14 julho 2013

Metafísica e pensamento poético



O idioma é a única porta para o infinito, mas infelizmente está oculto sob montanhas de cinzas.

                                               João Guimarães Rosa


            Metafísica é uma palavra muito usada na cultura ocidental, mas enigmática em sua origem e nos seus múltiplos significados e desdobramentos. Ela é um exemplo perfeito do poder da verdade em desvelar e velar. E jamais pode ser reduzida ao caminho único da verdade da Lógica, hoje dominante na teologia, na filosofia e na ciência. Muitas vezes, quanto mais estas a querem negar, mais a firmam, porque mais ainda se servem do seu vocabulário dominante.  É uma vingança silenciosa da physis, porque a Lógica a pressupõe e não há como omiti-la, silenciá-la.

A palavra metafísica compõe-se do prefixo metá-  e de physis. No prefixo metá- temos a presença aberta da própria verdade e não-verdade enquanto aletheia, inerente à physis. Metá- diz, o para, o entre. Se o primeiro significado do metá- dá origem à metafísica causalista, onde o para,  como finalidade, determina o próprio vigorar da physis como sujeito causal de alguma consequência, no jogo de agente e paciente, já o significado “entre” assinala um lugar de abertura abismal e sem fundamento, sem sujeito, ao mesmo tempo em que, enquanto hiância ou hiato, inter-relaciona e faz presente a própria physis em seu dar-se e retrair-se, isto é, na unidade da dobra em que não cessa de desdobrar-se e jamais se fecha, se conclui.  Isto é a sua a-letheia. E nela e por ela acontece o surgimento do sendo que denominamos ser humano. Este é originariamente um Entre-ser, ou seja, um sendo da physis, movendo-se no livre aberto do entre, da hiância criativa da physis. É com esta abertura, esta hiância do entre, que se dá a referência de Essência do ser humano e do Ser.  Na vigência da língua grega, essencialmente, o ser-humano é um sendo meta-físico.

            Sob o domínio do logos, compreendido e definido racionalmente pela verdade da Lógica, o entendimento da metafísica do fundamento causalista (su-jeito), na trajetória ocidental, reduziu-se a dois encaminhamentos aparentemente excludentes entre si, embora complementares, na prática. Há neles um domínio do essencialismo lógico e esquecimento da essência ontológica. São, portanto, limitados e enganadores, ainda que se tenham tornado estereótipos lógico-científicos da verdade. Fundamentada no lógico-matemático e sua precisão, a ciência se apresenta como sendo a própria verdade, única e excludente. Ela tem a pretensão de se tornar a medida pela qual tudo deve ser medido.  Porém, não passa da verdade enquanto representação. A essência da verdade lógico-metafísica é a representação.  É nesse sentido que há hoje uma tendência quase absoluta ao virtual, isto é, à representação (criadora de um mundo estético e indolor), uma vez que a realidade digital é dócil e obediente ao modelo e não admite jamais o inesperado (Se não se espera, não se encontra o inesperado, sendo sem caminho de encontro nem vias de acesso. Heráclito: 18). No virtual da representação lógica tudo já está programado. A estética como lógica da representação das vivências impera na totalidade das teorias sobre a arte, de larga aceitação contemporânea. Na Modernidade a poética das obras de arte foi reduzida à Ciência estética ou ideológica de qualquer arte, especialmente da literatura. Tal domínio se tornou hoje quase inquestionável para tais teorias e correntes críticas, que gostam de reduzir o vigorar poético da palavra à expressão representativa e que tornam a poesia escrava dos meios comunicativos. Disso resulta uma certa idolatria do novo e do contemporâneo cronológico, como se o tempo poético se reduzisse ao datado e à última moda, onde o poeta-sujeito é mais importante que a obra poética. Há aí uma confusão entre novidade e novo. O humano é sempre novo, mas as produções circunstanciais não passam de novidades que não resistem ao tempo em seu acontecer poético. Nesse sentido, o contemporâneo poético será sempre o que escuta o apelo do tempo como sentido e cuidado do ser em seu destinar-se. E isso diz respeito à conjuntura histórico-dialética, que não depende do sujeito-poeta-autor, mas do apelo da poesia, que melhor seria denominada poiesis: essência da ação, energia irradiante. Bem que a Modernidade quis abolir o destino e é como seu próprio fracasso que o vê cada vez mais poderoso, embora lhe atribuam outros nomes. É uma tarefa tão inglória como querer acabar com a morte. O máximo que consegue é fazer do mortal um simulacro de si mesmo.  O poeta como autor tomou um lugar hipertrofiado na medida em que é identificado com o sujeito lógico-metafísico na era da Modernidade.

            Os dois lugares-comuns sobre o que seja a metafísica finalista dependem de traduções interpretativas do que seja o logos já dentro da verdade lógica. E são os seguintes: 1º. Metafísica como algo transcendente; 2º. Metafísica como algo imanente, porque lógica e científica.

            Partamos do evidente em si e por si já desde sempre vigente e experienciado inequivocamente por todos: o viver da Vida. Mas para o ser humano-vivente tão importante como o viver é procurar o motivo do viver, pois não apenas vive, mas existe. Eu, já vivendo, posso perguntar o que é a Vida (como perguntar se não estiver vivo? Não é o conhecimento que me permite viver. Sem este não há conhecer, embora o viver já traga em si a possibilidade de todo conhecer, na medida em que vivendo posso perguntar). Porém, não devemos confundir duas coisas: o viver com o verbo grego bionai e o perguntar com a pergunta e a resposta. Há o Viver do Dzen e há o questionar como abertura para poder perguntar. Não podemos separar Dzen (Viver) e questionar uma vez que o próprio acontecer do Dzen já é em si e por si o seu eclodir enquanto verdade, ou seja, em grego, lanthanomai e manthanomai. Ambos os verbos radicam na mesma raiz indo-europeia, com variação apenas da consoante “l” e “m”, dentro da raiz l/m/anth. São, portanto, indissociáveis. Se lanthanomai diz o que se vela e esquece, manthanomai diz o poder ensinar e aprender, que é o questionar enquanto o próprio eclodir da verdade, ou seja, o Dzen em seu sentido, linguagem e mundo. Por isso, em verdade, o radical é não o evidente como o que já se deu a ver, isto é, eclodiu (aleth), mas o que na eclosão se velou e esqueceu, ou seja, o seu já poder ser verdade enquanto sentido, linguagem e mundo. Se não há separação entre dzen e bionai, também não pode haver entre esquecer e lembrar, desvelar e velar, viver e questionar. Ao questionar inerente ao Viver (Dzen) é o que se denomina pensar. Questionamos ou pensamos para realizar as possibilidades que nos constituem, que dão consistência a cada próprio. Ao passo que ao viver enquanto bionai corresponde o conhecer. Se sem Dzen não há bionai, sem pensar não há conhecer. Mas não há nem pode haver aí uma separação, acontece apenas que o conhecer se torna uma possibilidade de compreensão no âmbito do bionai porque este já vigora no Dzen, isto é, no Ser que nos advém desde sempre como o próprio pensar, ou seja, lathanomai e manthanomai. Para melhor sermos tomados pela radicalidade do que seja acontecer, devemos ter em mente sempre a sentença 123 de Heráclito: Physis kryptestai philei / O eclodir do Viver apropria-se no velar e esquecer-se do que já eclodiu. Ou noutra tradução: Bionai apropria-se no Dzen. Ou noutra: Ser apropria-se no nadificar-se. Apropriar-se diz sempre o agir que é ser, ou seja, pensar-se enquanto verdade no dialetizar-se, pois verdade já implica necessariamente sentido, linguagem, mundo. É o destinar-se do sentido do Ser, do nadificar-se. A essência do nadificar-se enquanto aletheia é o dia-letizar-se de Dzen e bionai no destinar-se do sentido do Ser/Nada. O pensar já vigora na medida em que o ser humano é o que é. Pensar é ser as possibilidades de realizar-se que já desde sempre é: eis a dialética de verdade e aprendizagem. Parmênides assim a pensou dizendo: “...pois o mesmo é pensar e ser”.

            Por isso, é claro, é evidente e certo que nenhuma resposta pode dar conta do que seja o viver da Vida (Dzen) enquanto (tempo) questionar e pensar da Physis (Ser). Tempo é Ser. Para sair do impasse surgiu a metafísica e suas respostas padrões através da representação. A posição transcendente interpreta o logos como Deus criador, um Demiurgo transcendente. E fundou, para justificar logicamente essa resposta, a teo-logia. Outra coisa muito diferente é a vigência do sagrado em seu mistério, de que nós finitos-viventes necessitamos para existir e concretamente nos realizarmos. O mistério é onipresente e nada tem de transcendente ou imanente, porque não admite separação de nada, tudo nele já é. E não precisa ser nomeado, é só vivermos o sentido do Viver na mais completa e total diversidade. Nele não há separação entre o Uni- e as Versões do uni-versal. E nem criador pode ser nomeado, para não cairmos no causalismo excludente de uma fraternidade cósmica essencial.  Criador é o fundamento, o sujeito, o autor. A teo-logia dicotomiza o viver da Vida em duas instâncias separadas: o terreno/material e o celeste/espiritual, o sensível e o inteligível, o aparente e o verdadeiro. Daí surge a posição metafísica de transcendente, isto é, que transcende a  realidade vigente em que nos encontramos.  A posição imanente interpreta o logos (ratio/fala) como representação racional ou discursiva, e funda a epistemologia e suas disciplinas. É a ciência epistemológica voltada para o material com exclusão do espiritual, porque tudo é redutível ao racional. A esta redução de tudo ao racional, Kant denominou conhecimento transcendental. Este diz respeito a conhecimento racional e não a uma realidade que está além, que é transcendente espiritual e intelectualmente.  

Ambas as propostas teórico-metafísicas são causais. A causalidade surge através da proposta do sujeito/sub-iectum, ou em grego, hypo-keimenon. Neste e por este o agir é sempre do fundamento ou sujeito, nas diferentes interpretações dominadas pela Lógica. E a unidade mínima do enunciado verdadeiro é a pro-posição (krisis/juízo não moral ou ético, a não ser implicitamente como determinante de tudo o que pode ser aceito como verdadeiro. E todo verdadeiro é moralista, mas não e jamais ético ou poético). Todo ente, toda “coisa” da realidade (kata physin), seria composta de um núcleo em torno do qual se agregam as suas características, os atributos, as qualidades que lhe são próprias. O núcleo é o sujeito e as características são os predicativos. A estrutura da “coisa” seria equivalente à estrutura da proposição e esta àquela, num processo de verdade por adequação, onde quem mede é a Lógica. Esta é a representação em que surge o círculo vicioso, ainda que lógico e, portanto, verdadeiro: coisa é proposição e esta é coisa.

A adequação, homoiosis, em grego, ou semelhança, é questionável no sentido de que a proposição representacional  não pode anular o poder manifestador da verdade da palavra verbal. Fique claro, opôs-se o sujeito ao predicado/predicativo. E aquele se constitui no que sub-siste, sub-está, tornando-se o sujeito-substantivo. E tudo passa a ser visto a partir da proposição e esta a partir do substantivo-sujeito. O poder verbal fica subordinado àquele, na verdade propositiva. Por isso na proposição onde se julga a partir do que é, este é anulado e classificado como verbo de ligação, numa função meramente gramatical e jamais ontológica, verbal.  Quando, em verdade, é no poder verbal que tudo se concentra e sem o qual nem pode haver substantivo. E “ser” é o verbo de todos os verbos. Uma vez que pensar é ser, nele se concentra todo agir essencial. O ser humano só age essencialmente enquanto se deixa tomar pelo pensar, pois pensar é ser. No seu vigorar e discernir-se acontece a aletheia.

 Como verbo, esta palavra liga-se a Hermes, o deus que diz sempre a verdade, embora não diga toda a verdade. Daí ser mensageiro dos deuses e, enquanto verbo, a própria mensagem, não dele como sujeito-veículo comunicativo, porém enquanto palavra do sagrado, do Ser. A palavra logos, metafísica, sertão, eidos, acontecer, amar, desmedida, energia etc. etc. não precisam da proposição para terem em si o poder manifestativo da palavra verbal, ou seja, da verdade. Se tal acontecesse voltaríamos à substantivação.  Por isso, a Lógica parte sempre da proposição representativa como lugar da verdade e não mais do próprio vigorar e acontecer da physis. Não é difícil perceber o círculo vicioso das posições estereotipadas da metafísica tradicional e dominante, qual ranço indelével do jargão com o qual as correntes críticas e as teorias nos encobrem o acontecer verbal do Viver (Dzen), numa evidente preguiça e incompetência de se abrir para o pensar.  

            A metafísica imanente para explicar, lógica e causalmente, o que é o viver da Vida, criou duas disciplinas básicas interligadas epistemológica e cientificamente: a Bio-logia e a Genética. As teorias e propostas dos conhecimentos disciplinares tornaram-se mais importantes do que a questão: o que é o viver da Vida e sua proveniência. É isso a metafísica lógico-causalista. Nesta, o sentido e mistério do viver da Vida fica esquecido e abolido, não sendo, portanto, possível nenhum valor, nem ético, nem poético. Metafísica, então, é teoria transformada em conceitos. O pensamento poético do sentido do viver a Vida é questão, porque acontece no questionar do pensar do ser. O conceito exclui as diferenças. As questões nunca excluem nada e não podem ser reduzidas a objetos, sujeitos, análises e explicações causais. Os conceitos falam através das e sobre as experiências. As questões acontecem nas e com as experienciações. Não são os sujeitos que têm as questões. Estas é que nos têm. Viver é navegar sempre nelas e com elas no e a caminho da linguagem. São elas que descortinam o horizonte do sentido e cuidado do viver da Vida. Na proposta científica, o viver da Vida, como fenômeno em viventes, se torna o objeto de pesquisas que procuram trazer o desconhecido para o conhecido, através de conhecimentos objetivos, precisos, lógicos, portanto, verdadeiros. A explicação causal e lógica se centraliza na tarefa de reduzir o desconhecido ao conhecido, ainda que em conceitos universais abstratos, válidos enquanto valerem os resultados de tais teorias e experiências. A lógica se basta como a verdade. Tudo que não for lógico será necessariamente i-lógico, falso. Na lógica não há lugar para a astúcia, a artimanha, para Ulisses, Hermes. Contudo, o nada e o não-ser não são lógicos nem ilógicos. E como nos afirma o poeta-pensador Rosa: “Tudo é e não é”.  Como trazer o nada para o que é? Aqui poderíamos lembrar a afirmação de Rosa no conto “O espelho”: “Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo”. A epifania do milagre que não se vê jamais pode ser lógica. E, no entanto, é verdadeira, real, experiencial. Se tecnicamente fixamos o instante de uma paisagem ou de alguém, o que não cessa de acontecer não pode ser fixado, tal a riqueza da physis. Por isso mesmo, do que olhamos vemos muito pouco e do que não se dá a ver, esse cai no esquecimento, embora como esquecimento da memória seja a possibilidade inesgotável do novo.

Na proposta do pensamento poético, o viver da Vida não é somente um fenômeno. É uma questão. Em vista disso os mitos são narrações de questões. E toda a nossa ação e tarefa consiste em fazer emergir, no já conhecido e nas respostas já dadas a propósito do viver da Vida, o seu sentido e mistério, que se dá num jogo de desvelamento e velamento. Por isso, o desafio da Poética é a constante caminhada de conduzir o vivente (bios/bionai) para o viver da Vida (dzen/Dzoé), ou seja, para a sua proveniência originária e deixar-se tomar, agarrar por ela. É o seu concretizar-se a partir do princípio, que rege, num círculo poético, o ser presença constante de uma ausência que nunca se esgota. E por não se esgotar o princípio poético em que vigora a verdade do viver da Vida, todo vivente (bios) é uma patência do seu acontecer enquanto latência (Dzoé).

O ser humano é um vivente e, portanto, não é o viver da Vida, uma vez que ele é finito e mortal. O mesmo não se pode dizer do viver da Vida. Trata-se então, na dificílima tarefa do pensamento poético, de nos deixarmos tomar pela não-finitude e pelo saber do sentido da finitude e da morte, pois esta aparece como a própria essência da finitude, essência que sem a não-finitude é impensável. Sem o horizonte do não-finito não há nem como perceber e ver o finito. Desse saber que acontece como experienciação de pensamento nos advém a impossibilidade de qualquer separação metafísica entre finitude e não-finitude, entre vivente e viver da Vida, ainda que dados e manifestados como verdade de uma hiância, fonte inesgotável de toda criação. É o misterioso saber do ver poético da coruja que olha e vê na escuridão o que ainda não adveio (desvelamento) e nem inteiramente advirá à claridade da clareira. Nenhuma fala fala tudo, nenhuma escuta escuta tudo, nenhum conhecimento conhece tudo. Nenhuma sendo é tudo. Pois como afirma Rosa: Tudo é e não é. É o jogo de desvelamento e velamento da aletheia da Physis/Dzen.  

            O poético move-se na arché, ou seja, no princípio. Este é o deixar-se tomar  circularmente e na unidade das diferenças pela luz originária da aletheia: o viver da Vida se manifestando em sua verdade. Sua, do viver da Vida, e não do sujeito metafísico. E, por isso, jamais poderá ser reduzida a uma verdade lógica e científica, ou  seja, metafísica causalista. A unidade essencial projeta cada vivente no sentido do próprio Viver. A metafísica causalista somente trabalha com a uniformidade do universal abstrato, tanto teórica quanto conceitual. Todas as Correntes críticas são tributárias da verdade lógico-científico, facilmente aplicável a pseudo-poetas de pseudo-obras-de-arte, que demonstrando a sua mediocridade se auto-intitulam contemporâneos. Toda obra de arte é sem atributos, porque seu vigorar é o da aletheia, onde qualquer atributo é inútil, desnecessário. E, portanto, inclassificáveis. No vigorar do tempo poético toda obra tem seu operar pelo que nela opera: a arte. E esta, poeticamente, é sempre contemporânea. Por este poder de estar sempre em consonância com o tempo é sem atributos. O contemporâneo cronológico e não poético pode assim se tornar o atributo em que se esconde a mediocridade e embasbacar-se no estranho de um mero jogo discursivo retórico. Jamais podemos confundir o estranho retórico com o inesperado de que nos fala o pensador Heráclito na sentença 18, acima já citada. Se aquele é lógico-discursivo e retórico, este é ontológico, fundado na memória, na aletheia de Mnemosine.

            Em última instância, a unidade de vivente e viver da Vida acontecerá poeticamente no tender a e no caminhar para o Viver enquanto Viver em sua plenitude. É o telos do vigorar da arché. Tal telos, em sua plenitude, é o sentido ético-poético do cuidar pensante de ser. Por isso não há nem nunca poderá haver metafísica com atributos, seja imanente, seja transcendente, na Poética, isto é, jamais o epistemo-lógico poderá determinar e eliminar o onto-lógico. Jamais a lógica poderá eliminar a a-letheia. É em vista disso que tudo se decide na questão da essência da verdade. Essa é a questão decisiva onde a realidade/Vida, o ser humano e o pensamento poético encontram o seu horizonte de compreensão e unidade. A aletheia e não a verdade lógica é o horizonte ético e poético do humano.

            O poético é a tentativa mais radical de livrar-se da terminologia metafísica atributiva e libertar cada vivente para a luz matinal do instante poético em que nos compreendemos já vivendo. O poético é a paixão de Viver e seu sentido, sempre novo, sempre inaugural, sempre desafiante, para ser experienciado e jamais reduzido a mero jogo retórico-expressivo de palavras midiáticas.  A mídia e seus meios expressivos são a metafísica atributiva da linguagem. Nela, linguagem se reduz a meio. Os lugares-comuns da língua e sua lógica coerente são o sepulcro metafísico da poiesis, encoberto pelas camadas de cinza multi-seculares do jargão dominante da metafísica lógica. O poder verbal da palavra é a possibilidade de todo poético e o que ele implica sempre de inesperado, porque ele é a verdade acontecendo enquanto desvelamento e velamento, casa da linguagem e cuidado da concretização do humano.    



  

04 maio 2013

Dialética, logos, lógica


           Dialética, logos, lógica
                                             Manuel Antônio de Castro
Dialética
O primeiro grande pensador da dialética foi Heráclito. E como pensador originário ele será sempre a referência obrigatória para toda a posteridade e não, como geralmente se pensa, a dialética hegeliana. Tomando esta como referência, reduziu-se a dialética a método. Se tomamos este no significado lógico-matemático moderno, apriori que determina o que é a verdade da realidade, a dialética não será método. É a partir dele que se procura conhecer e interferir no acontecer da realidade, inutilmente, pois tal método fundamenta-se no conceito, na representação e no cálculo. E a realidade é mais. Desde Heráclito a grande questão da dialética é a verdade como aletheia, enunciada na sentença 123: Physis kryptestai phylei: A realidade desvelante apropria-se no velar-se. Mas método deve ser tomado no que a própria palavra, fundada no logos, diz. Método é metá-hodos: pôr-se a caminho da escuta do logos, conforme o pensador Heráclito nos propõe na sentença 50: Auscultando não a mim, mas ao logos, é sábio concordar que tudo é um. O pôr-se a caminho do logos, da linguagem, concretiza-se no diálogo.
Assim se originou a palavra dialética: em grego, o sufixo –ikos, e, on (m/f/n) forma adjetivos a partir de  verbos. Neste caso, o verbo é dia-legein. Tal sufixo indica o ser apto para o agir expresso pelo verbo de onde se forma. Dialeti-ké diz a qualidade de ser apto para o diálogo. A denominação morfológica de substantivo ou adjetivo provém da gramática, fundamentada na proposição. O substantivo nomeia o ente e o adjetivo (predicativo) uma qualidade ou atributo seu. Porém, o núcleo da proposição é o verbo e não o substantivo ou atributo, daí o sufixo –ikos, e, on, referir-se ao agir dos verbos. Contra o pensamento lógico-gramatical, nem tudo é redutível a entes-substantivos. Isso é decisivo para compreendermos o que seja dialética. Esta remete sempre para um pensar verbal. Exemplos de “substantivos” não entes: a claridade, o mundo, o logos, a ideia, o humano, o justo, o belo, o bom, o uno, o verdadeiro, o poético etc. Por quê? O substantivo, sendo conceito, logo, representação, oculta e esquece o acontecer da realidade. Este, por ser verbal, é questão. Disso decorre que pensar a dialética é pensar o diálogo na dinâmica do questionar. Não há dialética sem diálogo. A essência deste é a escuta do logos. E a dialética é o agir do diálogo, isto é, do tempo enquanto linguagem, verdade, sentido e mundo. O diálogo não pode ser pensado desligado dessas questões essenciais. É que nelas acontece a realização do humano, numa dialética concreta e histórica. Portanto, o humano acontecerá no pôr-se a caminho do que já recebeu para ser: seu próprio. Caminhar é eclodir na verdade. Isso é o libertar-se para o que é. Todo caminho implica necessariamente tempo, sentido e mundo: liberdade. Diálogo e dialética se implicam mutuamente. Na dialética é o próprio destinar-se do ser que se doa e acontece, sempre aberto e inesperado, segundo o próprio Heráclito: Se não se espera, não se encontra o inesperado, sendo sem caminho de encontro nem vias de acesso (Heráclito, 1991, frag. 18, 63).
Diálogo, compõe-se do prefixo diá- e do verbo legein. O prefixo indica a conjuntura em que a ação verbal acontece, onde jamais haverá separação entre a conjuntura e o acontecer da realidade (physis). Diá-  nos remete para o considerar de um e de outro lado, expressando tensão ontológica de limite e não-limite, de ser e não-ser, sempre num entre abismal e inesgotável. Já o verbo legein, em suas derivações etimológicas, assinala a própria dinâmica da realidade, dizendo: pôr, depor, dispor, propor. Por isso legein pode significar: reunir, dizer, enumerar, narrar, assentar-se, repousar. Trata-se no diálogo e na dialética de um acolhimento das diferenças na identidade, que não só aceita as diferenças, mas promove necessariamente a diferenciação. Eis a lei da dialética, na concreticidade universal do diálogo. Todo diálogo verdadeiro é um exercício de escuta de um eu e de um tu ou de auto-escuta, a partir do logos, no que cada um é em sua verdade. Quem funda o diálogo é o ser que vigora como possibilidade de realização do “eu” e do “tu”, do “eu” e do “sou”. Isso é tematizado no conto “O espelho” (Rosa: 1967, pp. 70-78).
Para indicar a unidade e diferença de eu e tu, para além de uma relação subjetiva ou objetiva, diálogo e dialética provêm do verbo grego dialegein na voz média: dialegesthai.  A voz média difere da voz ativa, pois naquela o sujeito é tanto agente quanto paciente. Na voz média, a ação do verbo assinala um experienciar-se mútuo concreto. Isso é a essência do social. No diálogo poético da dialética, cada um e todos estão implicados em seu sentido de realização e libertação conjuntural e histórica. A realização de cada um implica a realização de todos e a de todos a de cada um, onde o horizonte do agir é o ser.
Dialética é caminho de realização histórica do próprio. Este é uma doação do ser: possibilidades de e para possibilidades. Nessa caminhada, a dialética é o contínuo estar em crise, depondo o realizado e abrindo-se para novas realizações. É isso que significa krinein/discernir, de onde se formou crise e crítica. Criticar é o operar poético da verdade da realidade enquanto aletheia. Dialética é diálogos porque é aletheia. O seu acontecer como realização do humano é a dianoia: o pensar-se e saber do ser no não-saber do abismo do nada criativo. Em última instância, este é a morada, o ethos, a morada do extraordinário. Habitar é deixar-se tomar pelo sentido e verdade do ser: a linguagem.
A expansão global da ciência ocidental desencadeou uma crise ética global, que desintegra a verdade dominante na realidade. É o jogo astuto da verdade (aletheia). Desintegra para integrar em novo nível o humano em seu sentido, verdade, mundo. Toda negação gera uma afirmação que reintegra em outro nível, num permanente acontecer dialético. Trata-se de um desafio contínuo de agir realizando o que é e não é, fundados no nada criativo. Assumindo a crise, não podemos jamais querer ressuscitar o que se metamorfoseou em sistemas prontos, acabados. A dialética da realidade é sempre aberta e inesperada. O real como realização da realidade não pode caber em nenhum sistema. Onde há sistema não pode haver dialética. Em lugar da qualificação da dialética: platônica, hegeliana, marxista etc. deve vigorar o caminho libertador do questionar, pois este joga a dialética em sua essência: o diálogo. Questionar é experienciar-se dialogalmente, onde os dialogantes se abrem para a escuta do operar da linguagem: sentido e mundo da realidade acontecendo. É o experienciar da aprendizagem.

        
Logos

         Caso se quisesse caracterizar o Ocidente com uma única palavra, esta seria:   logos. Qualquer tradução que dela se proponha é insuficiente. Logos, como o Tao chinês, disse Heidegger, é intraduzível. Levar o leitor a apreender essa intraduzibilidade e a tomar conhecimento das vias que suas traduções abriram  no Ocidente é esta a difícil tarefa. O maior pensador do logos foi Heráclito, denominado, em vista disso, o obscuro. Só se adentra o logos pensando e escutando a força da presença constante do silêncio, plenitude e fonte de toda fala.
Com o surgimento das Escolas helenísticas, do logos originou-se a lógica, tendo a  pretensão de se tornar o paradigma único da verdade (o que não for lógico será i-lógico, afirma-se). Daí surge a dicotomia em que se fundamenta o Ocidente metafísico: o logos dá origem à lógica e depois esta passou a determinar – pelo critério do lógico ou verdadeiro – o que é o logos. Ou seja, tudo no Ocidente gira em torno da questão da verdade. Falar da realidade, do ser, é sempre já estar pensando a questão da verdade. O que verdade implica torna-se a questão, porque verdade é ser se manifestando e jamais alguma adequação lógica, representacional. Ela é tão misteriosa como o próprio ser, do qual sempre já estamos próximos e distantes, porque a maior proximidade possível da verdade ainda é a não-verdade do sentido do ser. E isso é o logos, pois o ser é princípio (arché) e sentido (telos). Daí se originou a tradução predominante: fundamento, em grego, hypokeimenon. O abandono, aproximadamente desde o Helenismo, da aletheia pela lógica gerou o esquecimento do sentido do ser e, com isso, a compreensão invertida do que os pensadores originários diziam com logos. Nestas poucas indicações é impossível comentar tudo isso. Fica o convite ao pensar. Eis algumas traduções: 1) Fundamento; 2) Unidade; 3) Razão; 4) Necessidade/Lei do mundo; 5) Lógica; 6) Linguagem; 7) Palavra/Deus; 8) Língua/código; 9) Fala/discurso; 10) Signo/semântica 11) Coletividade. Podemos reunir estas traduções em três grupos. 1º. Diz respeito ao logos quanto à questão do princípio de tudo, dando origem às traduções: 1, 2, 3, 4; 2º. Verdade: 5, 6; 3º. Dependendo da ambiguidade do segundo, ao narrar ou discursar: 7, 8, 9, 10, 11. Então, segundo a determinação do que seja verdade, os grupos primeiro e terceiro serão lidos de uma maneira até oposta. Porém, o que aí se decide é algo radical: o que seja ser/realidade e ser humano. Este horizonte das traduções foi esquecido e elas passam a bastar-se por si mesmas, como, absurdamente, se auto-originassem. Contudo, essas duas questões não podem ser separadas, o que acontece desde que se instituíram as disciplinas e no lugar de questão só se fala de conhecimento disciplinar. Porém, a questão de todo pensar originário e poético será sempre a referência de Ser e Essência do homem. Esse “e” não é partícula gramatical. É o abismo em que desde sempre nos vemos projetados como entre-ser. No fundo, esse “e” é o logos, daí ele tanto se referir ao Ser quanto ao homem.
Para adentramos essas questões, tomemos uma sentença grega e suas traduções. Estas implicam as questões, pois traduzir é interpretar, que é a escuta do sentido do silêncio, da linguagem. Para interpretar já devemos vigorar no Ser. A sentença define o homem: Dzoion logon echon. A tradução latina, esquecendo o vigor do logos, propõe: (Homem) animal rationale, animal racional. Uma outra tradução diz: (Homem) animal que fala. As duas traduções só aparentemente são diferentes, pois a razão causal e científica determinará o que se entende por fala ou discurso. Não podemos reduzir dzoion a animal e logon a racional. Dzoion é Vida. Os latinos reduziram physis a natureza. Pela lógica, ela é composta de seres inanimados e animados. E estes divididos em racionais e irracionais. Isso é classificação científica, racional. Logos foi traduzido por ratio, razão. E esta se tornou a causa, isto é, o fundamento do universo. O fundamento teve duas versões. Pela primeira, torna-se Deus/palavra. Dominou desde a implantação do Cristianismo até a Modernidade. Apoia-se, sobretudo, no início do evangelho de São João (90 d. C), quando afirma, referindo-se a Cristo, filho de Deus: “En archei ho logos”. “No princípio era a Palavra”, traduz-se. Temos aí a ligação do primeiro grupo com o terceiro: fundamento e linguagem. Ele escreveu no grego da Koiné, isto é, do Helenismo (300 anos a.C). Estava aberta a possibilidade para a outra tradução: “homem, animal que fala”, pois ele é uma criação de Deus/fundamento. Quando a Modernidade substitui a teo-logia pela antropo-logia, o fundamento/logos torna-se razão. Criador, causa. E a linguagem passa a ser fundamentada pela ciência linguística. Como o conhecimento científico é essencialmente funcional, a linguagem reduziu-se às suas funções comunicativas e sociais, isto é, ao discurso. Quando o fundamento tornou-se causa (ratio/razão), todo objeto do conhecimento científico passou a ser estudado pelo princípio das quatro causas: material, formal, eficiente e final, proposto por Aristóteles. É uma confusa mistura de noções. Matéria passou a ser confundida com linguagem e conteúdo, forma com meios, eficiente com subjetividade, final com função e meta. E é isso que é ensinado hoje, onde o logos originário de Heráclito ficou esquecido.
É do verbo legein que depreendemos o que é o logos. O radical indo-europeu desse verbo é lg. A experiência inaugural a que ele remete é: pôr, depor, dispor, propor e compor. Porém, os significados correntes são: reunir, dizer, ler, narrar, colher e repousar. Como isto se deu no acontecer poético e dialético? É que o doar-se do ser no pôr não é um simples justapor, como se para fazer uma casa bastasse justapor os tijolos. No pôr do ser conduz-se o que se põe para o pouso de seu ser, dando-lhe sentido em sua realização. Tal processo implica, portanto, ordenamentos e diferenciações de posições. Trata-se, em vista disso, de um acolhimento diferenciado por identidade, estimulando a diferenciação. Na raiz de todo é e não é age o vigor de legein, gerando posições e compondo oposições. Isto pelo poder criador (pondo) e destruidor da linguagem (depondo). Em virtude disso, na sua forma medial legesthai, experiencia-se o recolher-se no repouso de si mesmo e dos outros. Recolher é acolher. Tal recolher-se à vigência do silêncio torna-se a possibilidade de todo diálogo e dialética. É que somos acolhidos pelo vazio, na vigência do nada criativo. Quando nos recolhemos a nossa morada, a linguagem, é no vazio do silêncio do logos que encontramos o que somos. Das experienciações originárias de legein, podemos configurar três campos de significados: reunir e concentrar; assentar e repousar; relacionar, enumerar, narrar.
Se agora voltarmos à sentença grega, que define o homem, podemos, poeticamente, traduzi-la: Alguém de quem o logos cuida para ser o que é.


Lógica

Como problema filosófico, a Lógica se origina do logos. Mas este era pensado pela filosofia. Esta consistia na procura do princípio e sentido do physis/ser, manifestando-se e velando-se como verdade, aletheia, em grego. Segundo Heráclito, há uma disputa entre physis e aletheia, um pólemos.Pólemos e logos são o mesmo” (Heidegger: 1969, 90). Então a tensão entre ser e verdade dá-se como linguagem ou logos. O princípio do ser em sua verdade e sentido era o logos, onde se fundava o mundo, o ético e a liberdade. A physis foi pensada como ta onta: a totalidade dos sendos. To on, o real/o sendo, é o particípio presente do verbo einai/ser. O sendo participa do ser, mas não é o ser.
A referência de ser e homem foi a grande questão. O homem não é um ente entre outros entes. O que o diferencia?  É um enigma. “Muitas são as coisas estranhas, nada, porém, há de mais estranho do que o homem” (Sófocles, 1969, 170). Sob influência dos sofistas, iniciou-se em filosofia uma nova postura diante do princípio da physis/ser. Priorizando o lugar do homem, o ser é esquecido e toma-se o homem como medida de todas as coisas.
Historicamente, o logos, como fundamento, terá duas interpretações no percurso ocidental: a helenística e, posteriormente, a cristã. A Lógica surge com as Escolas Helenísticas, pois nem Platão nem Aristóteles reduziram seu pensar à Lógica epistêmica. Neles ainda não havia a diferença entre sentido do ser e conhecimento (episteme). “A Lógica é a ciência das configurações fundamentais do raciocinar. A Lógica, enquanto ciência brota da filosofia, como toda e qualquer ciência, mas precisamente nesta forma em que foi apresentada ela mesma já não é filosofia” (Heidegger: 2008, 43). Com a criação da Lógica como disciplina pretendeu-se ensinar a pensar, tornando-se o método para aprender a raciocinar corretamente. Desse modo, a Lógica se tornou a propedêutica para todas as ciências, fazendo-se presente em todos os ramos de conhecimento. A Lógica dá sequência à tradição sofística, que já desenvolvera a gramática como propedêutica para a correta argumentação pelo conhecimento racional e discursivo da língua. Nesse clima, em torno do logos como discurso argumentativo, surgiu uma nova interpretação do logos: a judaico-cristã. Afirma: “No princípio era o logos”,  pois Cristo  era o Filho de Deus: Criador das criaturas. Há uma dicotomia entre Criador e criatura, acentuada pelo pecado. Da junção deste novo fundamento com a Lógica, surge a metafísica lógica e dicotômica.
Esquecido o sentido do ser e sua verdade, a Lógica dicotomiza conhecer e ente. A verdade é a verdade do discurso, isto é, da proposição. Ficaram esquecidas a physis e a aletheia.  Mas a principal dicotomia será entre Lógica e ente. Desde então tudo que não for lógico será ilógico. Algo contraditório aconteceu: o logos dá origem à Lógica. E esta passa a definir o que é o logos, reduzindo-o a discurso e razão. No lugar da Lógica do Logos teremos desde então o logos da Lógica. Esta distinção é importante para a interpretação dialética das obras de arte e de pensamento.
Deus-fundamento, como Logos, dá origem à teo-logia. E toda a Idade Média se consumirá na discussão infrutífera de superar a separação entre conhecimento e real, porque partiam da verdade da Lógica. Dentro do mesmo horizonte, a Modernidade mudará apenas o nome do fundamento, pois os problemas continuavam os mesmos: de teo-lógico para antropo-lógico. As três questões essenciais continuam: o homem, a verdade e a linguagem. Havia a forte tradição da ligação do homem ao logos, baseada numa sentença grega antiga: Anthropos dzoion logon echon. O logon originou duas traduções interpretativas: razão e discurso: homem o animal que tem fala/razão. O discurso remete para uma concepção da linguagem e a razão para uma da verdade. O homem como logon-fundamento decide sobre a linguagem e a verdade. E estas decidem o que é o homem, porque a verdade será a verdade da Lógica da proposição do discurso. É a verdade por adequação.
 O ser/physis e a aletheia continuam esquecidos. Mas a Lógica metafísica e dicotômica não dá conta, evidente, da complexidade do ser/realidade. As dicotomias se generalizam e surgem paradoxos e impasses. O Logos, transformado em fundamento, passou a ser a verdade e deixou de haver a linguagem como o “entre” o ser e sua manifestação nos entes enquanto sentido, ético e mundo. Pela Lógica nunca há um “entre” conhecer e ser; conceito e coisa; verdadeiro e falso; universal e individual; código e língua; discurso e linguagem; proposição e palavra; substantivo e verbo; lógico e ilógico; real e irreal; racional e irracional; útil e inútil; ciência e arte; raciocinar e pensar etc. etc. A língua metafísica é o discurso destas e de outras dicotomias.
As duas traduções do logos já partem de uma interpretação da verdade como adequação e da línguagem como discurso. Não se parte mais da aletheia (verdade/não-verdade), mas da proposição dentro da sintaxe (linguagem como criação social), onde a verdade é reduzida à adequação entre o dito (proposição) e a coisa dita (real). Na aletheia, o discurso jamais é determinado pela sintaxe da proposição, pois há discursos onde o mais importante não é o dito, mas o não-dito, caso das obras de arte e de pensamento. É impossível separar essência da verdade e essência da linguagem. A essência origina-se do ser/realidade. A essência do ser humano não depende da Lógica epistemológica. É o que nos mostra Édipo. Sob impulso da Lógica epistemológica, nega e foge do destino. No final, descobrindo que a Lógica do destino (logos) é soberana, arranca os olhos, reconhecendo que sabe que não sabe. É ainda com esta Lógica que tem de ser compreendida a loucura. Um exemplo, entre outros: Dom Quixote.
Na epistemologia temos o logos da Lógica. Na poética-ontologia a Lógica do logos. Por esta, fundamento diferencia-se de princípio, onde inexistem dicotomias, porque a realidade/ser não é estático, é dinâmico; não é linear, é circular; não é finito, é infinito; não exclui, inclui. Raciocinar diferencia-se de pensar. O raciocinar é a tradução redutora do logos por razão. O pensar é o mesmo que ser, segundo Parmênides. Nesse mesmo (logos), o ser se doa ao homem como linguagem. Questões diferenciam-se de conceitos. Estes são fechados e abstratos, aquelas são abertas, pois cada resposta recoloca a pergunta em nova dimensão etc.
O ensino das artes, tornadas disciplinas, é um subproduto histórico da Lógica epistemológica. A essência da arte é esquecida, porque o que está em questão na Lógica é a essência do homem. E este é indissociável do sentido do ser. É na Lógica do logos que devem ser pensadas as obras de arte e de pensamento, porque nelas é o destinar-se do sentido do ser que acontece.