21 março 2014

Exercício de questionamento



                                                           Prof. Manuel Antônio de Castro


Eis, caro leitor, uma provocação. Você foi educado para o questionar? Aceita tudo passivamente ou transforma toda afirmação em uma real pergunta, em uma questão? Você tem certeza de tudo que afirma e os outros afirmam? Se a vida é um enigma, como podemos viver de certezas, melhor, sem questionar? Lendo o texto abaixo você terá depois mais motivos para sempre questionar. Assim espero. Não para acreditar no que eu digo e aí escrevi, mas para você se descobrir em seu próprio, aquilo que recebeu para ser. Boa viagem pelo caminho da vida que é uma travessia poética.



Em geral aceitamos muito passivamente os valores e idéias que nos são transmitidas e dadas como certas por tradição, seja familiar, seja cultural, seja de formação escolar. Contudo, tais ideias ou conceitos variam de acordo com as épocas e, normalmente, estão relacionados a circunstâncias culturais e histórico-científicas. A ciência nas suas versões também é temporal e epocal, embora os conceitos pretendam ter uma validade tanto mais universal quanto mais absoluta, quando, na verdade, dependem de teorias, de interesses ideológicos e culturais. O que algo ou alguém diz realmente é sempre questionável. Uma libertação de todas essas imposições e dos lugares comuns, da aceitação passiva onde domina a banalização, é essencial para que nos afirmemos naquilo que nos é próprio e sempre diferente: o que somos, embora necessariamente na unidade do ser. Mas o que somos, somente somos no horizonte das questões. E o que somos é uma doação (dizia o pensador Platão: eidos, e o mito: moira). Aquilo que somos somos enquanto necessidade e possibilidades. É nesse sentido que não somos nós que temos as questões. Elas é que nos têm e dão o sentido do existir. Por isso, entre possíveis caminhos, certamente o mais produtivo e o que possibilita um enriquecimento e inovações contínuas é o questionar, porque desenvolve as possibilidades do que nos foi dado e recebemos para ser, porque o ser é sempre o sentido do destinar-se do ser nas e como questões.

É no horizonte do questionar que surge o criticar, ou seja, a possibilidade de construir uma consciência crítica. Porém, não há consciência crítica sem crítica da consciência. Consciência não é tudo, porque depende do ver e não-ver, do imaginar e não-imaginar, do dizer e não-dizer, advindos no escutar, no desvelar e velar. Não podemos de maneira alguma achar que uma consciência crítica é aquela que se estrutura em verdades já feitas, em conceitos intocáveis, em teorias irrevogáveis e não ultrapassáveis. Consciência não passa de um saber que se sabe, isto é, de um saber que se quer auto-fundamentar, enfim, de um saber e um não-saber, nada intocável e definitivo, completo. Consciência é uma trajetória de libertação pelo conhecimento enquanto exercício contínuo e irrevogável do questionar. Este é o exercício cotidiano e incessante de nos abrirmos para o sentido das questões que já desde sempre nos constituem naquilo que somos. Porém, questões não são conceitos. Como as questões não têm uma resposta única, mas solicitam nossa escuta e nossa práxis, elas são radicalmente dinâmicas e inscritas no que somos, na medida em que chegamos a ser o que somos no como somos, no concreto viver e experienciar-nos sendo o que não somos na práxis poética do como somos e temos necessidade de ser. Práxis é sempre existência, recepção do que se dá no escutar do pensar, do agir do pensar. O pensar é sempre o agir do sentido do ser, do sentido do que recebemos para ser, ou seja, a medida do humano e possiblidade de todo humanismo.

            Contudo, a relação entre questionar e ter uma consciência crítica acontece no dialogar, não só conjuntural, mas também epocal, numa dialética de recepção e renovação criativa, poética, onde não há modelo, paradigma ou teorias prévias. É que uma questão gera outras questões. Desse modo toda resposta que se recebe ou cria, imagina, figura, torna-se o núcleo gerador de novas perguntas, sempre dentro do horizonte poético do acontecer da realidade, um acontecer que é circular numa dialética sempre inclusiva e jamais excludente e exclusiva. (Nesse horizonte foi criado o dicionário digital de Poética e pensamento, cujo endereço é: www.dicpoetica.letras.ufrj.br. Abra qualquer palavra e se pergunte depois de ler as diferentes colocações qual é a resposta certa. Será obrigado a exercitar o distinguir/diferenciar e a optar por um caminho que, fundado na escuta de se compreender e auto-compreender, deverá ser o seu, passível de novas perguntas e respostas). O ser humano é justamente humano por já desde sempre mover-se nesse “entre”, nesse “polemos”, de  saber e não-saber, porque originariamente já é e não é. Portanto, em toda pergunta como em toda resposta há sempre e inevitavelmente um logos de limite e não-limite. É o que alimenta e torna a vida um caminho poético, inaugural, alegre, renovado, no desafio de chegar à plenitude do que se é, isto é, do que se recebeu para ser na plenitude (telos, diziam os gregos) do seu sentido. E isto é único, intransferível, desafiador, poético, libertador.

Poética é o caminhar no e do caminho que gera as obras e arte. E arte enquanto obra é esse operar do caminho no e pela vigência do logos, da linguagem. Temos aí a essência da leitura como diálogo consigo mesmo e com os outros. Nele não pode haver uniformidade de pensamento, mas exercício aberto da aceitação do outro (que somos nós mesmos) e dos outros em suas diferenças. Recepção é recepção das diferenças, pois dialogar é a tarefa cotidiana de experienciá-las. Receber e acolher as diferenças é o caminho libertador e pacífico e fraterno da convivência social porque humana. Como disse o pensador Heráclito, quem não espera não encontra o inesperado, sem vias de acesso ou caminhos prévios. Questionamento não é intransigência, mas apropriação de conhecimento numa dinâmica própria sem formatação das mentes e dos corações.

            Questionar para criticar e criticar para dialogar deve ser sempre o horizonte de toda apropriação de conhecimentos que nos levem à apropriação do que somos, a nossa identidade, no como somos, enquanto abertura para recebermos e acolhermos o sentido do que somos, pois criticar é distinguir diferenciando. Criticar não é, em sua essência, ser chato e dono da verdade, vendo em tudo só o negativo. Ver os próprios limites também é criticar. Quem não vê o que não se vê e nem chega a mostrar-se no permanente desvelamento e velamento dialético, em verdade, nem pode criticar.

Você foi educado para o questionar, a dúvida saudável de que sabe que não sabe em tudo que sabe? Que tal fazer um exercício de questionamento?


Transforme as afirmações a seguir em questões.


1ª.  Se você se vestir dessa maneira irá contra sua identidade cultural e perderá a identidade e autenticidade.


2ª. Não é verdade que somos todos iguais e temos o mesmo destino.


3ª. A literatura é a arte da linguagem e a linguagem é um produto social.


4ª. O conhecimento da literatura é o conhecimento dos estilos, das formas, da época histórica, da fortuna crítica das obras, ou seja, da sua recepção, da representação verdadeira, da concepção política dominante e das influências e condições sócio-econômicas.


5ª. O que é real é lógico e o que é lógico é verdadeiro. Portanto, o que é verdadeiro é real.


6ª. Tendo em vista as questões acima sugeridas, transforme em questões esta afirmação do pensador e poeta Guimarães Rosa: “Tudo é e não é” (Grande sertão: veredas. 6. ed. Rio de Janeiro: 1968, p. 12).