24 novembro 2016


O humano, o poético e a Contra-cultura

                                                 Manuel Antônio de Castro

                             Consulte também: www.dicpoetica.letras.ufrj.br. É um Dicionário Digital,
 
                             onde o essencial são as questões e não os significados semânticos. Nele,
 
                             poderá o leitor aprofundar algumas questões aqui levantadas.
         
 
            A contracultura já tem história, aliás como qualquer cultura. E a história, quanto mais avança o tempo, que a tudo põe e depõe, depurando, mais mostra o que não passa de aparecente, de passageiro. No que diz respeito às obras de arte são poucas, muito poucas, as que permanecem com algum interesse a não ser o documental em relação à época em que foram escritas. E as que perduram são as que se fundam nas questões e deixam-nas vigorar, isto é, deixam o ético-poético do humano se tornar algo vivo, atuante, permanente.

Na linha do tempo, a contracultura se mostra rica, multifacetada e até contraditória. A nós interessa o poético da contracultura, esse poético que é o agir do tempo sendo. Na realidade tal denominação é um nome contemporâneo para atitudes e projetos e utopias já muito antigos, tão antigos quanto é o próprio ser humano, embora denominados de outro modo. Se lembrarmos apenas o movimento de simplicidade e pobreza completa, iniciado por Francisco de Assis, no fausto da Idade Média, impossível não dizer hoje que foi uma contracultura em seu tempo. A eclosão de tais movimentos se inscreve naquilo que frequentemente se denominou “o mundo às avessas”, o que, noutra linha de pensamento, se poderia expressar dizendo: o avesso do mundo.

Mas, contemporaneamente, como podemos ver a contracultura? Como podemos melhor compreendê-la a partir dos princípios em que se fundamenta? E não será a contracultura uma das facetas mais marcantes da realidade contemporânea? A banalização, com que hoje se vive em tudo, não é o próprio esvaziamento daquilo que constituía a essência da contracultura? A globalização de hoje não seria uma contracultura às avessas? Na verdade, o que se denominou contracultura é o modo como a cultura dominante ou pretensamente superior tentou desclassificar aquela cultura que a pôs em questão. É necessário pensar a contracultura e não simplesmente aceitar ou negar.

           A grande dificuldade de entender a contracultura está em algo muito simples: há uma tendência, preponderante nos sistemas educacionais, de adjetivarem tudo, especialmente a cultura, sem pensarem a sua essência e tudo o que ela implica em termos humanos. E então se discutem somente atributos, portas de entrada para as máscaras, os estereótipos, os simulacros, as aparências e sobretudo os preconceitos. Exemplificando: cultura clássica, erudita, popular, moderna, antiga, medieval, primitiva, secular, religiosa, superior, inferior etc., como se todas antes de tudo e essencialmente não fossem culturas. Esses atributos pensam o aparecente sem o essencial, aquilo que em toda cultura é decisivo e vigorante. E sobretudo para pensar a contracultura houve uma separação dominante e hoje ultrapassada, fundamentada num critério político-ideológico: engajada ou alienada. Numa outra linha, a da formação esmerada, há a oposição de cultura erudita e cultura pop. Mas esta é a cultura dos meios de comunicação e seus suportes econômicos, baseada no consumo, superficial e banal. Estes, como os atributos anteriores, se mostraram parciais, passageiros, efêmeros, daí a necessidade de pensar a contracultura sem preconceitos epocais e tendenciosos. Sem dúvida, pensar o que é cultura sem pensar o que é o ser humano é perder tempo em superficialidades, em desfilar atributos. Claro, os atributos já indicam posições de valor. Mas estes variam tanto no tempo e no espaço e de cultura para cultura! E não podemos confundir, de jeito nenhum, valor moral com o propriamente humano, o ético. Muitas vezes os valores das classes dominantes e bem formadas são máscaras para encobrirem o vazio de sentido em que vivem. Stanley Kubrick, no filme De olhos bem fechados, mostra bem isso, sem esquecer as contradições em que se debatem os seres humanos, causadoras de sofrimento e solidão.

Todas as culturas, em qualquer tempo e lugar, são ambíguas por natureza. Nascem para realizar e promover o ser humano. E depois de afirmadas oprimem esse mesmo ser humano ao se tornarem valores absolutos, opressores, esquecendo que são forças de libertação. Isso ocorreu também com a contracultura. Nascida num momento específico, o do término da devastadora Segunda Guerra mundial, foi um grito de liberdade e defesa do ser humano, oprimido em muitas sociedades com seus valores morais. Basta citar a odienta segregação racial na sociedade americana, dominante na década de sessenta. Entre as bandeiras de tal movimento estava a luta pelos direitos das mulheres e das minorias étnicas. Eram muitas as bandeiras de libertação da contracultura. E necessárias.

            Hoje quando se olha para trás podemos dizer que a contracultura veio para mudar o mundo. Este, depois dela, em suas diversas versões, não é mais o mesmo. Talvez a essência da contracultura num mundo de guerras e divisões culturais, discriminatórias, de exclusões de muitos seres humanos, tenha sido expressa numa canção simples, uma obra de arte poética indiscutível: Imagine, de John Lennon. Os jovens sabem-se sonhadores e assumem o sonho, base da contracultura. Também não podemos deixar de fazer alusão a algo extremamente significativo para a época: o domínio absoluto do cristianismo e seus valores no Ocidente se vê questionado com a descoberta de outras formas religiosas igualmente importantes e até mais antigas: o budismo, o hinduísmo e o taoísmo, orientais. E aí também John Lennon teve um papel importantíssimo. Ainda dentro da mesma linha, mas sem a profundidade desse poema-canção, temos, no Brasil, Sociedade alternativa e A lei, de Raul Seixas. Dentro do mesmo ideal, mas num contexto diferente – a contracultura não é algo monolítico, pois explodia em sociedades e culturas com problemas específicos -, temos o hino do Tropicalismo É proibido proibir, de Caetano Veloso. Fazendo contraponto com este vamos ter a juventude transviada em torno da Jovem Guarda, na linha tanto dos Beatles quanto de Elvis Presley. Temos Joan Baez etc. etc. (não pretendemos fazer o levantamento de todos os movimentos contraculturais, embora não devamos esquecer o famosíssimo festival de Woodstock). Num desvio já evidente, os “ídolos” passaram a ser mais importantes do que o próprio de cada um, aquele algo que cada um é e jamais pode ter modelos externos. Criticavam os modelos e criavam novos. Tudo isso é contracultura. Os ídolos banalizam atitudes e valores, e seus seguidores tornam-se presas fáceis do consumo. Gera-se uma cultura de massa.  Numa outra vertente, vamos ter o movimento Hippie e sua nova mentalidade em choque com a cultura técnico-citadina e a opção pela vida no campo, na natureza. Talvez pudéssemos sintetizá-la na canção de Elis Regina, Casa no campo. No fundo era também uma contraposição ao progresso científico-tecnológico. E com este o domínio cada vez maior do capitalismo. Porém, há uma contradição na contracultura e suas facetas: ela mesma era possibilitada por esse mesmo progresso tecnológico. Sem a expansão vertiginosa dos novos meios de comunicação e sua penetração, hoje global com a internet, o Google, os celulares, não poderia ter tido a repercussão e adesões nos mais diferentes cantos do mundo. Esses movimentos defendiam muitas vezes o livre uso das drogas. Mas isso seria libertação quando elas destroem qualquer possibilidade de ato livre? É aí que se coloca a gravíssima questão da essência da liberdade, do falso poder da vontade, ou seja, do agir.

            Como todo movimento cultural inovador também gerou excessos, sem dúvida nenhuma. E por um motivo muito simples: não pensar as questões em sua essência, não pensar a essência do agir, seja na contracultura, seja na cultura. Em todo agir há sempre um ethos, mas não em todo fazer. É que agir é ser. E fazer pode ficar no aparecer, próprio das atitudes. Aristóteles inicia o Primeiro Livro da sua famosa obra Ética a Nicômaco com uma afirmação radical, em que, podemos dizer hoje, se move a essência da contracultura, da cultura e da própria arte. Diz: “Em toda ação vive o empenho por algum bem”. Eis o horizonte da essência do agir.  Mas basta pensar nas diversas dimensões de todo e qualquer agir para constatar algo simples, mas inquestionável: não há ação e “bem”, o benefício, sem um “custo”. Este pode ter um horizonte diferente caso se trate de “bens” ou se trate do “Bem”. E ambos se inscrevem no que normalmente chamamos de “ética”. É esta que os funda e realiza aquilo que chamamos ser humano. O humano é o ético como medida do que cada um é, pois o ético é a medida do ser em tudo que somos e não somos. Isso diz que, sem exclusão, culturas, contraculturas e artes são essencialmente éticas quando em sua pujança humano-criativa. Fica até difícil de mostrar em que se distinguem. E é isso o que vamos tentar aqui, pois elas se implicam essencialmente. Para não levar logo de início o leitor a confusões, temos de distinguir bem entre ética e moral. Toda ética implica a moral, mas nenhuma moral é ética. Eis aqui a grande questão da aparente oposição entre cultura e contracultura, entre contracultura e arte, entre arte e cultura. Sobretudo porque muitas vezes na cultura, na contracultura e nas artes destacam-se tanto a moral e seus valores que perdem o horizonte que os justifica e são seu motivo: o humano, do qual devem ser a manifestação.
 
             Portanto, o que é o humano? O que é o ético? O que é o poético? O grande equívoco de qualquer resposta a estas três perguntas que perfazem, essencialmente, uma única, é querer justamente reduzi-las a um ou vários conceitos. Nenhum conceito dará conta do que é o humano, o ético, o poético. Simplesmente porque eles são questões. Não somos nós que temos as questões, elas é que nos têm. E todas as nossas ações já dependem de como as experienciamos. Como nenhuma experienciação dá conta do que somos, embora nos manifestemos nelas, igualmente nenhuma ação como resposta as abarca e as define. E isso é que as culturas bem como os movimentos da contracultura quiseram afirmar e impor.

Como todo movimento que se quer revolucionário, criam-se logo palavras de ordem, lemas, denominações, atendendo mais ao externo do que ao longo e sofrido processo interno e silencioso de transformação, onde podem eclodir as possibilidades de que todo ser humano se constitui: somos possibilidades de e para possibilidades. E estas medram no sereno acolhimento da linguagem, sua verdade e sentido. Sentido é a luz do caminho. Só assim haverá mundo, o único real em que se move todo ser humano. Há sempre o perigo de se jogar tudo no poder do sujeito, como se este fosse a fonte do agir do pensar. Não é. Todo pensar do agir se funda no agir verbal, no poder da palavra que liberta. Não podemos trocar nunca a força aparente do sujeito pelo seu núcleo fundador, a linguagem, diziam os gregos, o logos. Essa troca é a ilusão em que se move toda a metafísica dicotômica e excludente. E o movimento desencadeador da contracultura que se tornou predominante na década de sessenta foi, sem dúvida, o existencialismo, iniciado na década de quarenta, propondo a sua famosa inversão metafísica, com a qual pretendia superá-la. Acontece que uma inversão não supera a metafísica, pelo contrário, a acirra. Só se supera radicalizando-a e trazendo-a para o ético do pensamento e seu agir. Hannah Arendt se defrontou com esse problema pensando a essência do mal, não caindo na dicotomia fácil que o opõe ao bem (moralmente definido). Eticamente pode haver mal? Sabemos que toda metafísica já pressupõe uma superação da metafísica. Dizia o existencialismo, que é um humanismo metafísico, na formulação de Sartre: a essência não precede a existência. É no existir livremente de qualquer essência ou valor essencialista, moral, que o ser humano acontece, existe, e se dá livremente uma essência. Se tal posição e atitude abrem as portas da vontade para a liberdade, em verdade, não dimensiona os custos. E o sujeito e seu agir sem custos não existem. Somente trazendo para o questionar o agir ético do pensar é que podemos dimensionar a essência e a existência, em que se funda o ser humano.

           Acostumados às classificações das obras de arte nem nos damos conta do horizonte de seu agir e de sua atuação na realização do humano. A arte é radicalmente ética e por isso inseparável, seja da cultura, seja da contracultura, desde que não lidas e classificadas segundo o horizonte dos valores morais ou formais atributivos. Portanto, que lugar ocupa a arte na cultura e/ou na contracultura? E a partir de que posição definimos cultura, contracultura, arte? Há a tendência a tomar a cultura como paradigma para falarmos bem ou mal da contracultura. Aliás o próprio nome já o diz, há aí o “contra”. Mas será que em todas as épocas não se parte para uma nova época porque se nega a cultura vigente e os seus valores, não se é “contra” o que se faz e domina? O mesmo não acontece com a arte? Como surgem novas obras de arte e movimentos epocais se não houver necessariamente uma certa negação, um “contra”? E como se julga essa negação? É aí que entrar um componente em nossos juízos de que nem sempre nos damos conta: julgamos tudo a partir da lógica, que é excludente, sem atentarmos para um fato muito simples: a realidade é lógica, sim, mas esta não abrange toda a realidade e seu acontecer histórico, pois nem se pensa a essência do tempo e ser, ou seja, do próprio ser humano em sua condição. E nem se leva em conta que em qualquer situação, o que sempre predomina é a dialética, mas esta sem exclusão nem ideia absoluta, porém numa permanente inclusão, porque aberta e livre. Isso é totalmente comprovado com as obras de arte e de pensamento. As tragédias de Shakespeare não são as tragédias de Sófocles. Há aí, sem dúvida, uma diferença, um “contra”, mas sem umas excluírem as outras. No caso, a diferença enunciada no “contra” já tem embutida uma negatividade, mas justamente aquela da dialética. E o admirável é que há dois movimentos sempre em toda época, em toda grande obra de arte: de um lado, nega a anterior, de outro, afirma novas dimensões éticas do humano. E estes tendem a se tornar fixos, certos, lógicos, verdadeiros, únicos, morais, diz-se. Ou seja, toda negação tende a se tornar, no tempo, afirmação. E esta, pelo próprio acontecer de ser e tempo, a gerar nova negação. E assim dialeticamente. Portanto, temos de ver com cautela o “contra” da contracultura. E é isso que a história da contracultura mostra sobejamente.

Para isso é essencial diferenciar as ações éticas daquelas morais. Na moral o parecer é mais importante do que o ser. Claro, não pode haver uma dicotomia, mas também não é a mesma coisa. O parecer consiste em considerar o aparecer sem o ser. São os valores da aparência, das máscaras, dos simulacros, dos estereótipos, dos hábitos, do já aceito e repetido como sabido. E é “contra” essas valores morais, que se devem impor por si, que devem ser seguidos sem questionamento, que já têm moldes e modelos prévios a todo agir, que caem no domínio do público do impessoal, das normas absolutas, que, negando-os, surgem as contraculturas. A moral tende ao estático e estabelecido, ao sistema auto-referenciado. É bem o contrário da ética, onde o essencial é o poético. Não há ético sem poético e não há poético sem ético. E é isso que desde sempre se denominou obra de arte, se pusermos em primeiro lugar o que a palavra “obra” diz, aliás, o mesmo que poético no grego: o que age, o que faz acontecer, o que realiza. É necessário pensar a essência do agir, horizonte onde nos aparece a condição humana.
 
O agir se coloca sempre no horizonte das questões. E é nisso que, em geral, os movimentos contraculturais se debateram. Há sempre o perigo de cair em falsas questões como a das formas, confundidas com a linguagem, a da falsa criação como novidade, a da substituição do agir ético-poético pelas atitudes ou pela estética do choque, do inusitado e extravagante para aparecer e agredir, ou seja, o uso do poder da força como argumento. Enfim, a violência da moral institucional é substituída pela afirmação através da negatividade pela negatividade. Tira-se uma máscara para colocar outra, que quer aparecer como legítima e mais verdadeira. Há uma diferença radical entre atitude e ação poética. Na primeira se joga, se representa para fora, para aparecer e parecer que é sujeito. Já na segunda não há separação entre o exterior e o interior. No lugar do sujeito há o ser do sujeito, o “sou” do “eu”, numa dialética de negação e afirmação, onde o ser, vir-a-ser, no aparecer e parecer têm como fundamento o que se é e recebeu para ser. Mas este acontece na auto-escuta, no deixar o silêncio falar, na espera do inesperado, até porque ninguém faz a realidade acontecer. Independentemente de nós ela acontece. Édipo que o diga. E não foi no seu ato poético de cegar-se, de negar o conhecimento pela visão e pelo fazer de suas escolhas que chegou a se conhecer e a saber que nada sabia, ou seja, que agir não é fazer, que agir é deixar acontecer o que já nos foi dado para ser, aquilo que os gregos chamavam Moira, a doação de possibilidades de recepção de si e dos outros, ou seja, destino? Neste e por este tudo é e não é. É o nada e a nossa condição, na mutação constante da realidade. E somos, como afirma Guimarães Rosa, seres muito provisórios ou como há milênios Píndaro disse: seres efêmeros. Quando a contracultura quer se afirmar e tornar norma, ser padrão de comportamento, já entrou em contradição com ela mesma, pois estarão seus valores morais igualmente condenados à efemeridade.  Na realidade o que há no embate de cultura e contracultura é o choque de dois mundos de valores que se auto-destruirão, auto-ultrapassarão. Então é necessário perguntar pelo sentido do que somos e do que fazemos, enfim, do sentido dos valores que se combatem ou se querem impor gerando novos valores morais.

Na moral o valor e a ação são determinados de fora para dentro, embora pareçam ser subjetivos. Isto gera nas pessoas, ou revolta ou somatização, de onde surgem as doenças sem causa e a sensação de impotência, como é o caso da melancolia, da paralisia psíquica. Nisso, um dos grandes sintomas de nossa contemporaneidade é domínio da futilidade e da banalização de tudo, até do que há de mais essencial: o ser humano e a morte.

Na ética o valor não vem da relação nem de um sistema prévio, seja ele subjetivo, seja ele institucional (máscara da moral). O valor é o acolhimento do sentido do agir quando se realiza o que é próprio de cada um – sua essência – suas possibilidades, e a fonte e vigência de tais possibilidades que cada um recebeu do ser. A linguagem do sentido do ser se torna a própria libertação e realização, e não do novo sistema que se quer impor. Nesse pólemos (combate dialético) passa a vigorar a verdade enquanto tensão dialética de desvelamento e velamento, de sentido e forma, de solidão e sociabilidade, de interno e externo, de limite e não-limite. O ético é um valor ontológico, não um valor subjetivo-moral. O desajuste e embate sofredor do sujeito com a moral sua e do sistema não é anulada na vida de cada um. Nenhuma contracultura pode fazer isso. Pelo contrário sofremos o assédio dos hábitos e nossos gritos tendem a se anular, nossa ansiedade por libertação e realização tendem a não encontrar ressonância.  

São as contradições tanto das culturas quanto das contraculturas. E essas questões ressoam nas obras de arte, apelando para a escuta do sentido ético-poético do ser humano.

 

 

Criticar: origem e vigência
  Prof. Manuel Antônio de Castro

 
  www.dicpoetica.letras.ufrj.br - Para aprofundamento das questões levantadas no ensaio consulte este Dicionário neste endereço digital. Trata-se de um Dicionário de questões e não de levantamento de significados semânticos.

 
O criticar e a linguagem

Criticar forma-se diretamente do verbo grego: krinein. Em grego é um verbo de múltiplos sentidos que cobrem e manifestam as facetas essenciais do que implica todo criticar, jogando-nos num agir da linguagem (poiesis) em que a própria realidade se dá e mostra em sua radicalidade originária. Nele estão implicados a realidade/physis e o homem, e a própria referência de ambos, em que ambiguamente a realidade se dá e se retrai, projetando-se e dissimulando-se no criticar, não do homem como sujeito, mas do acontecer do homem como acontecer da realidade, ou seja, em sua condição humana. Por ser o lugar ambíguo do acontecer ambíguo da realidade, o criticar do ser humano o constitui e manifesta em sua essência originária, ou seja, ser ele mesmo o lugar ou referência originária da realidade (physis) e ser humano. É uma ambigüidade que foge a qualquer mera relação de sujeito e objeto (esta só desenvolvida na modernidade), pois o krinein é o lugar da dobra originária. A sua posterior apreensão na relação a sujeito e objeto já é o resultado – enigmático -  da sua transformação num duplo. No duplo, o que está em jogo é o esquecimento do sentido do ser, que implica sempre também o sentido do humano do homem, da sua constituição ontológica, enquanto acontecer poético. No krinein/criticar podemos nos deixar tomar pela dobra ou tomar a posição do duplo (mais explícita na sofística e na modernidade, onde ocorrem claramente como operar da linguagem em sua dimensão lógico-instrumental ou funcional). Para o sofista a essência da linguagem, do ponto de vista crítico, o único possível, consiste em poder ser instrumento de persuasão. Dando origem ao gramático, ele parte, portanto, da convicção de que esse instrumento de persuasão, pode ser objeto de uma técnica que se pode aprender e ensinar. Para o pensador a linguagem não é instrumento, mas o lugar do compreender crítico. Toda compreensão como diálogo já acontece sempre num mundo. Este é o logos se manifestando enquanto essência da realidade/physis. Krinein é o entre-lugar do diálogo em que o logos acontece como mundo e a realidade/physis nos advém como realidade.

As dimensões do criticar

  O âmbito poético-semântico de krinein/criticar é:
1 – interrogar, questionar.
2 – pensar;
3 – separar, dis-cernir (mesmo radical de krinein), diferenciar;
4 – interpretar;
5 – julgar;
6 – cortar, de-cidir;
7 – atribuir.
         Esta ordenação não tem qualquer valor classificatório, mas apenas dimensões inerentes ao vigor do krinein/criticar. Os sete significados semânticos assinalados pelo dicionário (Bailly, 1963: 1137) estão profundamente ligados entre si. Essa inter-ligação já está evidente para o pensamento da compreensão. Nesse universo a ação de cada verbo já está implicada nas demais ações de todos esses verbos. Somente podemos dis-cernir sete facetas porque já nos movemos na essência originária do krinein/criticar como sendo a própria essência originária da realidade/physis. Como ela se dá em múltiplos sentidos profundamente interligados daí se origina um conjunto de palavras derivadas que explicitam todo o processo do krinein/criticar no âmbito do agir da realidade e do agir do ser humano, no horizonte da própria realidade/physis, desdobradas em diferentes relações sempre repostas e renovadas. Mas não podemos deixar de assinalar logo que todo criticar é já originariamente um questionar, um perguntar. Não somos nós que temos as questões, são elas, como a realidade vigente enquanto krinein, que nos têm. Ao ser humano na sua referência à realidade como criticar só cabe mover-se nelas. É neste mover-se que inscreve o seu percurso destinal. Termos um destino é a nossa própria condição humana e da qual nenhum ser humano pode fugir. Na vigência do krinein, todo questionar é já um pensar. Daí todo filosofar dar-se no âmbito do discernimento como pro-cura do originário. O taumadzein que toma o pensador e poeta é já a vigência do krinein. E todo ser humano é pensador e poeta, caso contrário nem poderia ler e compreender as obras de pensamento e as obras poéticas. E isso acontecerá em toda obra de pensamento, isto é, em todas as grandes obras dos grandes pensadores e dos grandes poetas. Porém, o discernimento que origina como questionar e pensar as obras demanda um interpretar: um agir ético a partir do krinein como “inter”, isto é, no vigor do “entre”, ou seja, da intuição originária. Essa interpretação se efetiva como diá-noia no (in) diá-logo. Só no âmbito das possibilidades do logos é que é possível todo e qualquer julgamento criterioso. Por isso, no criticar haverá sempre um de-cidir onde se sai do plano meramente ôntico para deixarmos aflorar a vigência do ser. É no horizonte do ser e só no horizonte do ser que podemos interpretar e dialogar nas e com as obras poéticas. Nelas apreenderemos dessa maneira sempre as atribuições essenciais, ou seja, os chamados transcendentais.

           De krinein formaram-se as palavras em grego: Kriter ou Krites: juiz, ou seja, aquele que é configurado pelo poder verbal inerente ao vigor de krinein. Não é qualquer ser humano como tal que pode se arvorar em ser juiz, só aquele que é investido do poder que provém do krinein. Por isso, o sentido profundo é aquele que recebe o poder de julgar. Mas o juiz não pode julgar, como se poderia dizer, a bel prazer. Não, seu poder é pautado pelo kriterion, isto é, a medida (jurídico-sagrada), que lhe dá a capacidade e poder de julgar. Daí se tornar o tribunal. Este é então a instância regida pela medida, pelo kriterion, e não simplesmente o espaço onde acontece o julgamento. A partir do krinein, do Kriter e do kriterion é que o espaço se constitui como este espaço, ou seja, torna-se um lugar, o tribunal. Portanto, medida e tribunal constituem a própria essência do julgamento. Para bem compreender a ligação profunda entre kriter e kriterion temos de partir do poder de que o krinein é portador e doador enquanto é a própria physis constituindo-se em mundo. Na instância de mundo, juiz será o kritikós, isto é, o que é apto a julgar, o crítico. E o que disso resulta é, evidentemente, a krima, a de-cisão (jurídico-sagrada). O horizonte da decisão sempre se exerce a partir de algo krisimos, de-cisivo, crítico. Nunca podemos pensar o criticar fora do próprio acontecer da physis/realidade. O krisimos, o de-cisivo, dá-se num processo de mudança já instaurado pela própria realidade/physis a que se denomina krisis.


Crise

 Hoje só temos a idéia de crise ligada a um momento perigoso, a sintomas de transformações profundas, como se de repente algo estivesse para explodir, vir a realizar-se, mas sempre num acontecer decisivo, no mesmo tempo de algo novo que quer surgir e de algo que está em vias de ser superado. Mas crise não diz simplesmente qualquer momento e mudança. A crise diz o tempo amadurecendo em novas possibilidades de eclosão. Por isso, toda época surge de uma crise. Nesta está implicada algo como uma “perturbação/doença” (metáfora para indicar algo que foge ao conhecido e determinável), que é, no fundo, um acontecer ético, que ultrapassa a simples oposição de bem e mal. O ético, enquanto crise, já traz em si, ao mesmo tempo, o bem E o mal. Por isso, estes não podem ser julgados moralmente, a partir de um paradigma externo e prévio. A própria realidade está amadurecendo e prestes a eclodir em algo novo. Este novo é ruptura (mudança) e tradição (permanência), mostrando a essência originária da realidade/physis como atualidade. Se, por um lado, não podemos reduzir a crise ao moral, também não a podemos reduzir a algo meramente físico-corporal. Está sempre implicado o corpo pessoal, o corpo social, o corpo Terra, na vigência de sentido do humano e do sentido da realidade. Então a crise é ética porque acontece num âmbito ontológico. É necessário pensar toda doença corporal para além do paradigma físico-material (organismo-funcional). Toda doença como crise é sintoma de um todo de sentido em que o corpo pode ser corpo e o lugar da eclosão. E é esse lugar que diferencia o corpo do corpo meramente orgânico. É necessário repensar o âmbito da krisis (não apenas como “doença”) e reinstalá-la no vigor do krinein, de que a krisis é um sintoma evidente. Toda crise/doença é sempre corporal, mental, psicológica, social, conjuntural, numa palavra: onto-lógica, porque diz respeito à realidade/physis como um todo, um mundo em crise. É nesse horizonte que podemos compreender a emergência da Modernidade como crise da Idade Média. E devemos compreender hoje a crise da modernidade na eclosão da globalização. Isso fica mais claro quando retomamos a unidade de sentidos em que a palavra grega krisis se move, sentidos implícitos na palavra crise como ela é usada hoje, de que dificilmente temos em vista a sua compreensão. Por isso, é essencial retomar os sentidos de krisis, em grego, para melhor nos tomarmos conscientes do vigor em que ela se move, fazendo uso do sintagma: consciência crítica, mas, agora, em seu sentido real e não apenas semântico-moderno e atual.

 
A crise e a verdade: o certo

            Para compreendermos o nível originário em que se move a palavra krisis, claro, como denominação da ação do krinein, é bom, logo, destacar que, em primeiro lugar, krisis diz o certo. Devemos tirar logo de nossa mente o certo do duplo em que ele se opõe a falso. O certo, originariamente, diz a manifestação, o desvelamento da realidade/physis na sua verdade. Platão gosta de usar a palavra orthotes. É esta que funda a certeza do certo. Um certo ético. Verdade diz-se em grego aletheia (onde se dá a tensão de velamento/desvelamento). Por isso, diz Platão a propósito de krinein (dis-cernir): to alethis te kai me (o que é verdadeiro e o que não é).

 A perda da memória etimológica ou como disse o pensador da linguagem Guimarães Rosa: o retirar as camadas de cinza com que as palavras são recobertas pelo fluir do tempo em seu operar, tal perda não nos deixa escutar o que ressoa como brasa viva por debaixo das camadas de cinza na palavra certo. Este forma-se do verbo latino: cerno, crevi, cretum, cérnere: dis-cernir, julgar. Tanto krino como cerno têm a mesma raiz indo-européia, daí dizerem o mesmo: os sentidos inerentes ao krinein, que estamos vendo. E estes se centralizam na palavra derivada krisis, que congrega em si todo o âmbito dos sentidos do krinein/cerno, tendo como vigor de instituição de sentido o certo. O certo não precede nem é posterior à crise. É sua própria manifestação como vigor de manifestação da realidade/physis enquanto verdade.

 
O âmbito de sentidos da crise

Neste horizonte krisis apresenta os seguintes sentidos:

1 – ação da faculdade de dis-cernir (di-ferenciar);
2 – ação de escolher, isto é, escolha (daí eleição);
3 – ação de separar (daí contestação);
4 – ação de de-cidir: de-cisão, ou seja, julgamento ou juízo (em múltiplas instâncias, na medida em que tem sempre como horizonte as questões). Toda questão nos joga continuamente em de-cisões, onde a questão se reinstala como solicitação da realidade/physis enquanto krinein, inaugurando novas possibilidades do acontecer da questão.

 
A krisis e o julgamento (juízo)

O sentido mais geral e radical de krisis é o que diz respeito ao julgamento como proposição judicativa, onde se afirma ou nega algo a respeito da realidade/physis. A proposição ou oração é o lugar da manifestação da realidade/physis enquanto linguagem (logos). Nas considerações a respeito do juízo/proposição criou-se uma dicotomia (duplo), onde se tende a separar o âmbito da realidade/physis como tal de sua representação como discurso/proposição (âmbito do logos/lógica). Esta separação iniciada pelos sofistas tem seu campo privilegiado e aplicação e continuação nos estudos gramaticais e lingüísticos até hoje. Nestes, a linguagem como lugar do julgamento fica reduzida às possibilidades instrumentais de persuasão. Quando examinamos com atenção a estrutura do juízo (krisis), tendemos a acentuar dois pólos, o do sujeito e o do predicado, ignorando sua fonte, sua origem: o verbo, no caso, o verbo ser na sua manifestação enigmática do é. Tomemos como exemplo o verso famoso de Fernando Pessoa em Autopsicografia: “O poeta é um fingidor. Jamais vamos apreender e compreender o que aí acontece como realidade poética se nos limitarmos a discutir e discernir apenas as relações entre o sujeito e o predicado. Toda a força poética do verso reside na simples constatação do juízo, em que se move o verso, de que enigmaticamente o poeta é e só sendo pode ser fingidor. Gramaticalmente fica esquecido que o é é a manifestação temporal da realidade/physis no atuar do poeta, que vem da força do ser que se dá como krisis (juízo/proposição). Isto significa que os membros constitutivos do juízo/proposição são o resultado da vigência da realidade/physis (ser), enquanto krinein, numa dobra de manifestação. Então não é a proposição que representa a realidade/physis, mas esta mesma é, no que lhe é próprio, dando-se no é, des-dobrando-se no seu vigor de manifestação: a dobra misteriosa de krisis E poiesis. Tanto isto é certo que a este des-dobramento dão os gregos o nome de krisis, isto é, julgamento, juízo. O vigor da krisis é o é e não o sujeito e o predicado. Estes só podem ser o que são pelo vigorar do ser se dando no krinein, o que significa, no desdobramento de sujeito (essência) E predicado. Esse “E” se torna o lugar do próprio acontecer da krisis, do krinein. O certo inerente a toda proposição provém não da proposição (krisis) como manifestação lingüística, mas da realidade/physis (ser), enquanto krinein (krisis). É este que constitui o âmbito de verdade (certo) da proposição enquanto manifestação do logos. Então realidade/physis, krinein e logos constituem uma unidade sempre dis-cernível, mas jamais dicotomizável sem perda da compreensão do próprio do krinein/cernível, porque em si a realidade/physis já é constitutivamente permanência E mudança (arkhé E telos, isto é, krinein). O krinein como krinein é esse “E” enigmático que atua como o “entre” de permanência e mudança. Todo krinein é um entre que reúne em-si a unidade e a diferença, a partir do qual se pode sempre e se dá sempre um dis-cernimento. Mas este não é dito pelo ser humano, mas lhe é dado para poder julgar, isto é, krinein (krisis). Mas o que dito, dado E julgar (krineini) têm em comum?
 

O discernir poético: o entre-ser

Para que fique claro em que questões nos vamos mover é necessário deixar bem discernido que a questão fundamental é sempre a referência entre o ser humano e o ser (realidade/physis). E nessa referência quem age? A metafísica ocidental criou um duplo, pelo qual foram tomadas duas posições. Pela primeira, a ação (poiesis) foi jogada num fundamento externo ao ser humano, recebendo então diversos nomes: fundamento, essência, criador, substância etc. Pela segunda, a ação foi atribuída ao ser humano, então denominado sujeito, autor etc. É a posição moderna. No duplo sempre predomina uma relação, pela qual um se torna o determinante e o outro o determinado, estabelecendo-se uma relação causal. Isto causa aquilo. Na dobra sempre se uma referência, pela qual não há determinante e determinado, não se mostrando, portanto, nenhuma relação causal. A dobra é a própria vigência da realidade/physis enquanto krinein, onde o di-ferenciar, discernir, é a própria manifestação da realidade/physis enquanto arkhé E telos, ou seja, permanência E mudança. Isto diz, portanto, que o acontecer poético da realidade/physis se dá, se diz, se julga enquanto krisis, no ser humano. Este, por ser o lugar de tal acontecer, é que propriamente se constitui no que lhe é próprio: entre-ser. Ser entre-ser eis o destino do ser humano. Um destino no qual a própria realidade/physis se destina como krinein: vigor de permanência E mudança.
 

O julgar e o sagrado

Podemos agora repetir a pergunta: Mas o que dito, dado E julgar (krinein) têm em comum? Se bem observarmos todos os sentidos de krinein surgem para se concentrarem no ato de-cisivo de julgar, pois este se torna o lugar do dis-cernimento. Nossa facticidade nos joga já desde sempre, isto é, originariamente, no entre-ser E entre-estar no limite e no não-limite. É nossa condição humana. O que, em sua origem, quer dizer julgar? Não implica ele radicalmente sempre um ser limite E um ser não-limite?

Julgar forma-se das palavras latinas: jus e dicere. Jus propriamente é uma fórmula sagrada que tem força de lei. Judex é aquele que diz a fórmula sagrada da justiça, onde esta nada mais é do que o pronunciamento e a atuação do jus, enquanto força do sagrado, da lei divina. É a fala do sagrado pelas palavras (narração) do Juiz.  Já na sociedade latina perdeu-se, isto é, ficou misturado, meio indistinto, o sentido sagrado de jus e o sentido profano, que passa a ser “direito”, “justiça” no âmbito das relações jurídico-político-sociais. Essas instâncias nas sociedades antigas não eram tão nitidamente separadas como ocorreu depois com o advento da razão crítica, na Modernidade (quando acontece a fuga dos deuses). E para o sagrado se reservou exclusivamente uma outra palavra: fas. Esta diz o direito divino, a lei divina (não esqueçamos que os “deuses” tinham seu vigor no “divino/sagrado”, que lhes dava uma unidade. Os “deuses” enquanto diferenças eram naturalmente o operar do krinein ao nível do “divino/sagrado”. A diferença entre jus e fas está consagrada na expressão: “contra jus fasque: contra a lei humana e a divina. O que acontece no âmbito do fas é o justo, o que é permitido, daí: fas est: é permitido. Algo é permitido desde que se mova no âmbito do fas, isto é, da lei. Ligado a esta, isto é, a fas, está o destino, a sorte, a disposição do destino. Mas quando procuramos a etimologia de fas vamos ver que está ligada ao verbo fari: falar, dizer.  Segundo Ernout e Meillet (1979: 217), jus, fas e mos (costume) se co-pertencem. Isto mostra a instância e o sentido ético-originário do fas. A presença de um vigor que não está no âmbito de quem julga, que não é quem de-cide (krinein) se mostra no fato de que tais palavras só se usam (e não se declinam) em expressões impessoais: fas, mos, jus est significam: é lei, é costume (ético), ou seja, vigoram no sagrado. Não é possível lhe atribuir um sujeito, uma pessoa verbal. A força emana do próprio verbo.

             Propriamente o sentido de fas é: permissão ou ordem dos deuses (do sagrado), direito divino, por oposição a jus, direito humano. De fas formou-se fatum, o fado, o dito como destino que tem sua origem no sagrado. Porém, diz Meillet e Ernout (1979: 217) que: fari, fama, fabula não têm um valor nitidamente religioso em latim. Essa ambigüidade entre o religioso e o profano levou os filólogos a aproximar a etimologia de faz de feriae (festas) e fanum (templo). Fas viria de uma raiz *dhas. O sentido de fas lembra, com efeito, o do grego: themis (tendo então a mesma raiz, isto é, *dhas), o que é estabelecido como lei e regra. Daí: lei divina e ética (em latim fas) e se opõe a nomos: lei humana, estabelecida pela moral, o que é usado, é costume. Themis estí: o permitido pelo destino, pelos deuses. Este nome está ligado ao verbo grego tithénai, da mesma raiz de fas: *dhê: pôr como norma divina. O verbo grego themidzo significa julgar. A deusa grega Themis remete para a questão da justiça, enquanto medida justa. É “a deusa das leis eternas, da justiça emanada dos deuses” (Brandão, 2000, v.2: 417). Com Zeus deu à luz as três Moiras: Cloto, Láquesis e Átropos. O nome themis já aparece no micênio e pode ser traduzido como limite. O julgar pela medida justa, pela lei nos remete diretamente para o krinein/criticar como referência do ser e do homem. Daí estarem as ações dos personagens trágicos sempre ligadas à hybris, à desmedida ética. Tudo isto nos mostra o quanto a ação originária de krinein é complexa e que a junção ou distinção de jus e fas, de direito humano e divino, acontecem num “entre” sempre referencial, mas enigmático. E isto ainda se torna mais enigmático do ponto de vista das palavras da linguagem, pois, deve-se notar, a referência de ser e homem no krinein/criticar acontece necessariamente na referência de poiesis E linguagem. Não há uma referência sem a outra. É uma dobra originária.

           Se retomamos agora a questão do julgar como jus-dicere, é necessário estarmos atentos para um fato curioso. Tomando as palavras isoladamente, os filólogos vão nos dizer que jus é o direito humano e que fas é o direito divino. Mas a partir da etimologia de fas a palavra liga-se ao verbo fari: dizer, falar. No lugar de fari, em jus-dicere vamos ter dicere, que tem o mesmo sentido de fari: dizer. E em julgar, na verdade, o vigor da palavra está dependente do verbo dicere. Sem dicere não há jus. Sem a linguagem não há poiesis, como não há linguagem sem poiesis. E o que diz o dicere? Provém da raiz deik que significa: mostrar, fazer conhecer pela palavra, isto é, dizer. O verbo tem um caráter solene e específico: é um termo da língua e do direito sagrado. Então jus-dicere é manifestar o sagrado como tal. Nele se julga porque na fórmula do jus a divindade se mostra e faz presente, isto é, se doa. Presentear-se é doar-se. É uma proclamação onde a divindade se mostra enquanto linguagem pela qual e na qual advém o sentido e o vigor da lei enquanto ação (poiesis) que faz a realidade/physis advir ao manifestar-se em seu sentido e mundo: linguagem. Numa tal manifestação como julgamento é que temos o krinein/criticar/julgar propriamente vigorando.

Krinein já traz em si o próprio conhecer enquanto o sentido que a linguagem do dizer divino já doa, presenteia, sem o qual não é possível julgar, mas um conhecer que não tem seu âmbito de atuação baseado apenas nas possibilidades do conhecimento como techne nem das possibilidades de aprender e ensinar, ou seja, da máthesis. Nele já vigoram as possibilidades do dizer enquanto linguagem e do próprio fazer, não em sentido material ou prático, mas no sentido de poiein, de trazer ao desvelamento enquanto vigorar da ação da physis que ama velar-se, conforme nos diz Heráclito na sentença 123 (Physis kryptestai philei). O verbo grego essencialmente diz o dis-cernir o que é verdadeiro/desvelado e o que não é (Platão, Theeteto: to alethes te kai me). (In: Bailly, 1950: 1137).


O núcleo do criticar 

           Temos três palavras fundamentais no processo crítico, do ponto de vista daquilo que constitui aspectos ou dimensões essenciais. São elas: Krinein, kriterion, krisis.

É claro que os três, em si diferentes, são reunidos pela vigor do logos. Mas o vigor que opera no krinein, kriterion e krisis, em si, não é radicalmente diferente, embora não seja a mesma do logos. Entende-se por vigor a vigência de possibilidades que podem ser realizadas ou não. É nessa instância que entram todas as forças familiares, sociais, educacionais, religiosas (sem exclusões) e políticas (sem ideologias) como exercício de criação das condições para que tais possibilidades tenham o lugar e o momento oportuno para se desvelarem e cada sendo chegar a seu telos, isto é, à sua realização, à plenitude de seu próprio. No fundo, krinein e logos são a própria physis vigorando. Porém, esta, em si mesma, é a unidade de diferenças, na medida em que vigora numa disputa (polemós). Este encontra seu lugar de realização no ser humano na medida em que ele se guia pela essência do agir. Por isso, este será um sendo da physis e, ao mesmo tempo, o lugar onde ela chega a realizar o que ela, em si mesma, não realiza. A physis não compõe uma nona sinfonia nem escreve a tragédia Rei Édipo etc. Nesta dimensão, teremos então que acrescentar ao âmbito do criticar uma quarta palavra: kriter ou krites. Este, na krisis, opera não de uma maneira aleatória ou totalmente ativa ou passiva, mas dentro da dinâmica da physis (vida/sagrado), em situações sempre concretas, a partir dos critérios. Em toda de-cisão (julgamento, seja de que natureza for), implícita ou explicitamente, sempre agimos dentro de certos critérios (conscientes ou inconscientes, bons ou maus, justos ou injustos, ideológicos ou poéticos, éticos ou anti-éticos). São estes que conferem aos atos de diferentes krites uma certa unidade, tendo como horizonte na krisis sempre o krinein. Os critérios são de alguma maneira um paradigma do que se poderia chamar e sempre se chamou medida. Mas que medida? A do plano humano, da razão, da política, do poder da vontade? Ou a medida do humano, medido pela vigência e dizer do sagrado? Por isso, os gregos chamaram a falta de medida a des-medida, a hybris. Esta refere-se sempre ao ético como o poético do humano, tempo como horizonte a vigência do sagrado. Na modernidade, a medida do julgamento vai ser a razão crítica. E são os seus critérios que hoje ainda permeiam todas as instâncias das realizações. Porém, sua formulação sempre se dá dentro de um vocabulário oriundo de teorias e paradigmas específicos a cada disciplina, a cada campo de conhecimento. Tirante o imperativo de ser uma crítica racional, surgem as mais diferentes posições, inclusive dentro de uma mesma disciplina. Esta não é algo estático.


Estético, poético e ético

 Porém, no racional, o que decide não é a lei do sagrado nem da cidade. É o Lógico, daí tudo ter de ser científico. Para tentar ir além deste lógico, a ciência criou a estética. Esta é abordagem científico-racional das sensações, presentes nas obras de arte, pois, aparentemente, em primeiro lugar o que o leitor ou espectador tem, diante de uma obra de arte, são sensações ou estesias, compreendidas como experiências estéticas. E o seu tratamento científico originou a estética. Daí se falar sempre em teoria literária ou em qualquer corrente crítica, quando se trata de obras de arte, em análise. Esta, porém, jamais apreenderá o ético-poético de qualquer obra de arte. Costumo brincar dizendo que em questão de obra de arte não se pode falar em análise, pois obra de arte não é “cocô nem sangue”, passíveis este de análises nos laboratórios. Das obras de arte temos sempre a dobra de escuta e experienciação. Em se tratando de estesias, só aparentemente elas me dão o essencial da obra de arte, pois se o ser humano em sua condição já não fosse aberto ao não aparente, nunca iria além das aparências ou estesias das sensações dos sentidos. Sem sentido não há jamais estesias, em se tratando do ser humano. E o que mais clama dentro dele e sempre é essencial, é aquilo que vigora e produz tudo que é aparente, pois até para ser aparente, a aparência tem de aparecer, isto é, originar-se no que não cessa de se manifestar, ao mesmo tempo que nunca se esgotando, não cessa também de se velar. É neste horizonte que os gregos pensaram a verdade como a-letheia. Claro, apreendidas e diferenciadas as sensações através da razão, daí a estética se fundamentar na epistemologia. No Helenismo havia três epistemes: episteme physike; episteme logike; episteme ethike. logike origina-se na palavra fundadora grega: logos. Mas na episteme ficou reduzida às regras ou leis lógicas. E são estas que orientam desde então todo exercício crítico ou de conhecimento, ou seja, algo é crítico quando se guia pelo lógico, pois só assim será conhecimento verdadeiro. E o que é verdadeiro é real, ou seja, a ciência por ser lógica será sempre real, porque o que é verdadeiro é real, mas um real reduzido ao lógico. Desde então todas as disciplinas se tornaram verdadeiras, reais e críticas, porque lógicas.  E o que não for lógico passa a ser i-lógico, não-verdadeiro, ou seja, não-crítico: ficção, ilusão, fantasia, sonho, digital. Como há ações no comportamento humano que não são redutíveis a essa camisa de força científica, inventou-se o inconsciente. Veja-se que a própria palavra já diz o horizonte e âmbito do consciente, do epistemológico, do lógico, do científico. Note-se logo que esta crítica não está negando esses nossos atos, esses nossos comportamentos. Nega-se a sua classificação só no âmbito do lógico e, portanto, da ciência. Algo que para a ciência é i-logico, realmente existe e vigora com uma força que nenhum conhecimento científico tem. Por exemplo, a força e vigor do destino. Desse modo, a arte não é redutível ao científico, horizonte que orienta todas as correntes críticas. A obra de arte, em seu operar, é lógica sem dúvida nenhuma, mas vai muito além desse lógico, pois a physis e a condição humana são muito mais complexas do que o lógico e seu conhecimento científico. E é dessa complexidade e riqueza que nos falam as obras de arte. Por isso, conforme vimos propondo, a crítica, no sentido originário do krinein, é muito mais profunda e complexa do que a lógica científica, pois esta o supõe e pressupõe.

Se bem observarmos, o científico avança sempre, mas não dá conta jamais do ético e do acontecer poético, ou seja, da memória em sua vigência histórica, ou seja, a vigência do krinein. E claro, muito claro, não dá conta jamais do sagrado, o universal concreto. Pois o científico é sempre um universal abstrato. Porém, o que somos em nosso próprio jamais é algo abstrato, mas desafiante a cada dia de uma maneira mergulhada radicalmente no tempo, o tempo de ser. É na dobra de ser e  tempo que vigora o krinein.

 Bibliografia citada:

BAILLY, A. Dictionnaire grec-français. Paris, Hachette, 1950.

BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega. 3. e. Petrópolis, Vozes, 2000, v.I e II.

ERNOUT, A. et MEILLET, A. Dictionnaire étymologique de la langue latine. 4. e. Paris, Klinsksieck, 1979.

BENVENISTE, Emile. O vocabulário das instituições indo-européias. Campinas, Unicamp, 1995. V. I.

----------------------------. Le vocabulaire des institutions indo-européennes. Paris, Minuit, 1969. V. II.