, ou melhor, é nesse operar manifestativo que a obra chega a ser obra e o homem a ser homem. Tal interpretação não é a soma e o acréscimo de novas interpretações, mas a realidade se realizando enquanto o seu desvelar histórico no homem. Isto cabe à arte, não como finalidade ou tarefa, mas como o próprio doar-se da realidade. Este poder manifestativo da interpretação do desvelo afetivo me lembra outro ensaio de Borges. Chama-se: “Kafka y sus precursores”. E faz parte do livro Otras inquisiones (1952), p.710-712. Buenos Aires: Emecé, 1974. Depois de citar diversas obras de povos e épocas diferentes, e até “...la paradoja de Zenón contra el movimiento”, e até um autor chinês do século IX, diz Borges:

Si no me equivoco, las heterogéneas piezas que he enumerado se parecem a Kafka; si no me equivoco, no todas se parecen entre sí. Este último echo es el más significativo. En cada uno de esos textos está la idiosincrasia de Kafka, en grado mayor o menor, pero si Kafka no hubiera escrito, no la percibiríamos; vale decir, no existiria, p.711.

O tempo linear e causal aqui não conta. O operar da verdade da obra cria, no sentido de manifestar, o próprio tempo, o tempo que lhe é próprio, o não-causal, porque não há dois tempos, o da arte e de fora da arte. O tempo é sempre uma dobra, daí toda obra poética ser sempre contemporânea. A separação decorre da postura causalista metafísica da tradição ocidental. Ao tempo do desvelo afetuoso vigorando na escuta de cada leitor, que é sempre contemporâneo e atual, chamaram os gregos kairós. Este é o presente enquanto o instante que brilha no passado fundando a eclosão de futuro.
O tema da paidéia não apareceu com a metafísica, embora esta lhe tenha dado uma nova direção, porque fez dele o centro da questão, questão que, contraditoriamente, gerou o seu esquecimento, porque Homero inventou e educou a Grécia, e a metafísica procurou esquecer Homero. Ainda bem que não conseguiu. A cada ocaso/ocidente cor-responde o apelo de um novo nascer/oriente. E não se trata de uma dis-posição geográfica e histórica, mas de uma abertura para o eclodir da luz da clareira da poiesis e do acontecer apropriante do pensamento.

O per-curso metafísico da paidéia se fez dentro de uma mesma questão: o homem. Por isso entre os romanos, herdeiros legais da paidéia grega, a paidéia se tornou, no per-curso sempre reproblematizado da metafísica, humanismo. O helenismo greco-romano se torna com o cristianismo a nova versão da paidéia. Mas como ler o cristianismo sem a leitura da “coisa” pelas novas vias e avios de Agostinho e Tomás de Aquino? Eles introduzem definitivamente na paidéia ocidental a nova dimensão do agir/poiein dentro do princípio da criação. O princípio se torna Deus e o ente, criação. O Logos grego se torna o Logos divino. O criar humano – todo agir humano - é aná-logo ao criar divino. Descartes vai inaugurar o Logos da modernidade (reduzido a razão/ração) que a tudo disponibiliza funcionalmente pela verdade da certeza subjetiva. Por um lado, continua a questão da criação, que será incorporado à reflexão sobre o artista, por outro, cada vez mais se centra no homem (razão). O homem moderno é um homem medieval renovado. A criação continua como pro-duto de um agir criativo, agora localizado na interpretação do Logos como um operar racional. Este novo operar faz da paidéia uma Bildung. Não se trata de uma simples moldura, mas da “coisa” como produto da representação, como um operar vigoroso da essência do agir localizado e produzido pela razão, que a tudo ilumina. Mas a luz não é a clareira. Esta é a via e a contradição da metafísica. Este é o des-vio e en-vio da obra de arte. Não deixa de ser sintomárico que a um Édipo, a uma Antígone, a um Prometeu suceda um Quixote, uma Ema Bovary, uma Capitu, que não são personagens ficcionais, as questões humanas ficcionalizadas. A eles corresponde a realidade vigorante das questões. Tais obras e seus personagens se tornam questões que nos provocam em sua profundidade e desafio de compreensão. Ler tais obras como questões é mergulhar no que somos pelo questionar-se. Então o poético consiste sempre nesse mergulho no que somos como projeto e destino enigmático de realização. Isso é o poético, onde o conhecer não se torna epistemológico, mas ontológico, porque o essencial não é conhecer pelo conhecer, porém, chegar a ser o que se conhece.
Contudo, a simplicidade do MESMO com-parece na fala da escuta das obras dos poetas e pensadores. A fala da escuta nunca deixa de acompanhar os companheiros de jornada, os que afetivamente desvelam a verdade na obra de arte: a não-verdade da arte. Entre a verdade da obra e a não-verdade da arte há uma dobra, a dobra da liminaridade do humano.

Mostrando que a questão da paidéia não é algo que possa acontecer à poesia sim ou não, João Cabral de Melo Neto escreveu a obra A educação pela pedra (1962-1965). O que o poeta nos quer fazer pensar com essa palavra educação? Educação é o nome de uma disciplina entre outras em que o saber científico e epistemológico se fragmentou, fragmentando a realidade. Mas para a poética educação diz algo poético. Esse saber metafísico originário, e por isso poético, está na base teórica do que desde tempos muito antigos se chamou paidéia e de tempos ainda mais antigos se chamou e chama poiesis/mythos/logos: é a palavra poética manifestativa. Mas o que tem a paidéia a ver com a educação e a educação a ver com a poesia?
O pensar classificatório da metafísica leva ao clichê simples e banal de incluir o pensar que Heidegger nos propõe em mais uma teoria. Um teoria ao lado das outras. E por que não? Ou seria dele a única teoria certa? Outro clichê metafísico: a certeza da verdade que busca a teoria certa. Este foi o per-curso de Descartes e, com ele, da modernidade: as idéias claras e distintas. Mas há também o Descartes pensador, o da dúvida metódica, o de alguém que procura a VERDADE. Heidegger não propõe teoria nenhuma: re-pensa o vigor da origem da metafísica, para nos deixar essencialmente livres, uma liberdade que só nos advém pela arte e pelo pensamento, enquanto algo essencial. Heidegger não nos propõe uma nova teoria, convida-nos a pensar o que é digno de ser pensado. O difícil em Heidegger não é compreendê-lo, é pensar, para que a metafísica e suas teorias racionais e crítico-epistemológicas não pensem por nós. Heidegger é simples como a poesia é simples. Por isso, quando sai do diálogo com a metafísica, e nisso é que é difícil, pois temos que nos desautomatizar, ele busca a companhia dos poetas. Ora, esse é também o convite dos poetas: abrirmo-nos para o que é digno de ser experienciado como poesia. É para esta experienciação do desvelo afetivo que nos remete o último poema do livro de João Cabral, que sintomaticamente nomeou, como já assinalado A educação pela pedra. O título, nesta reflexão, merece a glosa: A educação pela coisa, A educação pelo poético. Como num círculo poético, no qual o fim está no princípio, ele intitulou o poema:

Para a feira do livro

Folheada, a folha de um livro retoma
o lânguido e vegetal da folha folha,
e um livro se folheia ou se desfolha
como sob o vento a árvore que o doa;
folheada, a folha de um livro repete
fricativas e labiais de ventos antigos,
e nada finge vento em folha de árvore
melhor do que vento em folha de livro.
Todavia a folha, na árvore do livro,
mais do que imita o vento, profere-o:
a palavra nele urge a voz, que é vento,
ou ventania varrendo o podre a zero.

*

Silencioso: quer fechado ou aberto,
inclusive o que grita dentro; anônimo:
só expõe o lombo, posto na estante,
que apaga em pardo todos os lombos;
modesto: só se abre se alguém o abre,
e tanto o oposto do quadro na parede,
aberto a vida toda, quanto da música,
viva apenas enquanto voam suas redes.
Mas apesar disso e apesar de paciente
(deixa-se ler onde queiram), severo:
exige que lhe extraiam, o interroguem;
e jamais exala: fechado, mesmo aberto.

O poema da obra poética de João Cabral a que exigência e referência nos convida com a poesia de toda obra poética? O título já nos introduz, pela ambigüidade poética da palavra “feira”, naquilo que é digno de ser pensado: o diálogo de compra e venda, de dar e receber, de se fazer da interpretação uma especulação de preços. Mas qual o valor da moeda poética a ser especulado e trocado? É o livro/obra como valor: o ethos.

Há três grandes momentos no poema: o livro/obra como manifestação da “coisa”: “Todavia a folha, na árvore do livro”. A obra manifesta a árvore como árvore e a folha como folha na árvore do livro. Árvore diz o brotar da terra e elevar-se ao livre aberto do céu. Esta manifestação não se pode dar sem a voz/linguagem: nela e por ela o vento se torna linguagem: “mais do que imita o vento, profere-o”. Nada se imita nem se representa. No poema da poesia a realidade manifesta-se na re-ferência ao logos: “a palavra nela [árvore do livro] urge a voz, que é vento”. O vento é própria luz do espírito que sopra onde quer, é a linguagem operando em toda língua. E só o vento, energia da luz, se faz voz poética. A fala da voz é o ser/coisa da obra/livro/folha: como obra opera a manifestação: “...ventania varrendo o podre a zero”. A linguagem como Logos põe e depõe, dispõe e propõe. Por isso é a linguagem da verdade do livro. O zero, que não é, é a partir dele que o ente se manifesta. Uma manifestação aparece como aparência, que pode apodrecer – ser deposta - e ser reduzido a nada, a zero. A folha que manifesta é dobra de voz e silêncio, algo que é e, por isso, apodrece, e não é, pois ciclicamente retoma sua origem, isto é, se desfaz em zero.

O livro/obra e a voz/zero nos conduzem para o próprio do livro, a terceira di-mensão em que se estrutura o poema: os atributos da obra/livro: silencioso, anônimo, modesto, paciente, severo, fechado, aberto. Nesta tensão ambígua de atração e retração exige que o “extraiam, o interroguem”. Saber e não-saber, falar e escutar. Nisto consiste o diálogo amoroso/afetivo de todo desvelo poético: o abrir-se para o operar da verdade da obra, o abrir-se para a frequentação da feira do livro. A poética como paidéia não pode vir de fora da própria poesia. Uma paidéia será tanto mais paidéia quanto mais for poética. Ela convida à escuta, a ouvir a voz do silêncio. Nela e por ela o homem se dimensiona como homem no operar da Paidéia poética. Nela e por ela o homem se liberta: uma educação pela pedra/coisa, pela arte: coisa/arte, arte/coisa: o círculo virtuoso: a paidéia poética: a abertura do homem para seu ser: dura e consistente como a pedra/coisa/linguagem/poiesis. Mas no jogo/luta ambígua do atrair e do retrair “exige que lhe ex-traiam, o interroguem”. Este é o enigma da arte, da paidéia poética, que só fala a quem se abre para a escuta da voz do silêncio, ao se deixar arrastar, atracionar para o aberto da liberdade, advinda em todo nosso questionar e como questionar, dando-se no incessante interrogar poético. Nossa travessia. Nossa educação pela pedra.



Bibliografia

HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. São Paulo: Edições 70, 2010. Edição bilíngüe. Tradução: Manuel Antônio de Castro e Idalina Azevedo da Silva.